Livro15 Temas em Neurociencias - PDFCOFFEE.COM (2024)

Temas em Neurociências José Luciano Tavares da Silva Josiane Cecília Luzia (Organizadores)

ISBN 978-655668005-7

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Temas em Neurociências José Luciano Tavares da Silva} Josiane Cecília Luzia (Organizadores)

2020

Copyright © 2020 – Todos os direitos reservados.

Si381t Silva, José Luciano Tavares da; Luzia, Josiane Cecília. Temas em Neurociências / José Luciano Tavares da Silva, Josiane Cecília Luzia (Orgs.). – Editora Scienza, 2020 – São Carlos, SP, Brasil. 362 p. ISBN - 978-65-5668-015-6 DOI - http://dx.doi.org/10.26626/978-65-5668-015-6/B0001 Disponível em: http://www.uel.br/ccb/fisiologicas/portal/pages/publicacoes.php http://www.uel.br/ccb/pgac/pages/publicacoes.php 1. Fisiologia humana. 2. Neuropsicologia. 3. Neurociências. 4.Sistema Nervoso. I. Orgs. II. Título. CDD 612

Revisão, Editoração, E-book e Impressão:

Rua Juca Sabino, 21 – São Carlos, SP (16) 3364-3346 | (16) 9 9285-3689 www.editorascienza.com.br [emailprotected]

Reitor Dr. Sérgio Carlos de Carvalho

Vice-reitor Dr. Décio Sabbatini Barbosa

Comissão Científica Os capítulos desta obra foram avaliados e receberam pareceres ad hoc dos seguintes membros da comissão científica: • Dr. Amauri Gouveia Júnior | Universidade Federal do Pará-Pará. • Dra. Cássia Thais Bussamra Vieira Zaia | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Dra. Cláudia Bueno dos Reis Martinez | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Dr. Ernane Torres Uchoa | Universidade Estadual de LondrinaParaná. • Dra. Magda Solange Vanzo Pestun | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Dr. Mauro Leonelli | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Doutorando Mayron Piccolo | Universidade de Fribourg, Fribourg, Suíça. • Doutoranda Nancy Nazareth Gatzke Corrêa | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Dra. Regina Célia Bueno Rezende Machado | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Mestre Vanessa Santiago Ximenes | Universidade Estadual de Londrina-Paraná. • Mestre Vivian Senegalia Morete | Varas de Família e de Infância e Juventude/Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.

Organizadores

José Luciano Tavares da Silva Doutor em Ciências (Fisiologia Humana) pela Universidade de São Paulo - São Paulo. Mestre em Ciência do Movimento Humano (Fisiologia do Exercício) pela Universidade Federal de Santa Maria Rio Grande do Sul. Docente do Departamento de Ciências Fisiológicas e dos Cursos de Pós-graduação em Neurociências e em "Fisiologia Translacional: da saúde à doença".Coordenador do Programa de Formação Complementar "Temas em Neurociências", destinado a estudantes de graduação, pós-graduação e profissionais de diversas áreas do conhecimento, especialmente das áreas biológicas e da saúde.

Josiane Cecília Luzia Doutora em Neuropsicologia Clínica pela Universidad de Salamanca, Espanha. Mestre em Neurociências e Comportamento pela Universidade de São Paulo- São Paulo. Docente do Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento e do Curso de Pós-graduação em Saúde Mental da Universidade Estadual de Londrina. Colaboradora do Programa de Formação Complementar "Temas em Neurociências".

Organizadores |

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Sobre os Autores Acauã Galdino Vieira Silva Graduação em Psicologia pela Universidade de Marília (UNIMAR) Marília-São Paulo. Psicólogo Clínico.

André Demambre Bacchi Doutor em Ciências Fisiológicas pela Universidade Estadual de Londrina. Docente da Universidade Federal de Rondonópolis - MT.

Andressa de Freitas Mendes Dionisio Doutora em Farmacologia pela Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto - São Paulo. Pós-doutorado pela Universidade do Alabama em Birmingham, Estados Unidos da América e pela Faculdade de Medicina pela Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto - São Paulo. Docente do Departamento de Ciências Fisiológicas e do Programa Multicêntrico de Pós-Graduação em Ciências Fisiológicas da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Celio Roberto Estanislau Doutor em Psicobiologia pela Universidade de São Paulo e Pósdoutor pela Universitat Autónoma de Barcelona, Espanha. Docente do Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento e do Programa de Pós-Graduação em Análise do Comportamento e Neurociências da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Clay Brites Doutor em Ciências Médicas pela UNICAMP – Campinas -São Paulo. Pediatra e Neurologista Infantil do Instituto Neurosaber, Londrina-Paraná. Membro Titular da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP); Membro e Vice-Presidente da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil e Profissões Afins (ABENEPI) - Paraná.

Sobre os Autores |

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Dênis Augusto Santana Reis Mestre em Farmacologia pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto-USP; Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina. Pesquisador do Núcleo de Estudos Violência e Relações de Gênero - NEVIRG- UNESP/ASSIS- São Paulo.

Denise Albieri Jodas Salvagioni Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Londrina. Docente do Departamento de Enfermagem do Instituto Federal do Paraná, Londrina-Paraná.

Ednéia Aparecida Peres Doutora em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho-Campus Marília, Marília – São Paulo. Docente do Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Guilherme Machado Borges Especialista em Análise do Comportamento Aplicado pelo Centro Universitário Filadélfia. Docente / Coordenador de Estágios do Curso de Psicologia da Faculdade de Jandaia do Sul – FafiJan, Jandaia do Sul - Paraná.

Isis Amanda Andrade Amadeu Estudante do Curso de Psicologia pela Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Jayme Marrone Júnior Doutorando em Ensino de Ciências pela Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná. Docente do Instituto Federal do Paraná, Astorga-Paraná.

José Luciano Tavares da Silva Doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP)-São Paulo. Docente do Departamento de Ciências Fisiológicas e do Curso de Pós-graduação em Neurociências (UEL); Docente e coordenador do Curso de Pós-graduação em "Fisiologia Translacional: da saúde à doença" e coordenador do Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências” da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

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Josiane Cecília Luzia Doutora em Neuropsicologia Clínica pela Universidad de Salamanca, Espanha. Docente do Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento e do Curso de Pós-graduação em Saúde Mental da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Lucas Alécio Gomes Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo- São Paulo. Docente do Departamento de Clínicas Veterinárias e do Programa de PósGraduação em Ciência Animal da Universidade Estadual de LondrinaParaná.

Mauro Leonelli Doutor em Fisiologia pela Universidade de São Paulo- São Paulo. Docente do Departamento de Ciências Fisiológicas e da Pós-graduação em "Fisiologia Translacional: da saúde à doença"da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Rodrigo Moreno Klein Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Roberta Ekuni Doutora em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo São Paulo. Docente da Universidade Estadual do Norte do Paraná e do Programa de Mestrado em Educação (PPEd) Jacarezinho - Paraná.

Selma Maffei de Andrade Doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São PauloSão Paulo, Docente do Departamento de Saúde Coletiva e do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Silvia Alves Santos Doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) São Carlos - São Paulo. Docente do Departamento de Educação, Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Sobre os Autores |

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Silvia Ponzoni Doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo- São Paulo e Pós-Doutorado pela .Universita degli Studi - Modena, U.S.MOD*, Itália e Università Degli Studi Di Parma, U.D.S.PR, Itália... Docente do Departamento de Ciências Fisiológicas e da Pós-graduação em "Fisiologia Translacional: da saúde à doença"da Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

Thiago Soares Campoli Mestre em Análise do Comportamento pela Universidade Estadual de Londrina. Psicólogo clínico em Londrina-Paraná.

Wagner Ferreira Lima Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis - São Paulo. Docente do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas, Centro de Ciências Humanas, Universidade Estadual de Londrina, Londrina-Paraná.

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Temas em Neurociências

Apresentação O aprimoramento, notadamente nas duas últimas décadas, da divulgação científica relacionada às Neurociências, seja por intermédio de manchetes indicando novas descobertas na área, livros voltados exclusivamente a este fim ou, ainda, por meio de filmes ou séries de TV, como “Brain Games” (“Truques da Mente” no Brasil, produzida pela Natgeo), colaborou de forma inequívoca para o crescente interesse despertado no público de forma geral. Afinal, quem não conhece alguém, mais ou menos próximo, que esteja acometido por disfunções, como doença de Alzheimer ou Parkinson, mais comuns a cada ano devido ao envelhecimento populacional? Pode ser que, na família, haja uma pessoa que sofra com transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, um filho para o qual aprender a ler é um desafio quase intransponível ou mesmo um tio que sente dor em uma perna que fora amputada e não existe mais. Quem sabe alguém tenha passado pelo terror de sentir-se paralisado sem poder mover um músculo sequer ao acordar de madrugada, podendo jurar que, embora sozinho, sentira a presença de algo “sobrenatural”? É fascinante saber que tais exemplos, e muitos outros que fazem parte de nosso dia a dia, podem ser explicados por alterações no funcionamento dessa massa tortuosa, com consistência gelatinosa e cerca de 1,5 kg contida pelo crânio. Mesmo com sua aparência relativamente estranha quando comparada aos outros órgãos do corpo, tudo o que pensamos, sentimos e experimentamos não passa de mera atividade eletroquímica presente nas trilhões de conexões entre as células que a compõe. O delicioso cheiro e sabor daquela pizza que acabou de sair do forno, a visão da pessoa amada e os sentimentos e emoções a ela relacionados, o amor incondicional pelos filhos e o medo aterrorizante de perdê-los, a raiva pelo trânsito na hora do rush e a alegria de, finalmente, chegar em casa, ou seja, absolutamente tudo aquilo que somos, de tal maneira que, ao morrermos, tudo isso também morre conosco. Ou será que não?

