História Obliviate para Um Sonho - Diabolik Lovers (2024)

Olá :)
Eu sei, eu sei. Faz mais de três meses desde que postei o último capítulo. As justificativas são as mesmas. Estudos, primeiro emprego, problemas familiares e psicológicos... Enfim. Toda essa correria atrapalhava a minha constância na escrita. Para vocês terem uma noção, eu comecei a escrever esse capítulo desde fevereiro desse ano :O
Enquanto o escrevia, todavia, confesso que passei pela infame insegurança de que minha fanfic não estava boa o suficiente – ao começar a me comparar com outras histórias da categoria – Muitas vezes me peguei pensando em reescrever tudo, mas francamente? Não é justo com os meus leitores, e nem comigo mesma, jogar fora meses trabalhando em um roteiro interessante. Sem contar que, antes de tudo, essa fanfic é meu escapismo. Uma experiência. Cada capítulo que eu escrevo há uma intenção de testar novas narrativas, sem fazer muita questão com números de comentários e favoritos. Se assim fosse, acabaria me frustrando bastante (isto porque DL já deixou de ser hype há 84 anos ksksksk).
Enfim. Desabafos à parte, finalmente eu quebrei a maldição do capítulo 9. Sim. Toda fanfic que escrevia, por algum motivo, parava no nono capítulo e simplesmente me batia a síndrome do impostor e desistia, MAS, com muita perseverança, terminei essa joça... A primeira parte, pelo menos. Sim. O capítulo já é uma bíblia e teremos parte 2. O que acontece é que, durante a escrita, acabei definindo como objetivo mostrar x, y e z em um e ç em outro, pois meu perfeccionismo ataca demais. Vou amar explicar nas futuras notas o porquê.
Pela a imagem abaixo, 90% do fandom deve estar gritando de felicidade – pois aposto que vocês imaginaram que esse capítulo seria focado no Reiji, lembrando da ordem que estabeleci lá no início desse mini-arco – Como eu também não gosto de ser previsível, podemos considerar isso um dos motivos para trazer seu ponto de vista aqui hehehe. Um personagem deveras complexo, como todos os irmãos. Vocês não fazem ideia do quanto amei escrever cada cena, já que é um dos meus confort character <3
Sei que estou delongando muito, mas apenas deixe-me pelo menos explicar o título desse capítulo. Acho que alguns já devem ter percebido que cada título faz alguma referência a um gosto ou característica particular do personagem. Aqui não foi diferente. Libreto é um termo italiano para designar às peças musicais longas, geralmente óperas, considerando como o primogênito dos Sakamaki é um amante de música clássica. Eu fiz um trocadilho com a expressão brasileira "livro aberto", que significa alguém que não tem nada a esconder. Será mesmo? e.e E, por fim, elegia é uma denominação para textos líricos que fazem menção à morte.
Bom. Acho que eu não tenho mais nada a declarar nesta prévia.
Preparem-se para uma longa viagem de emoções. Coloque uma música boa, fique com uma pipoca ao lado e vamos desvendar um pouco o psicológico desse Sakamaki.
Tenham uma boa leitura ^^

| Shuu Sakamaki |

As mesmas paredes flavas, exaladas pelo o tempo um odor nostálgico; as mesmas roupas às avessas, jogadas em um amontoado sobre a cama, que provocavam pequenas, porém irritantes, cócegas em seus pés; as mesmas abafadas cortinas, aveludadas e espessas, das quais o protegiam da luz do mundo afora... Seja solar, seja lunar, desde que o aconchegado primogênito dos Sakamaki não despertasse para se encontrar, em mais um novo dia de sua vida monotonamente monótona, enfurnado nos seus aposentos.

Shuu recusava-se a crer com os seus próprios olhos que o quê estava vivendo era real, não aprisionado em um sonho lúcido.

Ele estava de volta à mansão.

Era incontestável, impossível ignorar tal fato. Os seus demais sentidos não o deixavam em paz com a negação.

O cheiro do cômodo, a textura das cobertas... Obrigavam-no a viajar várias e várias vezes para um passado distante, acordado ou adormecido, com ou sem Mozart a reverberar sob seus tímpanos, revisitando momentos petulantes dos quais já deviam há meio século ter se perdido nos fundos de seu subconsciente.

Como se não fossem nada.

— Por que ainda não está de pé, Shuu? — Beatrix adentrou abruptamente em seu quarto depois que nenhum dos empregados conseguiu convencer o jovem Sakamaki a se levantar da cama — Terá uma reunião de suma importância com os nobres do clã víbora e pontualidade é uma qualidade bem prezada em um monarca.

Grande erro então daquela mulher em mandar que lhe concedessem o quarto mais confortável. ‘Tudo de bom e do melhor para o herdeiro do trono’, ela dizia, cuspindo na cara de quem se atrevesse a afrontar. Shuu nunca a agradeceu, até porque pouco se importava de, como primeiro filho do Rei dos Vampiros, gozar de tais regalias.

Ele nunca pediu para ser especial.

Shuu fingiu que não a escutou, ignorou completamente sua presença, afundando o rosto dentre os travesseiros de penas de cisnes. Tudo que ele queria era dormir para sempre, se o custo fosse não ter mais a vida de um príncipe. A realeza na verdade era tão superficial... Ir àquelas infindáveis confraternizações entediantes, ouvir as incontáveis discussões de pseudo-intelectuais e exibir contra vontade seu talento musicista estava o matando por dentro. Pouco a pouco, prestes a se tornar um mero casco oco à deriva.

E a sua própria mãe incentivava, pressionava. Mais e mais, cega pelas expectativas.

Um suspiro frustrado, vinde dela em um bom tom. Os firmes passos de salto andaram em direção às cortinas:

— Aonde foi que eu errei? — Ela murmurou, deixando a luz natural fazer a sua função de incomodá-lo.

De acordá-lo para viver uma mentira.

Ela devia saber que perdera qualquer controle que detinha sobre seu filho, desde que este já não era mais uma criança da qual podia moldar como argila...

Aquele mesmo Sol do entardecer transcendeu das suas memórias. Os raios ardentes passaram a pinicar contra a sua tez languida, acordando Shuu enfim para a realidade. Ao pôr, atordoado, uma mão sobre a própria vista, notou que alguém ousou destrancar as janelas.

Você é o futuro rei desse mundo, aja como tal.”, estas foram as últimas palavras, frias e solenes, ressoadas antes daquela reminiscência de Beatrix desaparecer, quando o Sakamaki forçou-se a abrir completamente os seus sonolentos olhos cerúleos.

Ele havia dormido por dias inteiros, mas sentia-se tão cansado.

E ainda estava aqui, mofando como parte da mobília.

Para o seu descontentamento, nunca foi um sonho lúcido.

Agnus Dei... Qui tollis peccata mundi... Miserere nobis... Agnus Dei... Qui tollis peccata mundi... Dona nobis pacem.

Guiado pela a voz, avistou logo a sua frente os cachos platinados de Yui refletindo sob o resplendor da tarde. Ela estava a cantarolar algumas palavras em latim, enxotando a poeira de um dos inutilizáveis abajures com o espanador. O primogênito passou a encarar pungente a “queridinha da casa” até que, sem demora, a mesma notasse sua visível apatia, a qual foi retribuída por um ingênuo sorriso afável:

— Desculpa pela minha entrada invasiva, Shuu-kun. Eu me dispus a ajudar aqueles cavalheirescos mordomos no dia da limpeza e... Nfufu- — Com a mão, conteve a estranha risadinha que escapara. Qual era a graça? — Pelo que eu percebi, eles meio que têm receio de entrar em seu quarto. — aproximou-se da extremidade do colchão, apanhando de cima aqueles trapos já usados. Ganhando mais daquele espaço de volta, o loiro esticou confortavelmente as suas próprias pernas — Já adiaram mais do que deviam na arrumação.

Shuu detestava os dias de faxina. Eram barulhentos, inconvenientes e totalmente desnecessários. O propósito por trás de viverem em uma mansão vitoriana, no meio do nada em Kyoto, era de parecer assustador, inabitável e, sobretudo, insalubre o bastante para nenhum mortal tolo sequer pensasse em explorar.

— ... Tá. — Ele respondeu, com preguiça demais para contrariar.

Afinal, antes ter Yui o atormentando ao invés da sobra dos projetos de pinguim – mordomos – de Reiji.

Ou o próprio Reiji em pessoa.

— Além disso, você não devia estar dormindo nessas condições. — A mais nova advertiu, preocupada, enquanto separava os trajes que iam para o guarda-roupa dos que iam para o cesto — Eu sei que nós somos vampiros. Nunca ficamos doentes, mas quem sabe você acabe criando uma mutação da gripe humana por ficar tanto tempo exposto aos ácaros?

A exagerada preocupação de Yui arrancou um risinho anasalado do primogênito. Ela não devia se importar tanto para uma criatura da noite, já que aquilo se passava de uma fraqueza. Quantos já não perderam suas vidas se importando demais? Demorou um longo tempo para que acreditasse, se acostumasse, ao seu jeitinho estupidamente insistente de “boa samaritana”, o que, em um final satírico, Shuu passou a prezá-lo, pois convenceu-se de que este sempre fora genuíno. Sem chantagens, sem segundas intenções.

Como ele vivia tendo dos outros a sua volta desde que nasceu.

Embora não deixasse de ser cômico a sua irmã achar, quase convicta, que seus hábitos desleixadamente sedentários fossem capazes de matá-lo.

Os seus maus hábitos, na verdade, prolongavam sua existência.

Não suportando mais daquela claridade abundante, Shuu esforçou-se para levantar. Parecia que cada um dos seus músculos estivessem atrofiados por toneladas de chumbo, suspirando exausto ao finalmente se assentar na beirada da cama. Seu plano era ir dormir em outro cômodo até que a loira organizasse o que julgava estar desorganizado, se o vampiro, há instantes, não perdesse aquele pico de força de vontade que retirou-lhe de sua inércia.

Era mais um daqueles dias em que ele não queria precisar mexer um mísero dedo. A sua mente, apesar de desperta, estava vazia. Encarando sua janela radiante, não vagava nenhum pensamento a tecer. Apenas e somente esperava que um pouco daquele vigor se recuperasse.

— Gostaria de uma ajudinha, Shuu-kun? — Ela indagou, apontando para a sua camiseta branca desabotoada.

Aquela pergunta inusitada o pegou de supetão. Mal ele percebera seu tamanho desleixo, prova de que o próprio corpo lutou para sair daquele sono quase eterno.

Ela continuava gentil, até demais.

Não que ele ligasse, uma vez que já foram forçados a serem íntimos. Caprichos de jovens desesperados eram de costume bem-vindos, entretanto, naquele momento, Shuu simplesmente sentia-se indisposto para recebê-los.

Nem sempre queria ser “cuidado”, reflexo das idas e vindas de suas lembranças petulantes.

— Não.

Ela sorriu para sua dispensa:

— Eu insisto, nfu.

Yui, sob passos animados, chegou agachando-se abaixo do colarinho do mais velho, que falhou em não manifestar uma pontada de desconforto diante da repentina aproximação. Para onde foi aquela sua indistinta timidez?

— ... Que seja. — murmurou o Sakamaki, pondo sua mão sob a nuca tensionada.