Apresentação |

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Torna-se, portanto, natural o desejo de saber mais sobre o sistema nervoso e, assim, poder vislumbrar, de maneira um pouco mais profunda, sua espetacular complexidade. Logo, não surpreende que o desenvolvimento de um programa complementar de ensino nesta área tenha obtido tanto sucesso, com cerca de 1.300 participantes inscritos desde sua primeira edição em 2010. Com o objetivo de comemoração ao aniversário de dez anos do programa de formação complementar “Temas em Neurociências”, esta obra reúne os conteúdos trabalhados por alguns de seus colaboradores que, dentro de suas áreas de conhecimento, ministraram palestras, orientaram grupos de estudos ou ambos ao longo desta última década. Considerando a característica diversificada do programa em relação aos diferentes temas abordados, optamos por organizar os 14 capítulos que compõem o livro em três seções. A Seção 1 “Teoria e Neurociências” é composta pelos capítulos 1 a 5, em que são apresentadas considerações sobre as características do programa desde seu lançamento, em 2010, no capítulo 1; os aspectos relacionados à evolução do sistema nervoso no capítulo 2; os denominados “neuromitos” e como estão arraigados na população que neles creem no capítulo 3; conjecturas relacionadas à associação entre as Neurociências e a física quântica no capítulo 4 e uma revisão bibliográfica acerca da relação entre as Neurociências e as denominadas “experiências paranormais” no capítulo 5. A Seção 2 “Processos Básicos em Neurociências” é constituída pelos capítulos 6 a 9 e apresenta as bases para a dependência química no capítulo 6; aspectos neurofisiológicos relacionados à dor no capítulo 7; possíveis alterações no sistema nervoso presentes no criminoso no capítulo 8 e aspectos evolucionistas e neurobiologia do transtorno obsessivo-compulsivo no capítulo 9. A Seção 3 “Aspectos Clínicos em Neurociências” é constituída pelos capítulos 10 a 14, em que são apresentados aspectos neurobiológicos da dislexia no capítulo 10; o distúrbio psíquico associado ao trabalho denominado “Síndrome de Burnout” no capítulo 11; os aspectos farmacológicos relacionados ao tratamento da dor crônica nociceptiva no capítulo 12; a epilepsia em cães no capítulo 13 e a abordagem do transtorno de ansiedade social, sob o ponto de vista da análise do comportamento, no capítulo 14.

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Gostaria de manifestar meu reconhecimento e agradecimento a todos os colaboradores, palestrantes e orientadores de grupos de estudos que, ao longo destes dez anos, enalteceram o programa com seus conhecimentos, sem os quais o programa e esta obra não existiriam. Particularmente, agradeço os autores e revisores responsáveis por cada capítulo, os quais estão vinculados, em sua maioria, a Instituições de Ensino Superior, seja na categoria de docente, estudante de pós-graduação ou iniciação científica e, também, aos profissionais liberais cujos princípios de atuação estão pautados nos conhecimentos atuais das Neurociências. Tenham todos uma ótima leitura!

José Luciano Tavares da Silva

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Sumário

Seção I Capítulo 1 Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências”: Ajudando a Compreender o Sistema Nervoso..................................19 José Luciano Tavares da Silva, Silvia Alves Santos, Wagner Ferreira Lima e Josiane Cecília Luzia Capítulo 2 Evolução do Sistema Nervoso – Considerações e Provocações...... 35 Silvia Ponzoni Capítulo 3 Neuromitos no Alvo: Desmitificando o Cérebro..........................................61 Roberta Ekuni Capítulo 4 A Hipótese da Conveniência Funcional: Um Estudo sobre as Qualidades da Matéria e a Auto-Organização dos Sistemas........................................................................................................ 79 Jayme Marrone Júnior Capítulo 5 As Neurociências, a Experiência Espiritual Religiosa e os Fenômenos “Paranormais”: Existe Correlação e em até que Ponto?.................................................................................................. 107 José Luciano Tavares da Silva e Josiane Cecília Luzia

Seção II Capítulo 6 Bases Neurobiológicas da Dependência Química................................. 163 André Demambre Bacchi

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Capítulo 7 Dor Aguda e Dor Crônica....................................................................................... 185 Mauro Leonelli Capítulo 8 A Influência da Neurociência na Criminologia: Uma Nova Perspectiva de Análise do Criminoso................................................. 209 Dênis Augusto Santana Reis Capítulo 9 Transtorno Obsessivo-Compulsivo: Integração entre Perspectiva Evolucionista e Dados Neurobiológicos.............................................239 Celio Roberto Estanislau, Thiago Soares Campoli, Rodrigo Moreno Klein, Acauã Galdino Vieira Silva, Isis Amanda Andrade Amadeu e Guilherme Machado Borges

Seção III Capítulo 10 Aspectos Neurobiológicos da Dislexia: Contribuições da Neuroimagem............................................................................................259 Clay Brites Capítulo 11 Síndrome de Burnout.............................................................................................. 275 Denise Albieri Jodas Salvagioni e Selma Maffei de Andrade Capítulo 12 Aspectos Farmacológicos dos AINEs e Opiodes no Tratamento da Dor Crônica Nociceptiva............................................293 Andressa de Freitas Mendes Dionisio Capítulo 13 Epilepsia em Cães..................................................................................................... 319 Lucas Alécio Gomes Capítulo 14 Transtorno de Ansiedade Social: Relato de Caso................................... 341 Josiane Cecília Luzia, Ednéia Aparecida Peres e José Luciano Tavares da Silva

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Temas em Neurociências

SEÇÃO

I

TEORIA E NEUROCIÊNCIAS

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Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências”: Ajudando a Compreender o Sistema Nervoso

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José Luciano Tavares da Silva* Universidade Estadual de Londrina

Silvia Alves Santos Universidade Estadual de Londrina

Wagner Ferreira Lima Universidade Estadual de Londrina

Josiane Cecília Luzia Universidade Estadual de Londrina

Introdução A última década do século passado (1990-2000) foi considerada a “década do cérebro” devido ao avanço exponencial das pesquisas científicas neste campo. Desde 1996, a Fundação Dana ( The Dana Foundation), localizada em Nova York, nos Estados Unidos, promove, anualmente, uma campanha global a “Semana do Cérebro” (Brain Awareness Week ), no decorrer da qual são repassadas, ao público em geral, informações relacionadas ao progresso e benefícios das pesquisas científicas sobre o cérebro, objetivando conscientização acerca de sua importância. Aderindo à campanha, todos os anos, diversas instituições do Brasil (universidades, hospitais e outras) realizam a “Semana do Cérebro” durante o mês de março.

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Autor para correspondência: jlucianotavares@ gmail.com

O presente programa de formação complementar em neurociências da Universidade Estadual de Londrina é voltado, exclusivamente, aos estudantes matriculados em instituições de ensino superior, tanto em nível de graduação, quanto de pósgraduação, e aos profissionais atuantes no mercado de trabalho. Como princípio básico, apresenta a divulgação do que se sabe,

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atualmente, sobre determinados temas básicos e, também, clínicos, que estejam direta ou indiretamente relacionados às neurociências. Sua importância reside no fato de que a prevenção, tratamento e entendimento de alterações funcionais relacionadas ao sistema nervoso requerem noções sobre sua função normal e o que se poderia esperar em caso de anormalidades. Isto implica que, de maneira direta ou indireta e de forma mais ou menos aprofundada, profissionais da área da saúde e de áreas afins, que lidam com desenvolvimento humano – como psicólogos, pedagogos, assistentes sociais, entre outros –, precisam dispor desta compreensão. É evidente, por exemplo, a dificuldade de muitos professores do ensino fundamental em como proceder para o melhor atendimento às crianças que apresentam deficiências e/ou limitações físicas e intelectuais, após a sua inclusão em turmas cuja maioria se encaixa nos padrões aceitos como normais. Sob o ponto de vista do desenvolvimento tecnológico no âmbito industrial, o qual se apresenta em franca expansão e envolve, desde a confecção de próteses interligadas ao sistema nervoso até a substituição de órgãos sensoriais por equivalentes robóticos, é visível a necessidade de profissionais capacitados a fazer as interconexões entre esta área e a tecnologia biomédica.

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Mesmo que, por enquanto, esteja relativamente longe de explicar, de maneira convincente, como a consciência, em toda sua complexidade, advém de uma massa formada por bilhões de neurônios e outras células que perfazem o encéfalo humano, o conjunto de ciências relacionadas ao estudo e compreensão do sistema nervoso, ou seja, as “Neurociências” têm feito progressos inegáveis para tal compreensão. Fundamentada na premissa de que todo comportamento e vida mental originam-se da estrutura e função do sistema nervoso (Squire, Berg, Bloom, Du Lac, Ghosh, & Spitzer, 2008), ela se abre aos diversos ramos de pesquisa, cada um dos quais regidos por um ponto de vista distinto. Com a compreensão dos diferentes aspectos relacionados à fisiologia, à bioquímica, à farmacologia e à estrutura do cérebro de vertebrados, a disciplina de neurociências, apesar de relativamente nova, apresentou grande evolução nas últimas décadas (Goswami, 2004).