Os surpreendentes dedos ágeis da irmã fechavam os botões dos quais exibiam parte do seu peitoral até seu abdômen magros, um por um, sem se atrapalhar entre si. Um dia ela já fora terrivelmente péssima, tanto que Shuu não perdia a oportunidade de zombar por sua lerdeza, perguntando-a como agradaria um homem daquele jeito. Observando a determinação estampada sobre o semblante da vampira, pareceu que esta levou a sério as suas típicas provocações depois de anos. O que Yui queria provar? Fez apenas que a sua obrigação em aprender...

A verdade era que Shuu gostaria de melhorar como ela, agir como se o tempo fosse precioso.

Assim que a loira terminou de vesti-lo adequadamente, ela pendeu a própria cabeça para se aconchegar sobre uma das coxas do irmão:

— Já falei que eu fiquei muito, muito, feliz por você ter voltado?

Era uma declaração deveras calorosa para um ser que partilhava da mesma pele tão gélida.

Estava começando a se tornar suspeito, no entanto.

Até o coração do mais orgulhoso dos demônios era capaz de amolecer com a amabilidade de Yui. Talvez em algum momento ela se dera conta de que possuía um incrível dom de fazer os outros se abrirem, sobre qualquer coisa, conseguindo confidenciar até o que não devia. Shuu preferia acreditar que a sua irmãzinha havia mudado bastante do que se sentir à vontade para ser vulnerável.

Yui esperava pela resposta, fitando-o com uma expressão docilmente paciente, porém, o primogênito notara um brilho diferente em seu olhar.

Um brilho estranho. De repente não existia mais aquela ingenuidade.

— Onde você quer chegar com toda essa aludação? — confrontou-a, desconfiado.

A mais nova riu:

— É errado querer saber como o meu irmão está depois de três anos? Só agora nós estamos tendo praticamente uma conversa de verdade.

Shuu pensava que aquilo, tanto quanto Beatrix, tinham caído no mais desgostoso esquecimento. Ele já imaginava onde aquela discussão o levaria, se desse trela: o outro lado da história.

Momoko... Ainda tá viva?, perguntou-se. Até este ponto, as respostas, pelas quais a vampira tanto procurava para suas dúvidas óbvias, custavam vir das meras palavras da própria humana. “Ele se disfarçou entre nós. Ele me sequestrou. Ele me machucou”. Não havia necessidade do primogênito se justificar em um conto de terror, independente do quão decepcionada sua irmã ficaria.

A verdade sempre estaria do lado do cordeiro, sendo os atos de seu lobo puramente injustificáveis.

Nem para se ajudar a Momotani servia.

— Estamos? — Shuu indagou-lhe desinteressado, esperando que Yui reconsiderasse o que acabara de afirmar.

O par de olhos glaciais de Shuu diziam mais do que qualquer palavra premeditadamente insensível. Bastaram somente aquelas íris azuis vívidas, mas indecifráveis, para que a loira enfim se encolhesse em arrependimento. Não era difícil colocar os curiosos no lugar. Yui pareceu entendê-lo quando já foi tarde demais, por isso tentou amenizar o clima tenso mantendo, ainda que torto, o seu mesmo riso otimista.

— V-Você entendeu errado! Mal estava pensando nisso! — Ela se defendeu, cruzando as mãos tremulantes — Eu juro, Shuu-kun!

Nem um pouco convencido, tal sentimento serviu de ímpeto para que o Sakamaki finalmente se pusesse de pé enquanto, diante da reação abrupta, Yui se desiquilibrou e caiu de joelhos sobre o carpete fofo:

— Só acabe logo de limpar. — ordenou curto e seco, simplesmente desaparecendo.

( Z z Z z Z z )

Mudanças sutis traziam mais mudanças.

Na sala, ao tomar um sofá inteiro somente para si, Shuu esperava que fosse recebido por um silêncio tão taciturno quanto o de seus aposentos. O que não acontecera, muito pelo contrário, sempre que sentia suas pálpebras pesarem, prontas para mais uma longa soneca, um barulho novo obrigava-o presenciar aquele cenário incomum: sentados em outro estofado próximo ocupavam os trigêmeos, lado a lado, jogando videogame em frente a uma enorme televisão. O primogênito não sabia como o jogo funcionava e nem queria saber, apesar de soar com o caos em que a Terra estava vivendo hoje. Tudo o que ele ouvia eram gritos, tiros, drifts de carro, sirenes de polícia e o incrivelmente familiar...

WASTED.

Aquelas letras em vermelho brilhavam sobre a tela intacta em preto e branco, indicando que eles perderam... De novo.

— Oe! Kanato! — Ayato, que apossava-se o lugar do meio, culpou-o pela terceira derrota consecutiva, prestes a atirar o joystick no pequeno vampiro — Se gosta tanto de fazer uma chacina pelo mapa, ao menos saiba fugir da polícia depois! Seu... Seu-

— Eu estou tentando! — O próprio Kanato defendeu-se, fazendo um beijinho ao virar sua face indignada — Não tenho culpa se os gritos são a melhor parte!

— Calma, calma. — Laito interviu, com um estranho bom humor — Deixe-me ajudá-lo.

Se havia som pior do que da TV no máximo, eram as vozes estridentes dos seus irmãos em mais uma discussão inútil. Ayato continuava bastante insuportável, Laito, um falso pervertido, e Kanato... Bom... Kanato. Vê-los insistirem em respirar o mesmo ar por mais de dois segundos surpreendera o primogênito, conhecendo bem o gene infantil deles de ter o que querem e quando querem. Talvez todos aqueles anos sem sangue sacrificial a disputar os uniram, pelo menos um pouco.

Aaah. — O arroxeado se vislumbrou de esclarecimento — Clique duplo!

Até mesmo Shuu, que apenas de tanto escutar, havia decorado aqueles malditos combos. Enquanto Ayato revirava os olhos, Laito aplaudiu para o seu irmão:

— Isso. — felicitou, exibindo uma gota de nervosismo — Muito bem, Kanato.

O menor deu uma risadinha assustadora:

— Muito bem, Teddy... — acariciou, orgulhoso, a cabeça da pelúcia em seu colo.

Ao bufar em frustração, o mais velho dos três murmurou:

— É por isso que eu não jogo com vocês...

Desta vez foi Kanato quem girou os olhos:

— É só um jogo, Ayato.

— Só um jogo?! — Ele aumentou sua voz, indignado — Eu tive que esperar quase uma eternidade pra a madame aqui — cutucou bruscamente o ombro de Laito — Customizar a porra do seu personagem!

Fufu. Perdão, meu querido irmão. — O ruivo, aparentando estar se divertindo com a ira do outro, soou insincero ao tirar o seu indistinto chapéu como um pedido de desculpas de tão exagerado — Essa é a melhor parte para mim.

— Ah é? E a minha melhor parte é vencer! — contestou, arrogante — E vocês não tão me ajudando!

E eles seguiram brigando tempestuosamente. Do jeito que os humores se acaloravam, seria a última discussão e, enfim, Shuu obteria a sua preciosa quietude. Grande sonho, no entanto. Da mesma forma que começara, rápido os seus três irmãos de meio-sangue se conciliaram e reiniciaram uma nova partida. Ótimo, pensou, irônico. Ao bocejar um tanto que audível, a atenção deles de repente foi voltada exclusivamente para o vampiro.

Pelas expressões precipitadamente confusas, como se perguntassem: “desde quando esse porra chegou?”, revelou que estavam tão concentrados naquele jogo irritante e naquelas brigas barulhentas a ponto de mal notarem a companhia do mais velho, observando tudo com desdém.

— Vejam só quem apareceu... Nfufu. — Laito apontou em um tom provocativo — Melhor, acordou.

— A Bela Adormecida de ressaca... — Ayato completou sem desviar os seus olhos da tela de carregamento — Ei! Quer jogar com a gente? Eu não aguento mais carregar esse time sozinho!

Aquele comentário presunçoso provocou, desapercebido pelo próprio Ayato, olhares assassinos de seus dois gêmeos. O mais velho dos Sakamaki cogitou por um tempinho, até fechar os olhos dando a sua mesma resposta de sempre:

— Não.

Apesar de tentador o convite, Shuu havia parado no tempo quando se tratava de tecnologia. Tudo que viera depois de 2010 tornou-se complicado demais, inútil demais, sobretudo, incômodo demais. O seu MP3, julgado a melhor – e única – invenção que os mortais já criaram, era o suficiente para entretê-lo.

— Típico. — Kanato comentou, como se o mesmo não valorizasse os seus próprios passatempos.

Diante da distração do trio diabólico, ocorreu o que se revelaria como “a parte favorita” de Shuu em um jogo de console: a TV se desligando nos 99%, quando o cabo do aparelho foi arrancado subitamente da tomada, sem mais nem menos, por um dos subordinados que restavam na mansão.

— Oe! Sebastian! — Ayato foi o primeiro a protestar, levantando-se de sobressalto do assento.

A face seríssima de Renfield, o mordomo chefe, logo desmanchou-se ao perceber a postura ameaçadora do ruivo:

— P-Perdão, Ayato-sama. — Ele balbuciou, na tentativa falha de se explicar — Mas as regras de Reiji-sama são claras. Nada de passar mais de dez minutos na televisão.

Curioso, Shuu acompanhou o olhar irritado de Ayato para a mesinha de madeira lateral barroca, da qual encontrava-se sobre somente uma velha ampulheta. Toda a sua areia já transcorrera da âmbula a outra, marcando o fim do cronometrar de um tempo tão breve. Reiji e suas regras estranhas... Era difícil de acreditar de tão cômico. Qual devia ter sido a desculpa para aquela imposição estúpida?

Tsc! — Ayato voltou ao sofá, cruzando os braços feito um pirralho mimado — Esse quatro-olhos...

Aah. — suspirou Laito, desiludido, relaxando-se contra o encosto — Logo quando começaria a minha novela.

— O quê? — O outro ruivo virou-se, olhando torto para o chapeleiro — Você assiste novela?

Pensando que o seu tormento terminou em um final do qual poderia cochilar em paz, Renfield então pigarreou alto o bastante para impedir que o primogênito despencasse no sétimo sono:

Eeh, Shuu-sama... — A julgar enigmaticamente seu rosto, este se mostrava mais apreensivo do que o normal — Há uns quinze minutos Reiji-sama pediu-me para avisá-lo de que espera por sua presença no laboratório.

Os trigêmeos, compartilhando do mesmo neurônio ao curiar o assunto do qual não os pertencia, exprimiram em uníssono o soar de espanto.

— Haha! — zombou Ayato — Se fodeu!

O que aquele chato quer? Visivelmente irritado, Shuu ergueu-se com dificuldades do conforto que demorou em alcançar. Reiji aparentava ter os olhos e ouvidos pela casa inteira, aguardando a oportunidade perfeita para incomodar no momento mais sossegado possível. Pelo primogênito, o seu “nobre” caçula morreria esperando. Era nítido que este intencionava forçá-lo a ir até ele ao invés do contrário, como fora por muito tempo de praxe.

Ás vezes bastava uma mudança sutil para abalar um mau hábito.

Shuu precisava pensar se acataria ou não o pedido modesto do seu mordomo.

Sozinho.

— Barulhentos. — descontou em resmunga o seu aborrecimento com todos, retirando-se, fatigado, do local.

O loiro, conforme se distanciava, pôde sentir as encaradas fuzilantes das três crias de Cordelia sobre as suas costas.

Insignificantes.

Hunf! Os incomodados que se mudem, não é mesmo Teddy? — As palavras de Kanato foram as últimas que ele conseguira ouvir antes de sumir pelos corredores.

.

.

.

As raras escolhas que Shuu ganhava nunca eram simples. O Sakamaki podia aparecer em um outro dia, se não esquecesse, ou aparecer exatamente agora naquele lugar mais impensável de ir.

O que de mal aconteceria se considerasse a primeira opção? Ele nem obedecia a sua própria mãe, quem dirá Reiji... Um ser tão vil.

Houve uma época da qual o pequeno Shuu guardava esperanças em seu coração, de que um dia se veria livre daquele destino cinzento onde a coroa era a única a brilhar. Essa determinação indomável, porém, somente se intensificou quando, durante a mais uma de suas rotineiras e sucedidas escapulidas para brincar, encontrara alguém que lhe mostrou um tiquinho sobre o mundo além dos muros do castelo, além dos deveres aristocratas, além de tudo que já conhecia...

Edgar Husty.

Já acontecera alguma vez antes na história? Uma amizade entre um vampiro da realeza e um humano da plebe? Se não, quantas leis do Makai e da Terra eles quebraram desde que passaram a marcar, frequentemente, de se verem em segredo na velha floresta sombria?

Aquele garoto mortal, filho de agricultores, movido por um espírito corajoso e modesto, teria sido o primeiro a tratá-lo dispensando de títulos e reverências. Shuu, mesmo tão diferente dele, não fora encarado como um príncipe herdeiro, nem um perigoso ser da noite... Apenas Sakamaki Shuu, o melhor amigo de Edgar, detentor de sonhos e vontades próprios dos quais jamais serviriam de adereço ao trono do reino dos vampiros.

Melhor amigo...

Para quem tinha ‘tudo’, era uma palavra até então desconhecida.

A convivência terrena o fez aprender coisas que, se sua mãe soubesse, ficaria de cabelos em pé. Plantar, pescar, caçar... Todas aquelas atividades “sujas” que um monarca não devia realizar. Apesar de efêmeros e frágeis, os humanos possuíam uma qualidade da qual Shuu se fascinara. Eles não apenas sobreviviam, conforme diziam nos livros em que era forçado a ler e reler. Descobriam, criavam, viviam através da liberdade, o bem pelo qual podiam lutar e morrer de tão valorizado. O bem que faltava na vida cheia de pompa, mas, vazia do Sakamaki. Este um dia concluiu que gostaria de viver como esses seres matinais, longe de passar o resto de sua eternidade sendo um ventríloquo controlado na mão dos mais poderosos.

— O que?! Você não quer ser rei?! — Uma vez Edgar o questionou, completamente incrédulo — Mas parece ser tão legal! Uma cama grande pra pular, gente pra mandar e comida de montão pra devorar!

Após uma tarde longa de brincadeiras, os dois amigos encontravam-se deitados sob a grama discutindo acerca de seus mundos tão opostos. A ingenuidade do jovem Husty arrancara um risinho autoimdulgente de Shuu sem muitos esforços:

— Ser rei exige mais responsabilidade do que imagina, Edgar. Minha mãe disse que ter o apoio do povo precisarei saber tomar decisões difíceis, saber lutar, saber se vestir bem, saber várias línguas, saber negociar, saber tocar instrumentos, saber fazer sacrifícios-

— Calma, calma! Então precisa saber de tudo e mais um pouco? — interrompeu-o, revelando um olhar espantado — Cara, o nosso rei não faz nem a metade disso!

Shuu surpreendeu-se com a revelação:

— E a sua aldeia gosta dele?

— Não. — rir, dando uma mordida na maçã que catara ao trepar em uma árvore — Mas sabe, Shuu, eu acho que em um rei não importa os seus talentos e sim, seu coração.

O loiro suspirou, sentindo cada gramínea abraçando todo seu corpo. Quem dera fosse simples desse jeito:

— Só a boa vontade não é capaz de governar um reino inteiro.

— O que eu tô querendo dizer é: uma boa pessoa com poder faz coisas grandiosas, tipo, você virando rei pode mudar a lei pra deixar de usar essas roupas ridículas. Hahaha! — Ele gargalhou como nunca... E realmente. Os trajes dos quais Beatrix o obrigava a vestir eram, além de bastantes desconfortáveis, espalhafatosas para a idade. Contudo, Shuu fez cara feia para a zombaria do outro garoto que, ao perceber, logo complementou — Ou melhor, fazer humanos e vampiros serem amigos!

A última ideia que Edgar acabara de soltar ao vento deu a Shuu uma perspectiva diferente sobre a vida real. Era muito mais do que seguir só as regras, mas mudá-las. O vampiro havia estudado a algum tempo atrás que as grandes revoluções não aconteciam da noite para o dia. Mesmo se assim que fosse coroado começasse a tornar o seu mundo ideal em realidade, o povo do Makai ainda o respeitaria? E o povo terreno, aceitaria? Parecia-lhe absurdo demais, até para um sonho de duas crianças.

Ademais, tal reflexão alcançou questões mais profundas. Sobre a sua natureza. Shuu precisava de sangue para sobreviver. Isto era um fardo do qual toda sua raça mal se importava: a dor que causavam em outros seres. Na hora de se alimentar, até o loiro esquecia que tinha um amigo humano. O peso da coroa o fez amadurecer bem antes da hora, mesmo que existisse um pouco daquela intrínseca inocência pueril de que todos poderiam ser felizes e livres. O garoto vampiro nem sabia se era capaz de se abster da própria sede, vindo a transformar, por um momento, aquelas esperanças em inseguranças.

— Você acha que eu sou bom, Edgar?

— Claro, oras! Se não teria tomado meu sangue na primeira vez em que nos vimos, né? — semicerrou os seu olhos castanhos, suspeito — Você está agora planejando tomar o meu sangue?

Shuu ficara sem jeito diante daquela indagação. Ferir o seu melhor amigo seria imperdoável:

— N-Não! Nunca!

— Hahaha! Viu? — O Husty, risonho, deu-lhe um leve soco em seu braço — Você é legal, Shuu. Eu te acho legal. Se tornando rei ou não, sempre estarei ao seu lado.

Ouvir aquilo preenchera seu peito da mais pura felicidade. Apenas a opinião de Edgar lhe valia.

— Edgar... Obrigado!

— Bom... — Ele abruptamente levantou-se, correndo em disparada para já contar vantagem — O último que chegar àquela macieira será a mulher do padre!

Tudo estava tão perfeito que o Sakamaki gostaria de que durasse para sempre aquele dia.

Em seu centésimo aniversário, entretanto, aconteceu-lhe o que mais temia.

— Por acaso está procurando isso, irmão? — surgindo da escuridão inalcançável pela luz da lareira de seus aposentos, Reiji, sob um semblante enojado, exibiu pendurado em seu indicador um modesto pé de coelho — É assim que retribui o amor de nossa mãe? Preterindo? Mentindo? Fugindo?

O outro vampiro, que revirara incansavelmente o seu baú à procura justo daquele inestimável presente, avistando-o nas mãos do próprio irmão, tentou esconder o temor do que ele seria capaz de fazer a algo que, ainda que fosse pequeno e inapropriado às vestes finas de um nobre, possuía um valor significativo para o mais velho. Edgar havia talhado de uma das suas vitoriosas caças um tipo de talismã que lhe desse ‘boa sorte’ nos deveres reais.

‘Por favor. De todos os presentes, esse não...’, as palavras entalaram-se rasgando em sua garganta, ciente de que, se mostrasse quaisquer sinais de fraquejo, levantaria suspeitas do distante e implacável Reiji.

Shuu não se lembrava quando, somente sabia que Reiji simplesmente o detestava. Eles partilhavam os mesmos pais, o mesmo palácio, o mesmo sangue... Mas jamais pôde considerar que o moreno um dia já fora o seu melhor amigo, sequer amigo. O herdeiro, além de sonhador, era bondoso e ingênuo demais para dar o troco pelas humilhações constantes ou pelos brinquedos quebrados. No fundo, sem oportunidade para dizê-lo, achava o seu irmão incrível. Ambicioso e autodidata. Parecia mais qualificado para assumir o trono do que ele.

— P-Por favor, — deixou escapar o tremor na voz — Não conte pra ela.

Shuu sempre se perguntou das razões pelas quais levaram Beatrix a conceber Reiji. Por precaução de vir a sua morte prematura já haver um substituto? Não, não... Se assim fosse, aquela mulher o enxergaria com as mesmas ambições. O infortúnio revelava-se ser mais embaixo. O maldito destino de herdeiro apenas pertencia a um: àquele que nasceu primeiro, e somente a ele, preferindo tornar do segundo filho a sua mera sombra.

Uma sombra que sempre iria o perseguir.

— E por que não deveria? — Reiji salpicou um tom de divertimento em sua ameaça. Essa era uma das raras vezes em que Shuu o via sorrir: sempre para a sua desgraça — Você deve saber que andar com mortais é um crime hediondo para nossa raça, certo? Eu estou sentindo o futum deles daqui.

Shuu arregalou os olhos, sentindo um aperto sufocante invadir o seu peito. Desde quando Reiji sabia? E o pior, mais alguém sabia? Se os seus pais descobrissem... Apenas de imaginar o rosto de Beatrix estampado da mais amarga decepção o fazia se enxergar como completamente indigno de ser o seu filho. O seu pai? Não pensaria duas vezes em puni-lo nas terras mais geladas da Terra. Já se pegou tantas vezes sonhando acordado acerca do que poderia ter sido diferente... Será que se ao menos tivesse um pouco do mesmo apoio e zelo que Edgar lhe supria vindo de seu irmão, ele ainda teria vontade de fugir?

No fim, qualquer fa*gulha de felicidade que Shuu conseguia...

Reiji a destruía.

— Espe-

Sem chances de se explicar, o de óculos jogara o amuleto às chamas ardentes... Junto a mais uma das migalhas de alegria do loiro. Tudo o que este gostaria de saber era: por quê?

Por que eles não podiam se dar bem?

— Vê se cresce, Shuu. — bronqueou o mais novo, ainda contemplando o presente sendo reduzido a cinzas — Nem tudo na vida é como desejamos... Isso eu sei muito bem.

Pela primeira vez, o primogênito dera a Reiji o espetáculo das suas silenciosas lágrimas amargas. Shuu enfim percebeu de que não poderia ter os três: o orgulho da sua mãe, a amizade do seu irmão e a companhia de Edgar. O fogo impiedoso o alertava de que um prenúncio trágico estaria por vir se prosseguisse com sua tamanha rebeldia.

Assim que Shuu passara a não mais visitar como antes Edgar, suporte das suas esperanças, parte do seu prazer de viver também se perdia.”

— Shuu-sama. — Os preocupados olhos azuis celestes de outro subordinado foram a primeira coisa que deparou-se a sua frente — Você está bem?

O quanto ele deve ter caminhado como sonâmbulo? Ao se reencontrar com a realidade, percebeu-se estar no meio de um largo e longo corredor aleatório, encostado de mal jeito contra a parede, quase deslizando para o chão, diante de uma janela que tomava todo o espaço da alvenaria com as cortinas bordô escancaradamente abertas. O incômodo Sol poente ainda se fazia presente, o que significava ter se passado dias ou meros minutos?