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Neste conjunto de partes que se complementam, pode-se citar, dentre outros: o ramo que estuda sua anatomia ou neuroanatomia; a interação entre o sistema nervoso e o sistema endócrino ou neuroendocrinologia; a ação de drogas sobre o sistema nervoso ou neurofarmacologia; as funções do sistema nervoso ou neurofisiologia; as patologias do sistema nervoso ou neurologia; os distúrbios neurológicos em associação com distúrbios psiquiátricos ou neuropsiquiatria e as relações entre o cérebro e funções mentais, vale dizer, a neuropsicologia (Herculano-Houzel, 2008). Nota-se, contudo, que o prefixo “neuro” vem sendo apropriado de maneira, no mínimo, questionável, por diversos setores da sociedade (Neves, 2016). Com objetivos oportunistas ou para conquistar maior audiência, a imprensa e outros grupos (propositalmente ou não), muitas vezes, simplificam fatos e resultados científicos, podendo, inclusive, colocar em risco a saúde da população que crê no que é divulgado. Assim sendo, extrapolando o aspecto profissional, o esclarecimento do público em geral sobre o papel das neurociências no dia a dia mostra-se essencial para o desenvolvimento cultural e social da sociedade, evitando que a população seja talhada segundo o interesse comercial de grupos diversos baseados em boatos ou crenças infundadas, os denominados “neuromitos” (Ekuni & Pompéia, 2016).

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Ao longo dos últimos anos, tem havido grande número de concepções errôneas acerca do cérebro, as quais são divulgadas pela mídia de forma geral, muitas relacionadas ao processo de aprendizagem. Considerando-se que, frequentemente, originam-se de elementos científicos, mesmo que mal interpretados, incompletos ou extrapolados para além das evidências observadas em pesquisas, sua refutação torna-se mais difícil, como os exemplos que seguem (OECD, 2007). a) “Não há tempo a perder, pois tudo que é importante acerca do cérebro é decidido até a idade de três anos”; b) “Existem períodos críticos nos quais certas matérias devem ser ensinadas e aprendidas”; c) “Nós utilizamos normalmente apenas 10% da capacidade de nosso cérebro”;

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d) “Existem pessoas que utilizam mais o hemisfério esquerdo e outras o hemisfério direito do cérebro”; e) “Homens e meninos possuem cérebros diferentes de mulheres e meninas”; f) “O cérebro de uma criança pequena é capaz de aprender apenas um idioma por vez”, entre outros.

Por conta de concepções como estas, observa-se que muitas escolas podem utilizar métodos de ensino baseados em crenças cientificamente infundadas (Brockington, & Mesquita, 2016). Além dos “neuromitos”, pode-se ainda salientar crenças aceitas como verdadeiras por parcela considerável da população, tais como “experiências de quase-morte”, “abduções alienígenas” e outras do gênero, para as quais existem explicações embasadas na neurociência (Mobbs, & Watt, 2011). Em relação a esta última, o esclarecimento sobre como o sistema nervoso pode gerar alterações na percepção e/ou consciência, muitas vezes, inócuas, mas quando apontadas de maneira equivocada, como indícios de manifestações sobrenaturais ou de doenças graves, poderia acarretar o sensacionalismo que sempre as caracterizam.

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Considerando a importância de desmistificar tais crenças e esclarecer profissionais e futuros profissionais da área da saúde e afins, os quais são (ou ao menos deveriam ser) o elo entre a pesquisa científica séria e o público em geral, este programa de formação complementar objetiva possibilitar a aquisição de noções básicas fundamentais acerca das funções normal e anormal relacionadas ao sistema nervoso.

Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências”: Aspectos Históricos O Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências” foi iniciado na forma de projeto de pesquisa em ensino em agosto de 2010 sendo então denominado de “Estudos de Casos em Neurociência Clínica”. A princípio, foi direcionado apenas aos estudantes de graduação do terceiro e quarto anos do curso de Psicologia da UEL, com 43 estudantes inscritos. A ideia partiu da necessidade de incrementar a

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parte de fisiologia do sistema nervoso, inserida na disciplina “Fisiologia Humana”, voltada ao curso de Psicologia e que estava vigente na época, atualmente, substituída pela disciplina “Neurofisiologia”. Além da parte de neurofisiologia, o programa englobava tópicos clínicos pouco vistos no decorrer da graduação. Na época, o programa também atraiu a atenção de estudantes do curso como mais uma opção para participação em projeto de ensino e, indiretamente, como uma porta para projetos de pesquisa de docentes orientadores de casos clínicos em neurociências. Tendo em vista a pouca oferta de vagas, o projeto foi desenvolvido em salas de aula do departamento de ciências fisiológicas do CCB/UEL, com baixa capacidade de lotação. Considerando que as palestras e desenvolvimento de estudos foram realizados por docentes colaboradores do projeto, que recebiam carga horária para tal, ou por consultores externos convidados, não houve necessidade de conseguir financiamento para seu desenvolvimento. No ano seguinte, iniciou-se a segunda turma, desta vez, aberta também a estudantes de Fisioterapia do segundo ano, sendo formada por 63 estudantes, sendo 23 estudantes de Psicologia e 40 estudantes de Fisioterapia. A terceira e última turma, ainda como projeto de pesquisa em ensino, foi aberta em 2012, sendo formada por 76 estudantes de graduação de cursos diversos da UEL e dois estudantes de outras instituições.

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Encerrado na forma de projeto de pesquisa em ensino no ano de 2012, deu-se origem ao Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências”, em formato de palestras, em um semestre, e de estudos em grupos no semestre seguinte. Em 2013, no seu primeiro ano como Programa de Formação Complementar, obteve o total de 115 estudantes inscritos, dos quais 107 estudantes de graduação de diversos cursos da UEL e oito participantes externos. A turma seguinte, em 2014, obteve 121 inscrições, sendo 59 estudantes de graduação de cursos diversos da UEL e 62 participantes externos. A turma de 2015 apresentou 166 inscrições, das quais, 94 de estudantes de graduação de diversos cursos da UEL e 72 participantes externos. A turma seguinte, de 2016, obteve 220 inscrições, das quais, 120 inscrições de estudantes de graduação da UEL e cem inscrições de participantes externos. Em 2017, houve 188 inscrições, das quais,

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101 de estudantes de graduação da UEL e 88 participantes externos. Finalmente, em 2018, foram realizadas 245 inscrições, das quais, 139 estudantes de graduação da UEL e 106 participantes externos. O Programa mostra-se um espaço profícuo para o desenvolvimento de temas de pesquisa para alunos e comunidade externa, isso significa afirmarmos que sua consolidação como espaço formativo acadêmico é de grande valia para a sociedade. Corroborando tal afirmação, a partir de um grupo de estudos voltado para o tema “Suicídio”, coordenado por uma das colaboradoras do programa, foi desenvolvido o evento de extensão Suicídio: você já parou para pensar?, no formato de “mesas redondas”, o qual obteve número expressivo de inscrições, gerando livro homônimo escrito pelos palestrantes.

Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências”: Aspectos Metodológicos O Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências” caracteriza-se por palestras diversas relacionadas, de maneira direta ou indireta, às neurociências. As atividades ocorrem aos sábados no período da manhã no Centro de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Londrina (CCB/UEL) no decorrer do segundo semestre do ano letivo. Aos estudantes de graduação regularmente matriculados na instituição e que tenham participado de um número mínimo de 70% das palestras do semestre anterior, é oferecida a oportunidade de permanecer no programa no semestre seguinte para participação em grupos de estudos, os quais estão sob a orientação de docentes ou estudantes de pós-graduação de mestrado ou doutorado também da instituição e têm por objetivo o estudo mais aprofundado sobre temas diversos propostos pelos orientadores.

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Acredita-se que, desta maneira, serão fortalecidos os conhecimentos acerca do funcionamento global do sistema nervoso, visto por diferentes aspectos e abordagens. Havendo vagas remanescentes para participação em grupos de estudos, estas são ofertadas a colaboradores externos. O critério utilizado para preferência de participação é o mesmo utilizado para estudantes

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da UEL, ou seja, os que apresentam maior participação na fase de palestras. Desde que se iniciou como programa de formação complementar, em 2013, até o término do cronograma, de 2018, foram ministradas 140 palestras, sendo 23 em 2013; 25 em 2014; 21 em 2015; 22 em 2016; 26 em 2017 e 23 em 2018, com duração de 90 a 180 minutos, dependendo da complexidade do tema tratado. Tendo em vista que, atualmente, o público participante é composto por estudantes e profissionais de diversas áreas do conhecimento, optou-se, a partir da turma de 2015, por ministrarem-se palestras relacionadas tanto à área clínica, quanto à Neurofisiologia básica. As palestras relacionadas à Neurofisiologia básica, que ocorreram previamente às relacionadas à área clínica, foram ministradas por docentes das disciplinas de “Neurofisiologia”, “Neuroendocrinologia” e “Psicofarmacologia” do curso de Psicologia da UEL e docentes externos e foram as seguintes: “Antidepressivos”; “Caçadores de neuromitos: o que você sabe sobre seu cérebro é verdade?” “Controle neuroendócrino da fome e saciedade”; “Farmacologia no tratamento da dor crônica”; “Neurotransmissão na dor crônica”; “Neurotransmissão e organização do sistema nervoso”; “Neurofisiologia dos sistemas sensoriais”; “Neurofisiologia dos sistemas motores”; “Neurofisiologia das emoções”; “Neurofisiologia dos sistemas de memória”; “Neurofisiologia do ciclo sono-vigília” e “Origem e evolução da vida”.