— Shuu-sama!

O Sakamaki fitou o pequeno e levemente encurvado senhor de cima abaixo... Apesar da mais elegante vestimenta de mordomo, aquelas feições enrugadas lhe eram familiares. Nem o tom grave da voz e sequer os curtos e repicados dos cabelos alvos o convenceram, logo frisando seu cenho em estranhamento ao reconhecê-la.

— ... Lucy.

A senhora olhou os arredores como se precisasse assegurar de que não houvesse ninguém à espreita:

— Eu me chamo Lucian agora, querido. — Ela revelou sussurrante, sinalizando silêncio com o indicador.

Lucy fora a doméstica principal da família por muito, muito, tempo, antes mesmo do próprio Shuu nascer. Os seus anos de servidão eram a soma perfeita ao de todos que já viveram na mansão com o pendurar dos séculos, mérito cujo Renfield jamais conseguiria conquistar nem em seus sonhos.

Ela fora o que os Sakamaki tinham mais próximo de uma mãe.

— Não trabalhava no castelo? — O loiro questionou, ignorando a sua primeira pergunta.

Ela deu uma risadinha rouca:

— É uma longa história... — A grisalha continuava a falar baixinho, mantendo seu olhar inquieto para os arredores. Do que ela temia? — Desde que você não regressou mais ao Makai, aconteceram tantas desventuras... Mesmo aqui, tudo está tão diferente.

Shuu suspirou esgotado.

Eu não me importo, Lucy.

Eu não me importo com nada e nem com ninguém.

— Renfield deve ter lhe dito que Reiji está a sua espera. — palpitou, entornando a voz.

Antes que Shuu reagisse a sua tamanha perspicácia, ela acrescentou, retornando o murmurar afetuoso:

— Te conheço há tantos anos... Se eu o vejo fora dos seus aposentos é porque as obrigações lhe chamam.

O primogênito desviou seus olhos, sem nenhuma palavra a declarar:

Hum. — exprimiu afirmativo.

Para seu infortúnio, ainda estava vivendo o mesmo dia.

— Venha comigo.

Lucian simplesmente partiu, sob o agradável som de saltos rijos dos sapatos sociais, em passos curtos e ligeiros, como se tivesse esquecido por um breve momento do fato de Shuu ser propenso a não seguir ordens. Era o mais velho afinal, assim, a viu frear o passear quando percebera que ele não pretendia sair do lugar.

— Por favor, querido. — Ela insistiu, virando-se para olhá-lo com um ar maternal — Não deixe que as sombras do passado o guiem.

No fim, ele nunca tinha escolha.

— Foi só um devaneio. — O Sakamaki esclareceu, acompanhando-a arrastado logo atrás.

— Devaneio que só fortaleceria mais ressentimentos. — O toque um tanto abstrato das suas palavras, provenientes da experiência, aborreciam o primogênito, de tal forma que este não queria se dar o peso de refletir sobre o que elas realmente significavam — Há quanto tempo vocês não se falam?

A quem ela se referia exatamente? Seus irmãos? Reiji? Momoko? Em até poucas horas, havia se socializado mais do que no período enquanto era um mero foragido... E ele bem queria que permanecesse como estava.

— Há muito tempo. — respondeu vagamente, não deixando brechas para continuar no assunto.

— Entendo... Então esta é uma ótima oportunidade para todos vocês se reconciliarem.

A empregada, apesar das atrocidades que desde sempre presenciara, demonstrava esperanças de que a família Sakamaki alcançaria os seus dias de felicidade. Talvez a velhice tivesse finalmente mexido com seu juízo, o suficiente para que jamais desvencilhasse daquela doce ilusão. Por esta, ela nunca pediu um afastamento. Contudo, eles deixaram de ser as crianças que uma vez cuidou. Seu colo e seus conselhos perderam o conforto. Shuu sabia, pois já acreditou nela.

Com mais perguntas do que respostas, o loiro, por estar entediado de andar, decidiu questioná-la:

— E meus irmãos caíram nesse seu disfarce meia-boca?

— Eles sabem. — Ela parou abruptamente, mudando o tom para soar mais “profissional” — Eu só posso vir até aqui, Shuu-sama.

Foi mais rápido do que ele imaginava. Ambos já estavam a dez passos do laboratório de Reiji. Sentindo então o toque acolhedor da mão de Lucy – Lucian – em seu ombro, todo o mau pressentimento que Shuu cumulava de repente se esvaíra.

— Se quer saber, querido, que fique entre nós dois, a mansão era mais tranquila quando você a comandava. — comentou, dando-lhe duas ou três “tapinhas” em suas bochechas antes de virar as costas — Bom! Vou agora preparar alguns cookies para Kanato-sama!

Isso foi para fazê-lo se sentir melhor? Shuu sem dúvidas demoraria para se acostumar com o alter-ego de sua ex-camareira. Ao já estar de frente a porta do cômodo peculiar, o Sakamaki não parou para pensar duas vezes. Seria uma perda de tempo mudar de ideia depois de praticamente se rastejar até ali. Ele invadiu, sem bater, de propósito deixando a entrada entreaberta. Passando direto pelas poções multicoloridas em ebulição e pilhas de livros categoricamente organizadas, o primogênito somente direcionou seu olhar gélido a Reiji quando, enfim, repousou-se sobre o divã vermelho.

Era confortável, diferente do restante do laboratório.

Cada som que reverberava pelo o pequeno ambiente repentinamente se calou, como se a chegada de Shuu fosse inconveniente o bastante para o próprio tempo parar, sobrando por último o soar afiado do polir das louças.

Realizada pelas mãos enluvadas de Reiji, seus enigmáticos olhos cor magenta até então estavam exclusivamente focados naquela atividade onde exercia sobre sua escrivaninha próxima a janela. Ainda que não aparentasse através do semblante sério, o desprezo emanava por todo seu ser. Mal levou segundos para se interromper. O moreno, retribuindo ao irmão um único e sútil olhar de soslaio por trás dos óculos, suspirou impaciente:

— O que eu devo a essa visita degradante? — indagou-lhe austero, voltando com a limpeza de um pires.

Haviam vários talheres dispersos na mesa. Reiji possuía um estranho gosto por colecionar pratarias, das quais sempre fazia questão de expor nas paredes de seu escritório particular feito pinturas clássicas. Tudo o que seu irmão considerava fino, Shuu achava tão brega que beirava ao vergonhoso. As peças já se exibiam incrivelmente brilhantes, mas não o suficiente para o mais novo. Este em seguida pegou uma faca de cortar carnes, que refletia até sob a luz artificial, e passou a esfregá-la cuidadosamente contra o lenço branco.

Era de prata.

Parecia uma intencional ameaça, todavia Shuu não temia Reiji.

Não mais.

— Você me chamou.

A porta fechou-se em um baque alto sozinha.

Um discreto sorriso soberbo surgiu nos lábios do caçula:

— Chamei? — fingiu dúvida, cessando novamente a limpeza — Eu peço perdão pelo o meu esquecimento. Diferente de você, ando sempre ocupado.

— Como esperado de quem se coloca de bom grado nessa posição. — retrucou, ácido.

Uma coisa Lucy estava certa. Ainda existiam ressentimentos, muitos ressentimentos, independentes das memórias para recordar.

A simples presença um do outro já surtia repulsa.

— Bom grado ou falta de opção? — questionou, apontando a arma branca para o loiro — Francamente. Você é um estorvo para essa família.

Tão indignado quanto o outro vampiro, Shuu defendeu-se:

— Se me fez vir até aqui só pra descontar suas frustrações, eu já tô indo.

— Na verdade, — Ele pôs de volta a lâmina na posição de etiqueta, levantando-se — A priori, eu somente quis me certificar se você ainda está vivendo conosco, digo, parasitando. É inacreditável.

Encarando as costas do mais alto, Shuu não pôde deixar de soltar um risinho irônico sobre seu último ponto:

— Heh. Achou que tinha se livrado de mim?

Reiji foi rondando pela sala, checando se havia deixado algum objeto milimetricamente fora do lugar. Tal exagero revelava-se paradoxal, visto a sua mania por organização funcionar em níveis anormais somente quando estava sobrecarregado. Os anos desagradáveis de convivência não mentiam para o primogênito, que imaginara, desde o tempo de sua ausência, aquele jeito insuportável do de óculos se tornando mais e mais frequentes. Não por acaso, afinal, o segundo filho sucedeu sem contrariar ao posto de anfitrião da família Sakamaki.

Como se não bastasse ter uma carreira de cirurgião em ascensão, toda a administração da mansão agora apoderava-se sobre suas mãos de ferro.

Com tamanho controle e independência, o que mais Reiji se daria por insatisfeito?

— Que azar o meu, não é? — dizia enquanto tirava um grão invisível de poeira da estante — Eu jurava que mal duraria sequer dois meses longe dos seus caprichos.

Um sorriso provocativo surgiu no loiro:

— Não dá pra morrer quem já tá morto.

Reiji virou-se, inquisitivo:

— Onde esteve?

Shuu quebrou o contato visual, ainda que soubesse que cedo ou tarde aquela pergunta viria:

— Por aí.

— Enquanto o Makai estava passando por uma crise. — acrescentou, amargurado — Sabe o quanto da sua irresponsabilidade sujou a imagem de nosso pai?

— Bom. Ele é o rei. — respondeu, com indiferença.

— E você, o sucessor... Ou devia ser. Não pense que só o nosso pai é odiado pelo povo demoníaco, por isso, eu sugiro-

Shuu o interrompeu com o estalar de língua:

— Sei onde quer chegar, quer que eu renuncie o trono.

Pela primeira vez ele deixara Reiji desconsertado, fazendo-o por um momento se recompor ajeitando seu colarinho já perfeitamente impecável.

— É o justo. — continuou, mantendo a compostura — Já que sou eu quem estou assumindo todos os deveres principescos em seu nome.

O mais velho jogou-se nas costas do divã, suspirando farto. Ele podia, certo? Todos os seus problemas em um passe de mágica se desapareceriam completamente, se bem quisesse? O seu nome deixaria de ser relacionado ao clã Sakamaki e viveria sua eternidade miserável sem perturbações? Shuu não tinha mais nada além da coroa, o único bem de direito do qual, enquanto estiver vivo ou irrevogável, jamais seria tirado por Reiji à força.

A menos que ele quisesse ser mal visto pelo seu povo.

Ambos sabiam muito bem como funcionava a lei do mundo invertido: tradicionalismo acima de tudo.

A renúncia era vista como um ato de pura desonra, pois quem decidia o rei como bom ou ruim sempre seria no fim seus súditos.

Shuu encarou aquela “sugestão” como uma afronta, fervilhando o seu peito silenciosamente. Ele presumira que o motivo pelo qual ainda não ter sido enxotado até agora dessa sala, dessa mansão, era a maldita coroa. Esta quem mantinha o pouco valor que lhe restava. Sem ela, o primogênito seria condenado ao eterno ostracismo.

Apenas de pensar em todas aquelas questões lhe bateu um sono.

— Infelizmente você continuará sendo o meu substituto. — concluiu, fechando os olhos.