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As palestras relacionadas à neurociência clínica foram ministradas por docentes convidados, todos especialistas na área cujo tema foi abordado; vale dizer, graduados e pós-graduados nas áreas de Biomedicina, Enfermagem, Farmácia, Fisioterapia, Medicina (Anestesiologia, Cirurgia bariátrica, Endocrinologia, Geriatria, Neurocirurgia, Neurologia, Neuropediatria e Psiquiatria), Medicina Veterinária, Odontologia, Psicologia e Psicopedagogia. Os temas das palestras foram os seguintes (em ordem alfabética): “Apneia do sono”; “Aspectos farmacológicos da analgesia e anestesia”; “Aspectos psicológicos das emoções”; “Atendimento odontológico ao paciente especial”; “Bullying: consequências psicológicas”; “Cirurgia bariátrica: aspectos clínicos e psicológicos”; “Demências senis”; “Dependência química e compulsão”; “Depressão

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e suicídio”; “Distúrbios do processamento auditivo central”; “Doenças neuromusculares”; “Doença de Parkinson”; “Dor e analgesia: aspectos emocionais”; “Dor neuropática”; “Esclerose múltipla”; “Esquizofrenia”; “Falando sobre surdocegueira”; “Neuroetologia em epilepsia”; “Neurologia da aprendizagem”; “Neuromarketing e a lógica do consumo”; “Neuropatia diabética”; “Neuroplasticidade: modificação e recuperação do sistema nervoso”; “Neuro-zoonoses”; “Paralisia cerebral”; “Psiquiatria forense”; “Psico-neuro-endocrino-imunologia”; “Reconexão de tratos medulares via sistemas inteligentes”; “Síndrome de anorexia e bulimia”; “Síndrome de burnout”; “Síndromes corticais”; “Síndrome de Prader-Willy”; “TDAH: visão do clínico”; “TDAH: visão do psicólogo”; “TDAH: visão do psicopedagogo”; “Toxina botulínica: uso clínico”; “Transtorno bipolar”; “Transtorno obsessivo-compulsivo e síndrome de Tourette”; “Transtornos do sono” e “Trauma raquimedular”. Destacamos que o trabalho realizado no Programa de Formação Complementar conta, também, com grupos de estudos que auxiliam no aprofundamento dos temas, bem como incorporam outros que se relacionam à temática geral da pesquisa em Neurociências.

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Desde o início, ainda na forma de projeto de ensino, em 2010, até o presente, os grupos de estudos se organizaram em torno do aprofundamento dos seguintes temas: “Ação de drogas sobre ingestão alimentar e gasto energético”; “Acidente vascular encefálico”; “Adaptações fisiológicas do atleta no paradesporte”; “Antidepressivos e desenvolvimento”; “Aplicação de conceitos de neurociências na saúde coletiva em UBS”; “Aspectos biológicos do comportamento sexual e maternal”; “Aspectos neurobiológicos da criminalidade”; “Aspectos neurofisiológicos da obesidade”; “Aspectos neuropsicológicos do câncer”; “Aspectos psicológicos da doença de Alzheimer”; “Aspectos sociais e neuroquímicos de comportamentos suicidas”; “Atletas paralímpicos e suas particularidades”; “Bulimia”; “Contribuições das neurociências à educação especial”; “Controle neural da função cardíaca e disfunções associadas”; “Depressão: fisiopatologia e tratamento”; “Diferenciação sexual pelo sistema nervoso central”; “Doenças encefálicas em cães e gatos”; “Doença de Parkinson”; “Emoções e hipertensão”; “Empatia e fobia social”; “Epilepsia”; “Estresse, memória e aprendizagem”; “Etologia, psicofarmacologia, neuropsicologia, psicologia evolucionista e psicobiologia da

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depressão”; “Fisiologia do envelhecimento”; “Funções executivas, memória de trabalho, velocidade de processamento e atenção”; “Linguagem e cognição corpórea”; “Mecanismos neuroendócrinos relacionados à obesidade”; “Medo e transtornos de ansiedade”; “Modelo Psicobiológico e suas relações com o desempenho motor”; “Neuroarte e arteterapia”; “Neurobiologia e farmacologia das drogas de abuso”; “Neurobiologia da linguagem”; “Neurociências e espiritualidade”; “Neurologia clínica em animais de companhia”; “Neuropsicologia da empatia”; “Patologia das disfunções linguísticas”; “Plantas psicoativas”; “Proposição de procedimentos pré-clínicos com vistas à prevenção da recidiva ao consumo de drogas”; “Self, mente e comunicação: a reflexividade nas relações interpessoais”; “Sentidos e realidade: aspectos físicos e neurocientíficos”; “Sistema nervoso autônomo e metabolismo”; “Substâncias psicoativas e comportamento”; “Suicídio: Você já parou para pensar?”; “Transtorno bipolar”; “Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade” e “Uso de fármacos antidepressivos e gravidez”. >

Expectativas e Impressões do Público Participante aobre o Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências” Objetivando identificar o perfil dos participantes do programa e seus interesses dentro das neurociências, no primeiro dia dos trabalhos de uma das edições do programa, foram aplicados questionários com questões sobre a formação acadêmica, ou não, dos sujeitos participantes; quais os motivos levaram o participante a optar por esse Programa; qual a relevância do Programa para seu curso, para sua profissão ou sua vida e, por último, quais as expectativas com relação ao aprendizado obtido pelo Programa. Houve 123 questionários respondidos, dentre os quais, 74 estudantes de graduação de diversos cursos da UEL, sendo 21 estudantes de Psicologia, 18 de Medicina, 9 de Fisioterapia, 7 de Biomedicina, 5 de Pedagogia, 4 de Ciências Biológicas, 4 de Medicina veterinária, 2 de Enfermagem, 2 de Farmácia, 1 de Engenharia elétrica e 1 de Física. Além desses, 49 participantes da comunidade externa à UEL, sendo 20 estudantes de Psicologia, 5 estudantes de Medicina, 2

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estudantes de Biomedicina, 2 estudantes de Fisioterapia, 1 estudante de Medicina veterinária, 1 técnico administrativo, 4 psicólogos, 1 bacharel em Educação Física, 1 fisioterapeuta, 1 médico veterinário, 1 pedagogo, 1 professor de biologia e 9 estudantes de pós-graduação (dois em nível de mestrado e dois de doutorado). Todas as respostas possuem características específicas acerca do lugar e da situação em que fala o sujeito. No entanto, neste trabalho, elencamos algumas respostas que trouxeram mais elementos justificáveis em cada uma das questões apresentadas. A primeira questão pautou-se na necessidade de colher informações sobre qual seria a relevância do conhecimento dentro da área de neurociências para o curso, a profissão ou para a vida do sujeito. De modo geral, as respostas confirmam a ubiquidade das neurociências na vida das pessoas, fato que tem despertado o interesse dos acadêmicos por este Programa de Formação Complementar. Cada qual focaliza um dos aspectos das neurociências que diz respeito à sua área potencial de atuação. O estudante de Psicologia destaca a importância da relação entre processos cerebrais e psicológicos (neuropsicologia) para sua carreira profissional.

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“Penso em, futuramente, ir para a área de neuropsico­ logia, sendo assim, o programa de formação complementar tem muito que me acrescentar, além de ser uma área muito interessante e o conhecimento aqui adquirido terá sua importância para minha profissão independente da área que eu siga” (estudante do 3º ano de Psicologia da UEL).

De fato, as pesquisas neurocientíficas têm jogado uma luz sobre o funcionamento da mente humana, por exemplo, especificamente no tocante à mente emocional, trabalhos sobre o papel dos neurotransmissores e do uso de fármacos na regulação do humor e comportamentos são fundamentais. Assim, as palestras do projeto que têm versado, direta ou indiretamente, sobre tal relação conseguem atender às expectativas dos estudantes de Psicologia. Outro aspecto das pesquisas neurocientíficas mencionado no questionário concerne ao emprego de conhecimentos neuropsicológicos na educação formal. As palavras abaixo expressam essa relação.

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“Através da área de neurociências posso compreender melhor o comportamento de meus possíveis alunos (as), penso que unindo a área em questão mais os conhecimentos que tenho em Psicologia posso buscar entender de um jeito mais aprofundado os meus alunos” (estudante do 5º ano de Pedagogia da UEL).

Essa é uma área a qual as neurociências têm muito a oferecer e, dessa maneira, ela surge como um novo instrumento diagnóstico para problemas de aprendizado. E não só, pois fundamental tem sido também compreender os problemas comportamentais apresentados por crianças e adolescentes. Muitos deles têm a ver, não apenas com condições socioculturais, mas com o amadurecimento cerebral, pois o processo de “adolescer”, por exemplo, tem sido encarado pelas neurociências como um processo acontecendo no cérebro e refletindo-se nas ações e condutas dos jovens (Herculano-Houzel, 2005). Nesse sentido, palestras e grupos de estudo que, direta ou indiretamente, abordam questões relacionadas à formação cognitiva e emocional conseguem dar conta de problemas comportamentais, em geral, e de crianças e adolescentes, em particular, no campo da educação.

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Outra resposta faz menção a outra forma de aplicação dos conhecimentos neurocientíficos. Trata-se de um ramo profissional muito específico e técnico, mas significativo quanto a abrangência das neurociências nos dias atuais. “A neurociência forma um par excepcional com a Engenharia Elétrica, criando a neuroengenharia, uma área que me cativa pela sua importância na mudança de vida das pessoas, seja no desenvolvimento de próteses ou na recuperação de traumas. Acredito que, por meio da neuroengenharia, um dia não existirão pessoas desabilitadas por conta de traumas físicos” (estudante do 5º ano de Engenharia Elétrica da UEL).