O loiro pôde ser agraciado com o agressivo som da borracha das luvas se esmagando pelo o cerrar de punhos do vampiro de óculos, dando-lhe um sorriso de canto presunçoso:

— Como é ter o gostinho do “quase lá”, sendo que este nunca chegará pra você, irmão?

Ouviu-se um longo suspiro, seguidamente do pigarrear do doutor:

— Seria mais cauteloso nas palavras se eu fosse você, Shuu. Nós não queremos arranjar um vencedor para o que travamos na última vez, certo?

Shuu apertou as suas pálpebras com força, evitando que se recordasse daquele dia.

— Eu não me importo.

— Yui se importa... E devo apostar que senhorita Momotani também, afinal, quem ela terá para culpar suas desgraças depois?

Deixando aquele questionamento requintado de cinismo pairar pela a mente do vampiro mais velho, os firmes passos de Reiji marcharam-se para longe. Manter a sua visão sob repleta escuridão tornou-se insuportável, com o advir de um emaranhado de pensamentos que preenchessem aquele vazio inteligível. Shuu não tinha como contestar, exceto supor que todos estavam sendo cúmplices de seu pequeno crime. Ele abriu os olhos para o presente, retido somente a encarar o teto de cor enfadonha enquanto ouvia o tintilar das porcelanas. O seu irmão devia estar preparando mais um daqueles chás enjoativos para si.

Shuu lembrava-se como se fosse ontem. A tempestade forte, a mulher ensanguentada em seus braços, a expressão impiedosa de Reiji no hospital... Sem contar o sufoco que fora para não levantarem suspeitas a caminho da mansão, o pulsar quase imperspectivel de seu minúsculo coração mortal, os sermões humilhantes que teve de engolir em silêncio desde então... Todos os seus esforços foram para que não lhe trouxesse problemas futuros.

Fazer Momoko Momotani uma mera presa foi, na verdade, um grande erro.

E Reiji sabia bem mais do que aparentava.

— Sobre a humana. — No momento em que o primogênito trouxe à tona a questão, o sonido da louça repentinamente parou — Você a salvou da morte. Pra quem despreza tanto a raça mortal, essa seria a última coisa que faria. Muito menos sendo por mim... A não ser, claro, que possa tirar alguma vantagem.

Não obteve nenhuma resposta além do despejar calmo do bule.

O cheiro que exalava era terrivelmente doce.

No fim, o que parecia ser uma eternidade, o moreno se pronunciou:

— Encare isso como... Um pedido de retratação pelos anos sofríveis que te fiz passar.

Do jeito que soou, nem mesmo Reiji acreditava nas próprias palavras. Sutilmente, uma ruga de irritação surgiu no canto dos lábios do mais velho dos Sakamaki. Este trincava suas presas com força por trás da face fechada. Podia sentir até o gosto amargo de seu próprio sangue. Seu irmão não devia se sentir no direito de achar que uma mera bolsa de sangue empurraria para debaixo do tapete os males que provocou.

Shuu virou-se para encarar o mais novo:

— Você não é do tipo que reconhece os próprios erros, Reiji.

Por sua vez, antes de refutar, o doutor bebericou um pouco de seu chá:

— Como esperado, continua um completo ingrato. Devo lembrá-lo que quem sempre foge dos problemas é você.

Por mais que odiasse admitir, Reiji parecia ter proeza de tocar em suas mais profundas feridas.

Eu não fujo...

— E se neste exato momento está pensando o contrário, prova-me que não é um covarde em assumir a responsabilidade uma vez na vida. Eu não vou mais tolerar os atrasos de sua reles mortal. A partir de hoje, se ela não vir a comparecer às refeições no horário estimado, passarei a tomar medidas drasticamente severas.

Ciente de que o outro vampiro também não era do tipo que lhe pediria um favor, aquela subestima mascarada de ordem tornou o aborrecimento ainda mais evidente na face do primogênito:

— Tá me mandando procurá-la?

Ele tinha certeza que outros quatro vampiros adorariam receber essa missão.

— Bom. Se isso lhe for um incômodo, o que você acha da ideia de se juntar a ela cumprindo horas e horas de trabalho doméstico?

Um sorriso largo, torto e, sobretudo, sádico radiou no de óculos:

— Agora permita se retirar? Está sujando o meu sofá.

Por que iria o obedecer? Por que se importava tanto a ponto de querer mostrá-lo o contrário?

Já em seu limite, Shuu bruscamente levantou-se. Não valia o tempo e sequer a sanidade discutir com aquele desgraçado, apesar de que tal diálogo poderia ter se desdobrado para um fim mais brutal. Outra vez, o loiro fez o que sabia fazer de melhor: desaparecer.

.

.

.

O primeiro lugar por onde Shuu iniciou sua procura pela a mulher que tanto lhe dava trabalho foi em seu banheiro. Para o seu óbvio azar, estava vazio. Era um lugar improvável, mas qual outro momento onde cultivaram que não fosse associado a ?

Ele mal se lembrava da última vez que conversaram de verdade.

Foi-lhe arrancado do transe por um dos ocasionais pingos de torneira que ecoavam pelos azulejos.

Shuu precisava imediatamente sair dali antes que a banheira, deveras convidativa, o convencesse do contrário e fizesse-a de seu leito.

Adentrando através da porta anexada aos aposentos da Momotani, ele não encontrara desta vez quaisquer vestígios recentes da presença humana. Nenhum cheiro, nenhum ruído, nenhum sangue... A luz vespertina junto da brisa suave eram recebidas de janelas abertas, nem mesmo as suas finas cortinas lilases se esforçavam em barrar aquela pequena visita da natureza; a cama, bem como os seus lençóis roxos estavam perfeitamente forrados; e, para a surpresa do Sakamaki, grande parte dos livros antigos que ela pegava – e não devolvia – deixaram de ficar pelo caminho de quem quisesse passar, as pilhas foram enfim reorganizadas próximas às extremidades das paredes enquanto uma ou outra obra via-se perdida no chão.

A tentativa de arrumação significava que aquela punição de dias atrás envolvendo o sótão surtiu-lhe efeito.

Mal parecia um quarto de quem se via confinado, até o vampiro lançar o olhar para a penteadeira. Haviam vários e vários origamis em formato de pássaro sobre sua mesa, fazendo-o questionar de onde ela tirava tanto papel.

Por outro lado, não deixava de pensar no quão patético a forma como alguns mortais lidavam com o seu próprio tédio.

Nesse momento, ele devia estar dormindo.

Quando Shuu estava prestes a ir embora, concentrando-se na imagem da biblioteca como o seu próximo destino para se teletransportar...

Um latido.

O cachorrinho destruidor de roseiras repentinamente sobressaltou de sua caminha em cima da soleira, correndo desajeitadamente até os pés do vampiro para ficar rodopiando e saltitando.

Quem diria que o projeto de lobo também estava inteiro, considerando que o vira apenas uma vez. Nos braços de Momoko.

Ele – ou ela – parecia genuinamente feliz em vê-lo...

Por quê?

Shuu encarava o peludo da cara amassada com sua típica apatia, mas não fora o suficiente para acanhá-lo. Pelo o contrário, o pug apenas sentou-se, continuando a transparecer sua inocência com a língua de fora e a cauda a abanar.

Você mal deve imaginar o que eu fiz aquela mulher tola passar, né? Se soubesse, estaria tentando me morder agora...

Uma pontada de arrependimento agora atingiu-lhe por ter sido o único a questionar a ideia de sacrificar o cãozinho. Não que ele concordasse com a humana na iminência de dar sua própria vida por um animal estúpido, só disse o que disse porque simplesmente gostava de contrariar.

Foi então que vendo esse babão pender sua cabeça levemente para o lado, na espera de um comando, o loiro percebeu que não iria conseguir se livrar dele nem tão cedo.

Ele ouvira uma vez que os animais eram sensíveis ao sobrenatural. Se o Sakamaki fosse embora em um passe de mágica... Quais eram as chances do ser de quatro patas espernear o bastante que chamasse um de seus irmãos para calá-lo à força?

Seria problemático.

— Que saco. — Seu pensamento falou mais alto.

No instante em que Shuu saíra do quarto da mortal tendo o cão logo atrás o seguindo, esbarrou-se de cara com um Subaru apressado.

— Porra! Não sabe olhar- — Assim que notou o primogênito a frente, o caçula da família travou no meio de seu ataque de fúria. Sua surpresa, no entanto, rapidamente se desfez em sua habitual expressão irritadiça — Tsc! Você... Você não faz ideia do quanto eu quero enterrar a sua cara no soco!

Ele estava mais irritado do que de costume, o que fez o loiro suspirar farto.

— Vá em frente. — disse simplesmente, não fazendo questão sequer de se proteger.

Ele merecia, certo? A culpa de todos os problemas de uma família no fim sempre recaía sobre o primogênito.

O punho que vinha em disparada na direção ao rosto do vampiro mais velho foi facilmente desviado. Ainda que não desse a mínima em servir de saco de pancadas para as birras de seus irmãos, ele não tinha tempo a perder. Venceria pelo cansaço. Outra tentativa e mesmo resultado. Entretanto, mais rápido do que Shuu esperava, acabou que o albino, ao invés de persistir em suas investidas, estalou a própria língua e cruzou os braços em frustração:

— E o que você estava tarando aí?! — indagou em um tom ofensivo, arqueando as sobrancelhas com estranhamento.

Não se irritara com tal insinuação, já que não era normal aparecer no quarto de uma mulher sem consentimento.

E como esperado, muitas das ameaças de Subaru não passavam-se de meros blefes. Se fosse realmente de sua vontade espancá-lo, espancaria sem cerimônias. A julgar pela sua “performance”, entretanto, notara que o outro vampiro estava fora de forma.

Estava fraco.

Apesar da imprudência, Subaru sempre foi ágil.

Ele esteve mesmo se abstendo de sangue? Shuu riu em descrença. Não dava para se livrar da maldição que a natureza sentenciou como intrínseco no âmago de todas as criaturas. Um licantropo era um licantropo por viver refém da Lua cheia, uma bruxa era uma bruxa por viver refém do potencial mágico, um ser humano era um ser humano por viver refém do efêmero desconhecido... Com um vampiro jamais seria diferente, uma prova de que não eram tão superiores assim.

Shuu era convicto disso, pois o próprio já tentou.

— Qual é a graça, hein?!

— Nada do que você tá pensando. — contornou — Só tô procurando a humana.

O rosto do outro vampiro não impediu de escapar mais uma vez estar ligeiramente surpreso. Era incrível como um ser tão distante quanto Subaru conseguia demonstrar péssimo em se manter inexpressivo.

O completo oposto dele.

Ah?! Finalmente aquele tiozão se tocou que a responsabilidade de babá devia ser pra você e só pra você, seu maldito!

Responsabilidade... Se mais alguém proferisse de novo essa palavra hoje, ele iria...

Um chorinho agudo interrompeu seus pensamentos. O cachorro, que bisbilhotava por trás de suas pernas, ruía de medo diante do olhar irritadiço de Subaru. Este, por incrível que parecesse, não aparentava mais carregar a mesma ira de minutos antes dos seus caminhos se cruzarem, o que fizera o loiro se perguntar por qual razão havia sido provocado.

Melhor, quem, ao notar as vestes rebeldes de Subaru molhadas.

Essa razão apenas devia ter um nome, considerando todos com quem interagira em menos de um dia.

Momoko.