Essa percepção alude a um dos campos mais promissores de emprego das neurociências que é o da neuroengenharia. Nesse tocante, destacam-se, por exemplo, os trabalhos de Nicolelis e colaboradores (2011), os quais mostram ser possível conectar a atividade de células nervosas com artefatos robóticos e controlalos usando o “poder da mente”. Atualmente, essas pesquisas têm se voltado para a confecção de próteses avançadas e outros

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procedimentos para a recuperação de traumas raquidianos e outros (Pruszynsk & Diedrichsen, 2015, King; Wang; Mccrimmon; etal., 2015; Bouton; Shaikhouni &Annetta etal., 2016). Conquanto o programa “Temas em Neurociências” não tenha esse objetivo específico como alvo, ele colabora de algum modo para a formação de alunos que se interessam pelo assunto da neuroengenharia. As palestras, de maneira geral, contribuem nesse sentido, pois a primeira condição para trabalhar com a interface cérebro-máquina é conhecer os princípios de funcionamento da máquina mais complexa e maravilhosa do universo – o cérebro humano. Outra percepção lembra a importância das neurociências para uma das áreas mais carentes de compreensão e demandantes de intervenções produtivas, vale dizer, a educação especial. Embora lacônicas, as participantes opinam sobre a utilidade do projeto para o progresso profissional. “Melhorar a compreensão dos processos neurofisioló­ gicos que permeiam as demandas dos estudantes que atendo propiciando assim intervenções mais produtivas” (psicóloga atuante na área de educação especial).

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“Trabalho na educação especial com educandos que têm déficits neurológicos. Assim, compreender o funcionamento neurológico oportunizará elaborar planos e ações que fornecerão a melhoria da qualidade de vida dos educandos” (pedagoga, com especialização em educação especial e saúde mental).

Os interessados em educação especial têm se beneficiado bastante das palestras e dos grupos de estudo. Esse campo educacional lida com uma clientela bastante heterogênea do ponto de vista das disfunções neuropsicológicas e requer, não apenas novos insights sobre essas disfunções, como também formas de intervenção mais eficientes. Nesse sentido, a pressão é cada vez maior por conta das exigências políticas pela chamada educação inclusiva. Em contrapartida, o projeto tem oferecido uma ampla base de conhecimentos específicos que podem auxiliar os futuros profissionais dessa área. Como visto acima, ele tem abordado temas neuropsicológicos os mais diversos, relacionados à miríade de problemas que a educação especial vem encarando.

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Na área médica, o conhecimento neurocientífico é absoluta­ mente necessário para o correto diagnóstico e tratamento, não apenas a profissionais médicos, mas a outros profissionais que estejam, direta ou indiretamente, ligados aos cuidados com o paciente, como enfatizam os estudantes abaixo. “No meu curso e profissão, será necessário o contato direto e constante com pessoas. Entender um pouco de neurologia é necessário para poder ajudar biológica e socialmente os pacientes. Além disso, para minha vida, isso também tem uma importância social” (estudante do 1º ano do curso de Medicina da UEL). Dentro da enfermagem, nós trabalhamos com promoção, prevenção e recuperação da saúde. Como pacientes neurológicos estão sempre presentes nos serviços de saúde, é fundamental para a enfermagem ter conhecimento sobre a área para dar mais qualidade à assistência prestada” (estudante do 4º ano de Enfermagem da UEL).

O esclarecimento da etiopatogenia de transtornos da área de psiquiatria e neurologia e o desenvolvimento de tratamentos satisfatoriamente eficazes são tarefas multidisciplinares, que requerem a colaboração de pesquisadores tanto da área de neurociências básicas quanto aplicadas (Busatto Filho, Britto, & Leite, 2012). Ao propiciar informações de ambas por intermédio de palestras e grupos de estudos, o programa “Temas em neurociências” colabora, mesmo que de forma modesta, para tal desenvolvimento.

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Finalmente, mesmo profissionais da área técnico-administrativa vislumbram benefícios na obtenção de conhecimentos dentro da área neurocientífica. “A todo momento, lidamos com diferentes pessoas, tanto na vida profissional como pessoal e percebemos a complexidade de lidar com cada uma. Considero muito importante ter conhecimento na área de neurociências por mais básico que for. Como estou me especializando em gerenciamento estratégico de pessoas, acredito que ampliará minha visão sobre essa área” (técnica administrativa em administração hospitalar).

As percepções expressas em tais respostas confirmam a interferência das neurociências no cotidiano das pessoas e reforça a importância do programa “Temas em Neurociências”, oferecido como complemento de ensino. Como sugerem as respostas analisadas,

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conhecimentos neurocientíficos perpassam diferentes campos do saber, “ressignificando” conhecimentos estabelecidos e criando novas frentes de atuação profissional.

Considerações Finais Considerando-se o número crescente de participantes desde a primeira turma, em 2010, até o presente, ano após ano, nota-se a carência e, ao mesmo tempo, a avidez por conhecimentos dentro da área de neurociências mesmo em se tratando de estudantes e profissionais da área de saúde. Neste aspecto, o Programa de Formação Complementar “Temas em neurociências” vem colaborando para a formação dos participantes e para a divulgação científica que, por vezes, poderia ficar restrita apenas a especialistas e pesquisadores da área, diminuindo a disseminação de conhecimentos equivocados e perpetuação dos chamados “neuromitos”. A característica eclética do público participante torna ainda mais ricas as discussões realizadas, seja no decorrer de palestras ou dos grupos de estudos, ultrapassando-se eventuais barreiras relacionadas às áreas de formação e colaborando, de forma mais ou menos aprofundada, para o enaltecimento da formação e atuação profissionais.

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Finalmente, pode-se concluir que o Programa de Formação Complementar “Temas em neurociências” veio preencher mais uma lacuna em se tratando de divulgação científica junto à sociedade, cooperando, à sua maneira, para a solidez do trinômio Ensino, Pesquisa e Extensão, papel essencial da universidade pública.

Agradecimentos Os autores agradecem aos profissionais de diversas áreas do conhecimento que, desde a primeira edição do programa, contribuíram para a divulgação científica dos inúmeros temas apresentados no formato de palestras e/ou discutidos em grupos de estudos, sem os quais, o programa não existiria.

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Temas em Neurociências

Referências Bouton, C. E.; Shaikhouni, A.; Annetta, N. V.; Brockbrader, M. A.; Friedenberg, D. A.; Nielson, D.M.; Sharma, G.; Sederberg, P. B.; Glenn, B. C.; Mysiw, W. J., Morgan, A. G.; Deogaonkar, M., & Rezai, A. R. (2016). Restoring cortical control of functional movement in a human with quadriplegia. Nature, 533, 247-250. Brockington, G. & Mesquita, L. (2016). As consequências da má divulgação científica. Revista da Biologia, 15(1), 29-34. Busatto Filho, G.; Britto, L. R. G., & Leite, J. P. (2012). O avanço da neurociência aplicada aos transtornos psiquiátricos e neurológicos: mais do que nunca, uma tarefa interdisciplinar. Rev. Bras. Psiquiatr., 34(2), S121-S124. Ekuni, R. & Pompéia, S. (2016). O impacto da divulgação científica na perpetuação de neuromitos na educação. Revista da Biologia, 15(1), 21-28. Goswami, U. (2004) Neuroscience and education. Br. J. Educ. Psychol., 74, 1-14. Herculano-Houzel, S. (2008). Uma breve história da relação entre o cérebro e a mente. In: LENT, R. Neurociência da Mente e do Comportamento. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, 2-17. Herculano-Houzel, S. (2005). O cérebro em transformação. Objetiva, Rio de Janeiro. King, E. C., Wang, P. T., Mccrimmon, C. M., Chou, C. C. Y., Do, A. H., & Nenadic, Z. (2015).The feasibility of a brain-computer interface functional electrical stimulation system for the restoration of overground walking after paraplegia. Journal of Neuro-Engineering and Rehabilitation, 12(80), 1-11.

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Mobbs, D. & Watt, C. (2011). There is nothing paranormal about near-death experiences: how neuroscience can explain seeing bright lights, meeting the dead, or being convinced you are one of them. Trends in Cognitive Sciences, 15(10), 447449. doi.org/10.1016/j.tics.2011.07.010. Neves, K. A. (2016). Neurociência abraça o mundo. Revista da Biologia, 15(1), 35-38. Nicolelis, M. (2011). Muito além do nosso eu. Cia das letras, São Paulo. OECD (2007). Understanding the Brain: The Birth of a Learning Science. Disponível em: http://www.oecd.org/site/educeri21st/40554190.pdf. Acesso em: 14 mar. 2019 Pruszynsk, J. A. & Diedrichsen, J. (2015). Reading the mind to move the body. Science, 348(6237),860-861. Squire, L., Berg, D., Bloom, F., du Lac, S., Ghosh, A., & Spitzer, N. (2008). Fundamental Neuroscience. Elsevier.

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Evolução do Sistema Nervoso – Considerações e Provocações

2 Silvia Ponzoni*

Universidade Estadual de Londrina

Introdução A evolução do primeiro sistema nervoso muito provavelmente se deu após a mudança evolutiva de formas unicelulares para multicelulares. A questão que se apresenta é a quais desafios os organismos uni e pluricelulares são submetidos para as suas sobrevivências?