— Hum, então você tem alguma ideia de onde ela esteja.

— Hahaha! — riu sarcástico — Boa sorte com isso, pois eu não vou contar.

É mesmo? Então ele a viu.

— E você tomou banho com ela? — inqueriu, simulando um risinho malicioso — Por que suas roupas tão encharcadas?

Conhecendo bem Subaru, o mesmo reagiu à aqueles questionamentos sem pudor com um misto de agressividade e vergonha:

— N-Não é isso! Seu velho pervertido de merda! Aquela miserável... Tsc! Me fez cair na porra da fonte!

Fonte... Objetivo alcançado. Momoko devia estar no jardim. Assim que Shuu deu um sorriso discretamente vitorioso, tornou-se tarde demais para seu irmão caçula perceber que havia o ajudado.

— Obrigado pela informação.

Fazendo uma pequena cratera na parede, Subaru rebateu:

— V-Vá se fuder!

O vampiro mais novo de propósito trombou violentamente em Shuu, saindo de sua frente. O ressentimento era quase palpável.

— Ei. — Shuu chamou, escutando os passos do albino imediatamente cessarem — É melhor você se alimentar.

Quando o primogênito dos Sakamaki se virou na direção onde Subaru se afastava, deparou-se com um corredor vazio, deixado na incerteza dele ter ou não lhe dado ouvidos. Muitas vezes Shuu se enxergava nele, feito em um espelho muito antigo.

Jovem, sensível e tolo.

Não que se importasse. Somente gostaria de evitar as consequências devastadoras por ir contra suas necessidades obscuras.

Estas não supridas davam uma dor de cabeça.

Determinado a se livrar de vez da tarefa que Reiji lhe concedera, Shuu lançou o olhar para o cão que o observava curioso.

— Que tal ser útil e me mostrar onde exatamente ela tá? — ordenou, frio.

Ingênuo, o pug ficara eufórico pela migalha de atenção. Conforme o comando do Sakamaki, duas ou três fungadas no carpete foram suficientes para o canídeo tomar caminho a frente... Até demais, já desaparecendo pelo o outro corredor.

Estúpido, pensou.

A sorte era que ele deixava pequenos rastros de baba por onde fosse.

Guiado pela a saliva que manchava o chão felpudo, Shuu lutava para se manter em alerta aos seus arredores. Não queria perder o controle de seu corpo para as memórias infelizes. Estas espreitavam pelo seu imperturbável ócio mental para se acomodarem feito uma doença. Tudo parecia familiar e, ao mesmo tempo, estranho.

A mansão era a mesma, mas por que sentia como se tivesse diferente? Limpa e vazia, diferente dos primeiros anos que passaram a habitá-la.

Diferente do próprio, o antigo anfitrião, que era sujo e vazio.

Talvez até o que permanecesse mudava, ainda que levemente.

( Z z Z z Z z )

O quão patética era a coincidência de ouvir os violinos de Antonio Vivaldi tocando os acordes mais alegres da partitura do Outono, no exato momento do qual este aparecera para Shuu, saindo pelas portas que o abrigavam do ar livre, em seu incrível ápice?

Para a sorte dos seus olhos, o Sol enfim se jaz pelo horizonte. Desse ocaso, viu o céu transmutando em cores. Do azul para o laranja, do rosa para o lilás... Tal crepúsculo indicava que se passara muito tempo desde que ele deixou o próprio quarto.

Que desperdício, pensou. Tempo precioso que podia estar usando para...

Nada.

Quando menos esperava, o vento gélido o atingiu agressivamente com a horda de folhas alaranjadas secas da estação. O vampiro praguejou algo incompreensível em resmunga, demonstrando não ser um grande entusiasta de ficar cercado pela fauna e flora. Diferente de seu "cão-guia", que correu desgovernado pelo enorme jardim pitoresco como se tivesse esquecido de seu real objetivo.

Encontrar Momoko.

Enquanto latidos eram difundidos por todos os cantos, o Sakamaki, tanto pensativo quanto frustrado, pôs os dedos entre a glabela tensionada. Aquela mulher simplesmente podia estar em qualquer lugar... Até mesmo na floresta sombria adentro, que encontrava-se além do grande lago cristalino, à milhas e milhas de distância do campeiro de rosas brancas ao seu lado.

Tudo estava em completa desarmonia. A música, o ambiente, ele mesmo...

"— Devolva-o. — A voz de Beatrix nunca soou tão ríspida. Somente com uma singela palavra era capaz de impor sua autoridade — Agora.

Esta seria a segunda vez que ela ditara para o pequeno príncipe se livrar do filhote de shiba em suas mãos. O arrependimento afligiu em Shuu amargamente. Se soubesse que a sua mãe reagiria com tamanha intolerância, ele jamais teria corrido entusiasmado para mostrá-la o cachorrinho que salvou de se enroscar nas raízes de uma árvore.

Bastou esse singelo ato, o cachorro gostou tanto de Shuu assim como Shuu gostara do cachorro. O Sakamaki jurava que, ingenuamente, um vínculo inseparável havia se criado.

— Mas mãe-

E que sua mãe iria achar uma graça, que iria deixá-lo levar para casa.

— Basta. — interrompeu-o, sem dar-lhe oportunidade para tentar convencê-la — Essa criatura vai apenas atrapalhar os seus estudos principados.

Naquela época, ela detinha tanto poder sobre seu filho que este temia em desobedecê-la, em decepcioná-la. O medo era tanto que, apesar de achar certas regras injustas, engolia as desilusões em silêncio.

O loiro pôde escutar as risadinhas enjoadas de Cordélia próximo aos arredores do jardim, como se ela estivesse a par da repressão.

A mulher de vermelho então suspirou:

— E os germes? Você não pensou nos germes que essa criatura pode ter? — frisou, tentando provar que se importava.

Miseravelmente tentava, pois Beatrix demonstrava mais se importar em ser a melhor esposa que dera à luz aos melhores filhos do Rei dos vampiros regente.

O cachorro que não tivera chance de ganhar um nome chorou quando foi, contra vontade, separado de Shuu pelos os empregados da mansão.

Shuu queria tanto chorar, espernear, mas que exemplo estaria dando para os demais?

Depois de passar o resto do dia trancado em seu quarto, forçado a ler livros difíceis enquanto assistia pela janela seus outros irmãos brincarem, o herdeiro da família Sakamaki aprendeu de vez que devia esperar nada do que sua mãe não quisesse.

Ele nunca mais encontrou o seu amiguinho peludo novamente."

Ao abrir os olhos, seu inconsciente tramou o inevitável em se deparar com a primeira paisagem à sua frente.

O grande carvalho, que da mesma imagem e semelhança o deixara cair em um gatilho memorial falso.

E pensar que ele já fora assim... Tão vivaz. Completamente diferente do que era hoje em dia. Bom para nada, carregando pela perpetuidade uma parte morta de si que jamais aproveitaria o fato de que o túmulo de Beatrix não viria o impedir de realizar seus sonhos.

Sonhos roubados, no entanto, nunca retornavam.

Wolfgang, assim como passaria a chamar o pequeno pug a partir de então, persistia em latir, contudo, estranhamente apenas para aquela árvore milenar que começara a perder suas vívidas folhas verdes. Em plena época de colheita, não era incogitável se tratar de meros esquilos refugiando-se com as últimas nozes do dia. Algo que só o atrasaria mais, mas Shuu tinha alguma outra pista? O primogênito aproximou-se, permitindo seus pés descalços se arranharem contra a sujeira do piso empedrado que lindava entre o artificial e o natural.

Um livro sem título caiu feito uma maçã podre, com suas páginas para o chão. Pouco interessava a Shuu seu conteúdo.

O vampiro então olhou para cima. Foi-lhe impossível não arregalar os olhos de tamanha surpresa.

Do galho mais alto de todos, lá descansava Momoko Momotani. Inalcançável e inatingível. Ela dormia tão despreocupada para notar que um de seus típicos livros escapou pelos seus braços relaxados, aparentando sequer imaginar o caos que perpetuara para trazer o Sakamaki até aqui, o que levemente o irritou.

Eram suas presas que vinham até ele, não o contrário.

Pensando em acertá-la com o primeiro pedregulho que encontrasse, Wolfgang passou a raspar com suas garrinhas a casca da árvore na tentativa inútil de subir, o que, por incrível que pareça, a despertou de seu sono profundo. Momoko prontamente ajeitou os seus óculos, incrédula no que avistara:

— Kokoro?! Como você- — Assim que notou o primogênito de braços cruzados, sua expressão em questão de segundos emburrou-se — Ah... Você.

Dispensava-lhe de declarações claras para perceber o quanto ela o detestava.

E isto era recíproco.

— Como subiu aí? — questionou, ligeiramente curioso.

— E isso te interessa?

Ele deu um suspiro pesado, impaciente. No fundo, gostaria de saber se a Momotani ainda deteria dessa temeridade de contrariá-lo sem estar sob a guarda do topo do carvalho.

— Nem um pouco. — revidou, mantendo seu tom monótono — Reiji que me obrigou a procurá-la. Acho que tá quase na hora do café.

Hunf! — virou o rosto, indignada — Como se eu não soubesse...

Shuu então revirou os olhos para tamanha arrogância:

— Se sabe, por que não nos poupou desse encontro deprimente?

Às vezes era difícil não achar que ela estava tentando obter sua atenção, como todas faziam.

— O-Ora! Eu fiquei entretida com o livro! É normal pras pessoas perderem a noção do tempo quando se ler um bom livro!

Se a Momotani ainda guardava qualquer pingo de amor à vida desde a sua decisão estúpida de viver sob o teto de vampiros, já estaria no salão de jantar sem que precisassem insistir. Por essa razão, o Sakamaki não se deixou por persuadido.

— Hum. Me parece uma desculpa pra não dizer que tá presa.

— Eu não tô presa! — Momoko negou entredentes, com toda a convicção do mundo.

Até esse ponto do conflito, Shuu acreditara que já tinha cumprido sua parte na missão. Não havia mais nada a fazer por ela. Eles não eram crianças. Preferia um dia inteiro de tarefas domésticas a passar pela humilhação de tentar escalar o tronco para apanhá-la à força.

Má vontade? Talvez. Pelo menos, quando se virem confinados juntos nas dispensas da mansão, ele teria o seu sangue no final.

— Tá. Se você diz, eu já tô indo.

Assim que o Sakamaki virou as costas, seus passos foram detidos por um grito:

— Espere!

Momoko parecia hesitante, mas logo suspirou rendida, cabisbaixa de vergonha, finalmente confessando:

— Eu... Eu acho que esqueci como descer.

Como esperado de uma humana que mais atrapalhava do que ajudava.

— Que problemática... — murmurou para si.

Disposto a resolver o quanto antes a insensatez física daquela mortal, o loiro estendeu seus braços ao vento:

— Pule.

— P-Pular?! — Ela exclamou, fitando o chão apavorada — Ficou maluco?!

— Eu vou te pegar.

— Não confio em você!

Realmente. Nem ele confiaria em si mesmo. Seria mais interessante deixá-la como as folhas outonais faziam de melhor: cair. Ele não era obrigado a mantê-la viva de qualquer maneira...