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Autor para correspondência: [emailprotected]

Os desafios presentes para a sobrevivência de organismos uni e pluricelulares são basicamente os mesmos, alimentação, defesa e reprodução. As estratégias utilizadas pelos dois organismos diferem. As respostas do organismo unicelular dependem da interação de sua membrana com o meio externo, havendo a necessidade de integração entre o sinal externo e a resposta. Uma bactéria é capaz de identificar a fonte de alimento como açúcar ou contaminantes como metais em seu ambiente por meio de quimioceptores e é capaz de desviar de obstáculos utilizando as informações provenientes de seus mecanoceptores. Estas informações são integradas e por meio de uma cadeia complexa de reações químicas direcionam o movimento de seus flagelos ou cílios. Desta forma mesmo o organismo mais primitivo apresenta componentes para o controle adaptativo de seu comportamento (Roth & Dicke, 2013). Um organismo formado por muitas células apresenta a necessidade de divisão de trabalho, implicando na diferenciação de células com funções específicas, formando tecidos e órgãos. As respostas do organismo multicelular para a garantia de sua sobrevivência dependem da coordenação das diferentes células. A associação de células com funções diferenciadas estabelece um novo desafio: a eficiência na comunicação entre elas

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para garantir a sobrevivência do indivíduo e a segurança de que todas as células adequarão as suas funções à necessidade presente. Como exemplo utilizemos a reação ou resposta diante de uma situação de estresse agudo, na qual existe risco de vida, real ou fictício. Quando estamos sob ameaça observamos aumento no número de batimentos cardíacos, normalmente congelamos e apresentamos alerta máximo enquanto avaliamos a situação para decidir se fugir, enfrentar que pode significar lutar ou quem sabe em nosso caso, tentamos uma negociação. É importante lembrar que o batimento cardíaco aumentado facilitará o aporte de oxigênio ao tecido muscular esquelético no caso de fuga ou luta e de nada adiantará maior quantidade de oxigênio se o tecido muscular esquelético não estiver com disponibilidade de ATP. Para aumentar a oferta de ATP as células musculares esqueléticas devem alterar o seu metabolismo ativando quebra de glicogênio e concomitantemente inibir sua síntese. No exemplo acima temos a participação do ramo simpático do sistema nervoso neurovegetativo, responsável pela ativação cardíaca e estimulação da medula da suprarrenal para liberação da adrenalina. A adrenalina liberada na corrente sanguínea, atuando como hormônio, será o sinal responsável pela integração da resposta da célula muscular às necessidades deste animal diante da ameaça, real ou fictícia.

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O sistema nervoso para a nossa espécie é condição imprescindível para a nossa vida e identidade, geralmente consideramos o nosso cérebro o sistema nervoso perfeito, o ápice evolutivo. Buscamos o entendimento do funcionamento do nosso cérebro muitas vezes desconhecendo a sua história evolutiva.

Considerações Sobre Evolução Normalmente quando se pensa em evolução de algum sistema, ou em evolução em sentido geral, a tendência é acreditar: 1 – Que evoluir significa sempre sair de uma condição simples para uma condição mais complexa – nem sempre este é o caminho, muitas vezes o derivado é mais simples que o ancestral; 2 – Que a evolução traz sempre acréscimo de estrutura e função muitas vezes a espécie derivada perde caracteres presentes no seu ancestral, e

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3 - Que a evolução é um processo finalista, ou seja, o ganho de função decorre da necessidade da mesma frente a um novo desafio – a evolução é um processo aleatório, as pressões seletivas direcionaram e direcionam a permanência ou perda de caracteres, mas não acarretaram o aparecimento destes para a solução de um desafio, a espécie que apresenta este ou aquele caractere que melhor a adapta a determinada condição apresenta maior chance de sobrevivência (Striedter, 2005). Adaptação é a chave para a evolução.

Evolução do Sistema Nervoso Breve Consideração Qual é a origem do sistema nervoso? Resposta definitiva a esta pergunta ainda não existe, os avanços obtidos nos últimos anos com os avanços obtidos a partir da década de 1990 com o desenvolvimento da filogenética molecular trouxe a formulação de novas hipóteses e teorias. As novas metodologias trazem consigo a possibilidade de novos dados e novas interpretações. A dificuldade que existe no estudo da filogênese do sistema nervoso decorre da inexistência de fósseis deste sistema, uma vez que o tecido nervoso se decompõe. Fósseis de crânios permitem apenas inferir sobre tamanho do cérebro, os moldes obtidos do interior destes crânios não fornecem informações sobre a organização funcional do sistema nervoso pertencente ao animal extinto. Na verdade, conhecer a organização e funcionamento de qualquer sistema nervoso a partir de moldes de crânios é impossível mesmo para os animais existentes em nossa era.

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A proposta do presente capitulo é apresentar alguns dados e sua interpretação existentes na literatura, que permitam levantar mais questões do que respostas sobre a evolução do sistema nervoso. Discorrer sobre toda evolução de sistema tão complexo e variado, considerando a sua estrutura, organização e função em invertebrados e vertebrados foge do escopo do presente capítulo. O sistema nervoso encontrado nas espécies existentes, invertebrados e vertebrados, apresenta uma gama variada de designs, como sistema nervoso radial, ou rede difusa, ou cadeia ganglionar ou cérebro. Do ponto de vista biológico não há design vencedor uma vez que cada um atende as demandas da espécie que o possui.

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Teria a evolução dos sistemas nervosos de invertebrados e vertebrados se dado a partir de um ancestral comum ou são independentes em suas origens evolutivas? A evolução a partir de um ancestral comum é a hipótese monofilética que pressupõe que o sistema nervoso evoluiu uma única vez, portanto, todos os sistemas nervosos existentes nos animais derivariam de um único ancestral comum. A independência na origem evolutiva constitui a hipótese polifilética, a qual pressupõe que a evolução do sistema nervoso se deu por convergência ocorrendo independentemente em várias clades (por clade entende-se um grupo constituído por uma espécie ancestral e todos os seus descendentes compondo um ramo distinto em uma árvore filogenética, Hickman et al, 2016). Existe intenso debate com defensores de ambas as hipóteses e o tema foge do escopo do presente capítulo. Qual pressão seletiva direcionou a evolução e permanência deste sistema complexo e energeticamente dispendioso? Seria o sistema nervoso causa ou efeito da relação presa-predador? O sistema nervoso apresenta grande complexidade tanto em sua organização quanto em seu funcionamento. O cérebro humano constitui 2% do peso corporal e o seu consumo de energia para o funcionamento adequado utiliza 25% do consumo corporal de glicose (Magistretti, 1999).

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Algumas teorias afirmam que a defesa ou a predação tenham sido pressões que influenciaram o direcionamento da evolução do sistema nervoso Animais de vida séssil ou parasitária apresentam sistemas nervosos pouco complexos quando comparados a animais com atividade predatória. É interessante observar que alguns antozoários possuem sistema nervoso na fase larvária, quando apresentam vida livre. Este sistema nervoso é desmontado após a metamorfose para a vida adulta, quando apresentam vida séssil (Monk & Paulin, 2014). Estas constatações não garantem que a predação tenha sido a força direcionadora para a evolução do sistema nervoso. O raciocínio inverso pode também ser levado em consideração: a predação como produto de um sistema nervoso mais complexo, e agora ao invés de direcionar o processo passa a ser consequência do mesmo. É provável que a predação e defesa tenham sido pressões

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que contribuíram para a seleção de determinados caracteres e que ambas tenham sido contemporâneas. Afinal o que é o sistema nervoso? Quais vantagens este sistema trouxe consigo? O que é um neurônio? Qual a origem do neurônio? Quando aparece o primeiro neurônio? Por sistema nervoso entendemos tecido composto por células que apresentam a propriedade de serem excitáveis, os neurônios e a glia (glia = cola). A glia é composta por diferentes tipos celulares que realizam diferentes funções como: defesa realizada pela micróglia, manutenção da composição do liquido cefalorraquidiano pelas células gliais que constituem a barreira hematoencefálica, comunicação em ganho de velocidade de transmissão do impulso nervoso por meio da mielina, constituinte da membrana plasmática de oligodendrócitos no sistema nervoso central e células de Schwann no sistema nervoso periférico, limpeza da região sináptica pelos astrócitos, participação na síntese de neurotransmissores como glutamato e GABA. Anatomicamente entendemos o sistema nervoso como um sistema que possui uma região central composta por aglomerado de neurônios funcionalmente especializados que formam núcleos que por sua vez são interconectados por tratos axonais. A existência de uma central para o sistema nervoso que na verdade representa a cefalização deste sistema, não é critério universal para a definição de sistema nervoso. Animais com simetria radial apresentam sistema nervoso difuso no qual o processamento da informação se dá no local da estimulação, com a propriedade de integrar as informações sensoriais provenientes da periferia permitindo resposta comportamental adequada.

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As vantagens da existência de sistema nervoso em um organismo poderiam ser descritas como: rapidez, precisão e adequação nas respostas dos organismos às variações de seu ambiente interno e externo, garantindo melhor capacidade adaptativa e, portanto, maior chance de sobrevivência. Por neurônio entendemos a célula polarizada (porção receptora – corpo celular dendritos, porção transmissora – axônio) de origem ectodérmica, que apresenta longos processos (axônio), com a propriedade de gerar potencial de ação, que recebe (de receptores, outros neurônios) e envia informações para outras

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células (neurônios, músculos, glândulas) por meio das sinapses. Lembrando que a comunicação dentro do sistema nervoso se dá pela geração e propagação do potencial de ação de uma célula a outra com a qual estabelece contato, por meio das junções frouxas, nas sinapses elétricas; e nas sinapses químicas o potencial de ação é o responsável pela liberação de sinal químico do terminal présináptico que atuando no elemento pós-sináptico poderá facilitar ou dificultar a geração de novo potencial de ação. As regiões sinápticas apresentam especializações tanto no terminal axônio, região présináptica quanto no corpo celular ou dendrito, região pós-sináptica. As regiões pré e pós-sinápticas apresentam proteínas específicas para o funcionamento da transmissão química. Na região présináptica são importantes as proteínas que participam na ancoragem da vesícula contendo o neurotransmissor na membrana do terminal axônico, proteínas canal iônico voltagem dependente para o íon cálcio, proteínas que funcionam como sensores de cálcio, auto receptores que modulam enzimas importantes no metabolismo do neurotransmissor liberado pelo terminal sináptico, transportadores e recaptadores. Para a região pós-sináptica o complexo proteico é denominado de densidade pós-sináptica (PSD) composto por complexos multiproteicos organizados por diferentes classes de proteínas como canais iônicos, receptores, proteínas de adesão e de citoesqueleto, quinases, fosfatases e moléculas de sinalização.

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As propriedades descritas para sistema nervoso resumidamente definidas como a capacidade de responder a estímulos e processar informações, não é exclusiva do sistema nervoso, todas as células apresentam estas propriedades. A definição dada ao neurônio estabelece algumas exclusões como, por exemplo, daqueles neurônios que não possuem longos processos, assim como daqueles que não geram potenciais de ação, e sim se comunicam por potencial graduado, como as células horizontais, amácrinas e bipolares da retina humana. A propriedade de gerar potencial de ação não é exclusiva de neurônios. Em algumas águas-vivas as células epiteliais geram potenciais de ação que se propagam por meio de junções frouxas (gap junctions, sinapses elétricas); as células geradoras do ritmo cardíaco existentes no nódulo sinoatrial de mamíferos não são neurônios. A origem epidérmica do neurônio não é universal, em

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alguns cnidários alguns neurônios têm origem endodérmica e são células mioepiteliais especializadas que apresentam propriedades mecanoceptoras e contrateis. O problema é que ao tentarmos definir o neurônio o fazemos por meio de suas propriedades e estas não sendo exclusivas, acabam por não defini-lo. Uma alternativa para a definição deste tipo celular seria a existência de moléculas-neurônio exclusivas que poderiam ser aquelas que compõem os canais iônicos voltagem dependentes ou proteínas específicas de regiões sinápticas, tanto no elemento pré quanto no elemento pós. Infelizmente a busca por estas moléculas de uso exclusivo dos neurônios é infrutífera uma vez que são encontradas em células que por definição não são neurônios. Moléculas homólogas aos canais iônicos voltagem dependentes e regiões sinápticas foram encontradas em coanoflagelados e bactérias, sugerindo que estes genes estavam presentes no ancestral comum procarionte/eucarionte, há aproximadamente 4 bilhões de anos atrás. Qual poderia ser a função de canais voltagem dependentes em organismos unicelulares? Uma hipótese provável reside na manutenção do volume celular apresentada pelo ancestral comum que habitava meio hipotônico. Considerando que a origem da vida ocorre em ambiente aquático, podemos supor que o primeiro organismo unicelular possuía o seu meio interno com a mesma composição iônica que o meio externo. O mar primordial era rico em potássio e os organismos unicelulares possuíam o seu meio interno com a mesma composição do mar externo. O metabolismo deste organismo unicelular poderia ter as suas enzimas dependentes de elevadas concentrações de potássio. As alterações atmosféricas podem ter acarretado a precipitação do potássio deste meio externo alterando a sua composição iônica com elevadas concentrações de sódio em relação ao potássio. Desta forma este organismo agora teria duas possibilidades: 1- alterar a sua composição interna para a mesma do meio externo ou 2 – estabelecer mecanismos de manutenção da sua composição interna diferente do meio externo. Considerando que o metabolismo deste animal tem dependência de potássio para o ótimo funcionamento de suas enzimas a estratégia com melhor resultado parece ter sido a manutenção do sódio no ambiente externo e concentrar potássio no seu ambiente interno. O íon sódio

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apresenta raio menor que o íon potássio, desta forma é um íon com grande quantidade de moléculas de água, conhecida como água de solvatação. A entrada do sódio para o interior celular traz consigo aumento de moléculas de água, alterando o volume celular. A bomba ATP ase sódio potássio dependente, que expulsa 3 íons sódio do meio intracelular para o meio extracelular e coloca 2 íons potássio do meio extracelular para o intracelular pode ter sido o mecanismo adaptativo para a manutenção do volume celular encontrado pelos organismos unicelulares ancestrais. O mecanismo de troca iônica acima descrito não é realizado por canal iônico voltagem dependente, contudo a assimetria no transporte iônico garante o estabelecimento e manutenção de gradiente eletroquímico, importante para a geração de potencial de ação em células excitáveis. Todas as células mantêm seu volume intracelular constante, todas as células apresentam diferença de potencial, as células excitáveis utilizam esta diferença para a geração de corrente iônica que é o impulso nervoso. O fato interessante é que canais iônicos voltagem dependentes e trocadores iônicos de membrana podem ter sido em um primeiro momento soluções para o problema de manutenção do volume celular e estas soluções podem mais tarde terem se especializado para uma função totalmente diferente, como a comunicação celular. Bactérias que formam biofilme utilizam canais de potássio voltagem dependentes para informar a sua parceira sobre a presença de metabólitos no meio. O metabólito ativa a bactéria que como resposta libera potássio. O potássio liberado pela bactéria sinalizadora despolariza as células vizinhas por ativação do canal de potássio voltagem dependente, esta ativação causa a liberação de potássio que terá o mesmo efeito na bactéria vizinha, propagando a informação de metabolito presente através do biofilme. É possível que o canal de potássio voltagem dependente tenha sido o único canal presente nos primeiros organismos e sua função mais provável era a regulação do volume celular permitindo a alteração do conteúdo iônico da célula em resposta ao estiramento da membrana plasmática, causado por aumento na quantidade de água no seu interior. Provavelmente o próximo canal iônico voltagem dependente a ter aparecido tenha sido o canal de cálcio como mecanismo de controle do estado metabólico deste organismo unicelular e posteriormente em organismos mais tardios estes canais passaram a participar na regulação do batimento ciliar e contração muscular. A

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combinação adequada de canais voltagem dependentes de potássio e cálcio existentes em alguns organismos unicelulares pode ter permitido a geração de potencial de ação expandindo a capacidade deste organismo em diferentes direções. Os canais de potássio e cálcio eram suficientes para a geração de potencial de ação, quais as vantagens adicionadas pelo canal de sódio voltagem dependente? Uma hipótese sugere que os canais de sódio voltagem dependentes poderiam integrar estratégias para redução das concentrações intracelulares de cálcio, impedindo sua ação tóxica, outra hipótese sugere que com a participação do íon sódio na geração do potencial de ação os íons cálcio poderiam participar de outras funções celulares como a liberação de transmissores e contração muscular. Uma possibilidade alternativa poderia ser a duração do potencial de ação que é menor e sua condução mais rápida com a participação dos canais de sódio quando comparado àqueles com a participação dos canais de cálcio. Um dado interessante é que os canais voltagem dependentes para sódio, potássio e cálcio são compostos por subunidades homólogas, os genes responsáveis pela síntese das proteínas que formam os canais de sódio e cálcio são produtos da duplicação do gene que codifica o canal de potássio (Kristan Jr., 2016; Liebeskind etal., 2017).

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Uma estratégia interessante de controle da musculatura corporal é apresentada pelo grupo das medusas (cnidários). Estes animais possuem simetria radial, o sistema nervoso é composto por diferentes tipos celulares como neurônio sensorial, interneurônio e neurônio motor. Os cnidários possuem conexões sinápticas estabelecidas entre neurônios e entre neurônios e células musculares. A medusa do gênero Aglantha apresenta dois tipos de nado: um lento e fraco que apresenta contrações rítmicas da umbrela que movimenta o corpo ritmicamente e outro rápido, no qual contrações mais fortes movimentam o animal de maneira mais rápida. O segundo tipo de nado ocorre em resposta à estimulação mecânica intensa em alguma região do animal. Tanto as contrações fracas quanto a forte são resultantes de um único potencial de ação no mesmo neurônio motor gigante. Estes neurônios apresentam a habilidade de gerarem potencial de ação usando tanto canais de sódio voltagem dependentes quanto canais de cálcio voltagem dependentes. Quando os neurônios motores são ativados pelos interneurônios

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geradores de ritmo, a despolarização é baixa e suficiente para ativar os canais de cálcio voltagem dependentes, que apresentam baixo limiar. O potencial de ação propaga-se pelo axônio e causa a contração fraca dos músculos da umbrela, nado lento. Um estímulo sensorial de maior intensidade acarreta despolarização de maior amplitude que ativa os canais de sódio voltagem dependentes, produzindo potenciais de ação de maior amplitude, mais rápidos no mesmo axônio. A natureza do potencial de ação implica na quantidade de neurotransmissor liberado. O potencial de ação com a participação dos canais de sódio apresenta maior amplitude e causa maior liberação de neurotransmissores, o que gera maior força na contração muscular, nado rápido. O mesmo neurônio motor controla dois comportamentos distintos pela ativação de dois canais iônicos voltagem dependentes (Kristan Jr., 2016; Castelfranco & Hartline, 2016). A seleção dos canais de sódio voltagem dependente parece ter ocorrido quando a predação com movimentos mais rápidos se torna extremamente benéfica. Pode ser que a seleção por potenciais de ação com menor duração tenha contribuído para a evolução de canais de potássio voltagem dependentes com cinéticas mais rápidas. Desta forma a rápida despolarização causada pelos canais de sódio voltagem dependentes terminaria de forma mais precoce com canais de potássio mais rápidos permitindo a existência de comportamentos mais velozes, uma vez que a duração das fases do potencial de ação seria reduzida (Kristan Jr., 2016). Neste contexto tanto a predação quanto a defesa necessitam de comportamentos que possam ser engatilhados e expressos em curtos intervalos de tempo. O gatilho para o comportamento predatório ou defensivo dependerá da capacidade de detecção da presa por parte do predador e do predador por parte da presa, o que sugere a existência de sistema eficaz na percepção e sinalização. Os canais iônicos voltagem dependentes para o potássio e cálcio podem ter sido eficientes para organismos unicelulares e pequenos animais multicelulares, é provável que esta eficiência tenha sido colocada à prova com o aumento do tamanho dos animais multicelulares. Existe correlação entre o aumento no tamanho corporal dos animais, velocidade de reação e o estabelecimento dos canais de sódio voltagem dependentes.