Isto até lembrar-se do inesperado telefonema daquele cara. O que ele ditara para Reiji a ponto de convencê-lo que seria uma boa ideia ter um cachorro na família? A reunião na chamada noite do cometa foi um momento arquitetado pelo próprio ou era seu irmão mais novo, como de costume, dando-lhe o troco desta vez por todas as ocasiões que acabava revelando as notícias do pai de última hora? Podia se tratar apenas de uma mensagem insignificante... Da mesma forma que existia aquela chance mínima de ser algo que Shuu sequer imaginara.

Seria possível?

Não. Momoko Momotani não era especial.

Ele ia saber se fosse. Sempre sabia.

Shuu teve mais certeza disso quando deparou-se com a humana, ao invés de obedecer sua ordem, tentar descer por si só. Que teimosa, pensou. Momoko tateava o tronco áspero, encontrando alguma forma de chegar no próximo galho. Demorou um pouco, inclusive, quase desiquilibrou-se ao cruzar de um toco para outro. Quando finalmente conseguiu alcançá-lo, deu-se o começo de seu mau agouro. Ela percebera que não tinha noção de qual seria o seu próximo passo. A mulher estava feito um gatinho de rua trepado em uma árvore, completamente suspensa no ar, à mercê da força de um ramo que aparentava a qualquer momento iria se partir.

Apesar da queda iminente, Momoko rosnava em esforço, parecendo recusar-se a clamar por socorro. Ela surpreendentemente mantinha-se firme, empenhando-se ao máximo para retomar seu corpo inteiro à superfície desse ramalho.

O que não podia dizer o mesmo de seu pug, que passou a latir irritantemente dez vezes mais em desespero.

O vampiro assistia àquele espetáculo suicida com indiferença no olhar, ainda que, no fundo, estivesse achando divertido. Não que lhe houvesse a princípio o intento de prolongar o sofrimento da humana. Se pudesse, se a Lua cheia surgisse na surdina das nuvens sombrias, Shuu ganharia a capacidade de voar e a salvaria.

Estava ficando tão ridículo que o primogênito não conteu-se de um riso malicioso, o que não agradou Momoko:

Eeh?! Qual é a graça?!

— Dá pra ver sua calcinha.

— O-O quê?!

Previsível. Ao dar ciência de seu pequeno e lascivo descuido, as mãos da mulher em um instante perderam força o suficiente para escorregarem do galho e, desta vez, seus pulmões não se conteram em gritar com toda força.

O chão acabaria sofrendo uma bagunça feia de ossos quebrados, da qual Shuu não queria ter de lidar. Dito e feito, sem sofrer quaisquer impactos, ele a segurou firmemente em seus braços feito uma princesa.

Um silêncio desconfortável pairou entre ambos, ficando a se encararem na espera de alguma palavra. O primogênito podia escutar os batimentos cardíacos acelerados de Momoko, que, mesmo virando o rosto, este via-se incapaz de esconder a vermelhidão.

O Sakamaki achou engraçado sua inabitual ingenuidade. Mesmo que ele tentasse olhar descaradamente por outro ângulo, o vão preto desempenhado pelo forro marinho da saia longa da mortal não o permitiram que conquistasse uma bela visão entre suas pernas. Uma pena, refletiu, pois gostaria mesmo de saber se estava combinando.

— É brincadeira.

Antes que a Momotani abrisse a boca para protestar, Shuu a soltou bruscamente por desprevenido. Ela caiu direto de bunda, ao lado de seu livro, sobre a relva seca com Wolfgang pulando subitamente em seu colo para lambê-la.

— Não, Kokoro! Nã- Hahaha. Faz cosquinha.

Ko... Ko... Ro? O Sakamaki entortou o nariz em estranheza. Não gostou do nome.

— De nada. — disse com desdém, desviando o olhar daquela cena grudenta demais para seu gosto.

Livrando-se dos carinhos de Kokoro, quando retomou sua literatura anônima em mãos, o semblante leve de Momoko subitamente desmanchou-se no instante em que seus olhos encontraram a figura do Sakamaki inexpressiva. Ao fuzilá-lo debaixo, ela arqueou desconfiada as sobrancelhas:

— Por que ainda tá aqui?

— Pensei que eu já tivesse dito.

Ela levantou-se levando o livro debaixo do braço enquanto espanava a poeira de suas vestes extravagantes:

— Não sobre me acompanhar até o salão. — falou firme, ultrapassando o Sakamaki — Vamos, Kokoro.

Mesmo hesitante, o cachorro preferiu seguir a mortal a caminho de volta à entrada da mansão. Devia deixá-la ir, mas sua traiçoeira curiosidade falou mais alto

— Pare. — E assim a jovem fez diante de sua voz calma, mas carregada de imponência — Eu tenho perguntas.

Querendo ou não a companhia do vampiro, ela seria forçada a lhe responder. O que aconteceu com Subaru? Por que subiu em uma árvore? E como sobrevivera até este exato presente?

Momoko pôs a mão sobre o queixo, fingindo pensar:

Humm... Que engraçado, e espera que eu responda quando você sequer responde as minhas. — suspirou, frustrada, murmurando sua última queixa — ... Nem me pediu desculpas.

Desculpas? Por ele ser e agir como um vampiro puro? A moral humana era deveras presunçosa – para não admitir, complicada – Nada era sobre Momoko. Se não fosse ela, outra sofreria em seu lugar pelas suas necessidades sombrias. Shuu ainda apontaria a faca à qualquer uma, ainda marcaria as presas em qualquer uma, ainda tocaria carne proibida de qualquer uma...

— Ainda tá chateada por aquele dia? — questionou, provocativo.

Sua indagação despertou angústia no olhar da mortal. Ela encolheu-se, cruzando os braços em amparo. Estava longe de ser pelo frio, a cada segundo revelando-se mais gradual. Ainda que o Sakamaki não fosse tão poderoso a ponto de ler mentes, ele tinha certeza, seja lá o que se passava no âmago da Momotani, esta devia estar revivendo uma dor que poderia ter sido evitada de se afligir.

A dor de uma confiança quebrada, explorada como coisa.

Ele rir, cínico:

— Então desculpas, Momo-chan.

O que ela poderia esperar de diferente de uma criatura da noite? Momoko virou-se para o loiro, revoltosa:

— Céus! Você é tão- Você é mesmo o mais velho?

— O que você acha? — Ele perguntou retoricamente.

Era esperado que a humana fosse analisá-lo de cima abaixo, com seus olhos dourados incisivamente julgadores. Shuu não se sentiria ofendido caso ela respondesse o óbvio. Ninguém que prezasse pelo título de mais velho da casa andaria pelos lugares como se tivesse acabado de acordar.

— Bom... Se não me dissessem, eu pensaria em Reiji-san. E olha que até como um tio ele se parece.

Claro, ironizou em sua mente. Quem mais seria quando o restante de seus irmãos agiam como se ainda estivessem no maternal?

— Acredite. Ele prefere assim.

A Momotani olhou para o céu, escuro e sem estrelas. Era um olhar de quem acabara de cair para a realidade:

— Heh. Parece que vou ficar mais um dia sem comer... — comentou, tranquila até demais para alguém que passaria fome.

Com o vento esvoaçando contra as suas soltas e selvagens madeixas negras, ficou nítido ao Sakamaki, sem necessidade de encará-la secante para reparar, as marcas de magreza em sua aparência. Esta tornara-se mais delicada e defessa, como se qualquer pancada, por menor que fosse, a quebraria.

Não por acaso, ela tomara em seguida uma escolha contraditória ao sentar-se no banco de mármore, este de vista para o majestoso chafariz ornamentado por gárgulas que jorravam cascatas d'água através de suas bocas ferozes.

— Ainda tem tempo. — garantiu, ainda que não soubesse de quanto.

Valeu o mesmo que falar com o vento, Momoko permaneceu naquele canto sem mover um mísero músculo. Distante, reflexiva... E tola. Ciente dos riscos, ainda iria arriscar-se. Se era o caminho da inédia que ela seguiria, que seja. Shuu não iria obrigá-la. Pressionado a repetir o mesmo ato da morena, ele acomodou-se na outra ponta do assento, deixando o limite do limite de espaço entre ambos. A Momotani continuou a lhe dar o devido tratamento silencioso, retraindo os ombros diante de sua repentina proximidade.

Aquela estranha quietude estava longe de ser pela qual o vampiro tanto prezava.

O silêncio lhe soava ensurdecedor.

Nem as últimas notas de Vivaldi, nem as águas correntes da fonte e nem os grasnar dos corvos se salvavam de ser ofuscados.

Por que sentia-se tão incomodado?

Inesperadamente, uma risadinha autodepreciativa guinchou da mais baixa:

— Acho que sou amaldiçoada... — A humana enfim desembuchou-se, pondo seu livro cor de musgo sobre o vão que os separavam — Não importa o quanto eu tente seguir as regras direitinho, um de vocês sempre me aparece no lugar e na hora errada.

Shuu sabia que Momoko estava insinuando mais do que uma mera lástima. No breve tempo em que conviveram juntos como colegas de trabalho, existia uma mania da qual o primogênito achava bastante irritante na morena: as alusões por trás de suas palavras. Nem sempre era clara, direta, sobre o que realmente queria dizer.

Praticamente diferente de como ele se expressava.

O mesmo valia para as suas ações. Quando a humana falara sobre maldições e regras, ao mesmo tempo que se dispôs a ficar do lado de fora enquanto seus ínfimos minutos esgotavam-se, significava que ela via-se não tendo nada a perder. Independente se, naquele exato momento, ambos estivessem correndo já de encontro a comida sendo servida à mesa.

Na pior das hipóteses, o que Shuu também teria a perder? Um ego que era pisado pelo amargurado de seu irmão dia após dia? Por que esforçou-se tanto para chegar até aqui, com ela?

Por essas malditas alusões, o vampiro teve de reconhecer que havia interpretado errado os aparentes sortilégios até aquela fatídica noite, da qual seus destinos foram impermanente selados a mansão Sakamaki.

— Faz muitos anos... — A Momotani sussurrou para si, esquecendo-se que o mais discreto dos sussurros continuava a soar em bom tom para os ouvidos apurados de um vampiro.

O cheiro agradável de sangue amargo subiu pelo o ar. Expostas rente aos olhos vidrados de Momoko, que percebera somente quando a adrenalina transformou-se em agudo desconforto, suas palmas das mãos revelaram-se terrivelmente machucadas e sujas, não acostumadas a se agarrar por tanto tempo em chapiscos. Gotículas escarlates passaram a escapar dos pequenos cortes encrustados pelas farpas de madeira e terra, acompanhados de imperspectíveis tremores sobre a derme fina.

Se ela tivesse o escutado, os arranhões não ficariam tão... Chamativos. Ao contrário da última vez, o vampiro conseguiria conter a vontade de estancar o fluído vital com suas próprias presas.

— O quê? — inquiriu com descaso, ainda que mantivesse de esguelha o olhar fixado no vermelho, despertando-a do transe.

Aah, isso? — fechou os punhos sem graça, apertando as próprias feridas sem demonstrar quaisquer resquícios de dor — É uma longa história...

Shuu girou seus olhos, colocando a música de seus fones no volume máximo. Detestava longas histórias.

Momoko correu até a fonte e agachou-se para lavar suas mãos esfoladas, continuando:

— Sabe? Eu subia bastante em árvores quando pequena, mas, desde que me mudei pra cidade faz alguns anos, perdi esse hábito... — contava casualmente enquanto chiava de ardor pelo contato com a água fria. A Momotani por um breve instante virou a face para olhar o seu ouvinte vampírico, emburrou-se por vê-lo fingir estar dormindo em desinteresse — É. Acho que essa parte não é interessante pra você. Enfim, eu pensei que seria uma boa ideia replantar as rosas que Kokoro vivia arrancando do jardim. Como eu não sabia onde vocês guardavam as sem*ntes, decidi ir pelo método mais tradicional, que qualquer pessoa leiga em plantio faria: retirar as sem*ntes de cinco a sete cravos pra multiplicar dez vezes mais, 'tendeu? Bom. Subaru não viu desse jeito. Ele já chegou apontando que eu tava pegando as flores por capricho. Tentei me explicar, mas senti que ia partir pra cima de mim. Não sei se ia me bater, me morder... Eu só saí correndo e acabei o fazendo cair na fonte, o que o irritou mais ainda. Não vi outra maneira de escapar dele a não ser me refugiar nessa enorme árvore. É isso. Pelo menos antes de você... Eh... — corou por relembrar daquele momento específico — Me descer, pude apreciar a bela vista de um lago.

O olhar da mulher fora tomado por uma centelha de esperança no momento em que mencionou as águas frias e profundas que enfeitavam além do jardim.

E o vampiro conhecia bem aquele olhar.

Às vezes você age como ele...

— Eu não tentaria fugir por lá se eu fosse você. — disse simplesmente, cortando qualquer sinal de fé que a restava pela raiz.

Eeh?! M-Mas eu nem tava pensando-

Ele fez questão de interrompê-la:

— Muitas morreram de hipotermia ou afogadas tentando cruzá-lo.

Momoko pôs as mãos na cintura:

— Não tá dizendo isso pra me assustar, tá?

Infelizmente o loiro não estava, considerando que era uma forma de morrer bem sem graça para uma mulher como ela. Metida a esperta.

— E o porquê eu faria? Heh. Sua carinha de medo quando te peguei já satisfez minha vontade.

Momoko apenas virou o rosto em resposta.

Tão orgulhosa... Antes que Shuu pudesse respondê-la, dentre as sombras dos arbustos mais distantes, surgiu uma encandeante luz fugaz que facilmente chamou-lhe atenção, acompanhado logo em seguida de um som inusitado. Semelhante a um flash de uma câmera fotográfica.

A música em seus fones de repente parou, como se tivesse ocorrido uma espécie de interferência.

Isto foi mais que o bastante para perceber que os dois não estavam mais sozinhos.

— Você escutou o mesmo que eu? — Momoko indagou, olhando os arredores preocupada.

Logo quando estava na beira de tirar uma merecida soneca, Shuu, frustrado, forçou a se levantar, apoiando-se brevemente sobre o ombro ossudo da morena:

— Fique aqui.

Seja quem fosse o bisbilhoteiro, este já possuía a sua morte sentenciada. Dotado de super-velocidade, o vampiro já encontrava-se no exato local onde vira e escutara os rastros de quem julgava ser um espião.

Sons de gravetos se partindo ressoaram por trás do arbustal, do qual, pronto para atacar sem pensar duas vezes o fugitivo barulhento, este o surpreendeu revelando-se ser Wolf... Kokoro!

Os olhos azuis do mais velho tornaram-se completamente opacos pela quebra de expectativa... E pensar que um dia ele desejava ter um cachorro.

— Kokoro! Que susto! — exclamou Momoko, com a mão no coração.

O pug, energético e com a metade de um graveto na boca, novamente saíra correndo para longe e sem destino.

Estranho, pensou. Jurava que tinha visto algo diferente naquela mata rasteira... Talvez pudesse ter sido o mero reflexo das luzes flavescestes de dentro da mansão emergindo sobre a fonte. Era melhor qualquer resposta do que gastar energia pensando em uma explicação lógica para o que viu e ouviu.

Ao menos o preocupante já passou.

Em um piscar de olhos, no instante em que Momoko viraria para o banco, já ocupava-se um Shuu de pálpebras fechadas. Passou um tempinho, o vampiro esperava que a mortal dissesse alguma coisa, qualquer coisa... Sem sua confortável trilha sonora tornava aquele silêncio mais perturbador.

Ela o deixou mesmo sozinho?

Engolindo o seu próprio ego, ao deixar que a visão lhe mostrasse a realidade a sua volta, deparou-se com uma Momoko de olhos incrédulos para seu cachorro que a encarava enquanto tentava correr, batendo o focinho achatado repetidas vezes contra a estrutura da fonte.

O primogênito não podia perder a oportunidade.

— Parece você. — brincou, ao recordar-se de sua queda pela escadaria abaixo do Castelo de Osaka na tentativa falha em fugir dele.

— É. — Ela concordou, seca — Faz parte de ficar trancafiada em um lugar onde, por qualquer coisinha, seus carcereiros de cristal podem te matar.

Esta foi a indireta mais direta que já escutara, o que arrancou-lhe um riso sincero.

— Que sutil.

A Momotani voltou a se sentar, suspirando profundamente:

— Bom... Quais são as suas perguntas?

A retomada daquela questão o pegou de surpresa. Não apenas pelo fato de ter já conseguido praticamente todas as respostas que queria, sem recorrer a ameaças, mas ver que a jovem humana estaria disposta, se necessário, a contar mais, a lhe revelar mais, se expor mais... Era demais para ele.

Quanto menos soubessem a respeito um do outro, seria melhor para ambos.

Shuu então massageou a nuca, sem jeito:

— Eu nem esperava que fosse colaborar...

— E eu tenho outra escolha? Não sei quando vamos nos encontrar de novo...

Sentimento de confusão atingiu o vampiro.

— Fala como se eu tivesse voltado de uma longa viagem.

— Não é isso... Você me evita. Como mesmo disse, não 'taria aqui se não tivessem te obrigado. — Ela suspirou, farta — E se tá esperando que eu vá atrás de você, implorando por respostas, engano seu. Na verdade, — levantou-se com o livro nos braços, afastando-se dele — Eu nem devia tá falando contigo. Eu quem devia tá te evitando. Vamos, Kokoro!

Momoko se chocou com seu cão já adormecido ao lado do fontanário e, aproveitando-se dessa situação cômica, Shuu imediatamente expôs:

— E tá fazendo muito bem. — Desta vez, ele não estava sendo sarcástico. Era isso o que queria — Faz um bom tempo que eu não escutava seu nome pela mansão. Achei que já tivesse em uma cova.

A Momotani encheu as bochechas de ar, indignada:

— Eu não irei morrer tão facilmente assim... — rumorou, quebrando o contato visual.

Nunca imaginou que além de irritante, Momoko fosse piadista. Shuu deixou escapar um riso de puro ceticismo, resguardando suas dúvidas a respeito do que ela acabara de afirmar para si.

Heh. Aposto que vai.

Todas sempre morriam. Quanto mais tempo ela lutasse contra o inevitável, pior seria seu fim.

Por um milagre, os seus preciosos MP3 finalmente voltaram ao normal e, como se já não bastasse tamanha conveniência, passou inundar-lhe dos mais agradáveis ulos. Incomparáveis a qualquer concerto internacional de ópera, jovens cantavam do mais méleo prazer ou da mais torcida dor.

— Acho que retornamos à estaca zero. — Shuu comentou, estendendo um fone para a mulher a sua frente — Você sabe, depois de termos começado com o pé esquerdo...

Momoko então passou a fazer vista grossa:

— E o que escutar música com você vai mudar entre a gente? Eu ainda não confio em você.

— Não confie. — sacudiu o pequeno apetrecho em mão, insistindo para que ela o pegasse — Vai me dizer que não tá curiosa pra saber um pouco sobre mim?

Seria incrivelmente tentador para ela e, para o vampiro, útil.

Ele precisava manter o vínculo que formaram, ou seja, sem vínculo.

Depois de muita relutância, Momoko sentou-se ao seu lado, dependente do fio do fone que os conectavam.

O Sakamaki contemplou as reações da mortal. Uma bela combinação de ânsia, confusão e horror vinham retorcendo pelo seu rosto, irrigando um leve rubor pelas suas magérrimas bochechas. Nem suportou prolongar mais um segundo sequer sujeitando-se a escutar aquela molhada melodia gutural, a Momotani retirou o aparelho como se espantasse um mosquito chato zumbindo no ouvido.

Momoko piscou os olhos freneticamente, tentando processar o que acabara de acontecer.

— Esses... Gritos... São de verdade? — Sua voz tentava transparecer calma, mas suas palavras saíam quase robóticas — Tipo... Daquelas que vieram antes de mim?

Hilário. O comum de quem caía em suas provocações era primeiramente ficar sem palavras, afinal, quem suspeitaria que o mais cabeça fria dos Sakamaki possuísse alguma peculiaridade obscura? Por outro lado, Momoko já havia conhecido esse seu lado aflorado. Aquilo era somente mais uma razão para que a jovem continuasse afastada do primogênito.

— Talvez. — respondeu, bem-humorado.

Se havia algo mais divertido que torturar com a perversão, era torturar com a incerteza. Ver a morena já de pé mostrava que o Sakamaki conseguira atingir com êxito sucessivo sua intenção.

— É óbvio que não. — elucidou, sério — Além do mais, isso importa? A menos, — Em seus lábios logo pintaram um discreto riso malicioso —, é claro, que somente uma garota suja estivesse tão interessada nesse tipo de música.

Momoko semicerrou um olhar indignado:

? Se isso é música, então eu sou o Tchaikovsky.

Ele rir, divertido:

— Quase lá. Diria que você tá mais pra Händel¹.

Bem esperado de uma leiga sem talento, esta fez uma cara desentendida:

Hunf. Até parece. — Contudo, ela fingiu entender — Vamos, Kokoro!

Dado seu terceiro e último chamado, bradante e severo, o pobre cãozinho despertou de supetão e, desta vez, esse seguiu atrás da sua vigente dona sem enrolações.

Por sua vez, Shuu a viu ir com o seu andar pomposo até desaparecer entrando na mansão. Ah... Como ela era difícil de entender...

Sua mente devia se encontrar em absoluta paz por ter retomado a solitude, mas, por uma algum motivo incerto, o silêncio continuava ali. Desolador.

"Eu não irei morrer tão facilmente assim". Outro riso descrente vacilou. Isto demoraria para perder a graça. Se fosse verdade, enquanto ela vivesse, uma breve parte de sua fardada imortalidade estaria sendo perdida para...

Nada.

Esse desencontro podia ter sido diferente. Tudo podia ter sido diferente.

Talvez o primogênito mal precisasse aguardar pelos efêmeros, mas entediantes, anos daqui em diante pelo liame de que suas miseráveis vidas enfim desatrelassem, desde que notara Reiji Sakamaki os observando, rondado sob uma aura enigmática, no canto da janela.

História Obliviate para Um Sonho - Diabolik Lovers (2024)

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Name: Duncan Muller

Birthday: 1997-01-13

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Job: Construction Agent

Hobby: Shopping, Table tennis, Snowboarding, Rafting, Motor sports, Homebrewing, Taxidermy

Introduction: My name is Duncan Muller, I am a enchanting, good, gentle, modern, tasty, nice, elegant person who loves writing and wants to share my knowledge and understanding with you.