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Mielina – Breve Consideração Sobre sua Evolução Os neurônios existentes nos vertebrados podem ser amielínicos, sem a bainha de mielina (na verdade existe mielina contudo em quantidade muito menor quando comparada àquela existente nos neurônios mielínicos) e mielínicos com a presença desta. A diferença entre ambos reside na velocidade de condução do impulso nervoso, sendo maior no neurônio que apresenta a bainha de mielina. Maior velocidade de condução favorece os organismos cuja prioridade seja a rápida reação aos eventos ambientais. A descrição da mielina se deu em 1838 por Remak que atribui uma função de proteção ao axônio a esta membrana. A principal função da mielina é aumentar a velocidade de condução do impulso nervoso, as funções de nutrição e manutenção da integridade neuronal também têm sido propostas (Zalc, 2016). A presença da bainha de mielina confere tolerância térmica como fator de segurança para a condução e redução do custo energético da atividade neuronal. Em muitas espécies de invertebrados e vertebrados o diâmetro axonal varia de 0.3 a 30 µm. A velocidade de propagação do potencial de ação no axônio amielínico de invertebrado de 10 µm de diâmetro é menor do que 1m/s. Esta velocidade de condução é suficiente para organismos com tamanho entre 0,1 a 30 cm, portanto, animais pequenos. Esta velocidade de condução se aplicada para animais maiores oferece risco de comprometimento da integridade e sobrevivência destes (Castelfranco & Hartline, 2016).

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Os cefalópodes (polvo, lula, sépia) apresentam axônios com diâmetros iguais ou superiores a 1 mm, conhecidos como axônios gigantes, que apresentam rápida velocidade de condução do impulso nervoso. Importante ressaltar que estes neurônios com axônios gigantes participam de respostas rápidas de escape destes cefalópodes. Com o aumento da velocidade de condução os cefalópodes aumentaram o tamanho corporal. O recurso de aumento de diâmetro axonal para aumento de velocidade de condução encontra nos vertebrados um fator limitante. O crânio confina o cérebro e as vértebras confinam a medula espinhal. Para o ser humano manter uma velocidade de condução de 50m/s apenas pelo aumento do diâmetro de seus axônios, a medula espinhal precisaria ter 1 metro de diâmetro. A aquisição da mielina por manter o diâmetro

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axonal entre 10-15 µm possibilita a espécie humana possuir uma medula espinhal de 6 a 7 cm no máximo (Zalc, 2016). A mielinização é apontada como um dos principais fatores que permitiram o aumento do tamanho corporal por garantir que partes distantes dos organismos pudessem ser integradas em curtos intervalos de tempo, juntamente com os canais de sódio voltagem dependentes. A mielina não é exclusividade dos vertebrados, anelídeos da classe oligoqueta (minhocas), crustáceos como camarão e copépodas apresentam mielina embora diferente da existente nos vertebrados, desempenha a mesma função. Uma questão importante na mielinização axonal, seja em neurônios do sistema nervoso central ou periférico, é a necessidade de interação entre a célula glial e o neurônio. Os neurônios mielinizados apresentam maior densidade de canais iônicos voltagem dependentes nos nódulos de Ranvier e nos segmentos internodulares a densidade é baixa. Os neurônios amielínicos que apresentam densidade de canais iônicos constante em toda extensão axonal. Esta distribuição diferenciada de canais iônicos indica a existência de sinal do neurônio atraindo ou repelindo a célula glial para a síntese de bainha de mielina e envelopamento de segmento axonal, como também da glia para o neurônio sinalizando a inserção de canais iônicos em locais corretos da membrana para garantir a condução do impulso nervoso, saltatória observada nos neurônios mielínicos e contínua nos amielínicos.

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Qual seria o caminho evolutivo para esta interação entre neurônio e as células gliais responsáveis pela mielinização do axônio?

Sinapse Química - Breve Consideração Sobre a sua Evolução Seria a sinapse química uma invenção de organismos multicelulares? Um dado interessante e ao mesmo tempo surpreendente é a presença de genes tanto para moléculas presumidamente sinapseespecíficas em organismos unicelulares, quanto de enzimas para a produção e liberação de transmissores e proteínas estruturais responsáveis pelas respostas pós-sinápticas ao transmissor. Dados obtidos em estudos eletrofisiológicos e filogenéticos realizados em

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cnidários e ctenóforos sugerem que a ancestral de uma sinapse química tenha sido provavelmente peptidérgica. Um possível precursor da transmissão sináptica é observado em coanoflagelados, clado com mais de 125 espécies unicelulares. Em algumas espécies de coanoflagelados as células se agregam em colônias. O indivíduo agora passa a ser a colônia no sentido de que a sua sobrevivência dependerá da ação coordenada de cada célula para a manutenção da colônia. Como são animais marinhos há a necessidade de passagem de água pela colônia que é dado pelo movimento flagelar de cada indivíduo. Cada célula é capaz de liberar transmissores, que atuarão nos receptores dos indivíduos vizinhos produzindo movimento flagelar em toda a colônia. Esta característica proto-hormonal é também observada em algumas esponjas. As esponjas são animais que não possuem sistema nervoso, sendo a maioria marinha, de vida séssil. A alimentação depende da passagem do ambiente pelo animal, que é possível pela existência de muitos poros que compõe o seu corpo. Estes poros são constituídos por células que apresentam flagelos, conhecidas como coanócitos, dada a sua semelhança com o coanoflagelados. O fluxo de água se dá pelo batimento flagelar que força a água para dentro dos poros permitindo que a mesma flua pelo átrio, grande cavidade interna, sendo eliminada para o meio ambiente pelo ósculo (pequena boca). Uma forte estimulação mecânica no corpo da esponja promove a liberação de glutamato, GABA (ácido gama-amino-butírico) e óxido nítrico pelos coanócitos. Estes sinalizadores são transportados pela água causando a coordenação da contração da musculatura da parede corporal e ósculo. As esponjas utilizam os transmissores como hormônios e o fluxo de água se comporta como sistema circulatório. Os receptores para os sinalizadores encontrados em esponjas, coanoflagelados e bactérias são metabotrópicos, ou seja, a ligação da molécula sinalizadora ao seu receptor ativa uma cascata de sinalização intracelular na célula alvo. Este tipo de transmissão gera movimentos lentos e prolongados. Alguns autores sugerem que a primeira forma de sinalização sináptica tenha sido metabotrópica (Kristan Jr., 2016).

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O placozoa, Tricoplax adherens, não apresenta células que se assemelhem a neurônios ou músculos, contudo esta espécie apresenta genes que são responsáveis pela expressão de canais iônicos voltagem dependentes, estruturas pré e pós-sinápticas e mesmo transmissores.

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Proteínas que compõe a sinapse em espécies que não apresentam neurônios sugerem que estas evoluíram antes das células nervosas. Genes que codificam proteínas homólogas às que compõe as zonas ativas dos terminais pré-sinápticos, que integram as vesículas sinápticas, que participam do processo de exocitose e da sinalização são encontrados em coanoflagelados, grupo próximo aos metazoários. Uma vez que estas proteínas nestes grupos não constituem sinapse são denominadas de proto-sinápticas. A presença destas proteínas proto-sinápticas em espécies próximas aos metazoários sugere que o arcabouço molecular crítico para a transmissão sináptica evoluiu antes da origem da sinapse. A comunicação neuronal ocorre pela interação entre regiões présináptica e pós-sináptica especializadas, que transformam as correntes elétricas da membrana do neurônio pré-sináptico em sinais químicos liberados que por sua vez serão transformados em corrente elétrica, ou sinal intracelular no neurônio pós-sináptico. Pouco se conhece sobre as funções ancestrais das proteínas sinápticas. A primeira sinapse verdadeira pode ter sido a neuromuscular, esta poderia ser uma especialização para curta-distância derivada de interações semelhantes às neuroendócrinas utilizadas por coanoflagelados e poríferas (Kristan Jr., 2016).

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A presença de canais iônicos voltagem dependentes e moléculas sinápticas não transforma uma célula automaticamente em neurônio. Em linhas gerais estas moléculas devem ser produzidas em número adequado, terem localização e inserção adequada na membrana. A capacidade de influenciar células localizadas a grandes distâncias implica na existência de processos longos e finos e os terminais destes processos devem ser localizados no local adequado do seu parceiro sináptico. Estes dados não podem ser obtidos de fósseis. Moléculas que participam do desenvolvimento neuronal, crescimento axonal e formação das sinapses têm sido investigadas como marcadores para neurônios. Estas moléculas têm evolução paralela à evolução dos canais iônicos voltagem dependentes, apresentando significante expansão no Período Cambriano. É importante ressaltar que os fósseis existentes do período pré-cambriano indicam que os primeiros animais fossilizados (560-540 milhões de anos atrás) foram provavelmente animais sesseis e filtradores, apresentando sinais de atividade de cavar o substrato no início da explosão cambriana

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(540milhões de anos atrás). A escassez de fosseis de animais antes do período cambriano pode ser explicada pela condição ambiental inóspita, eras glaciais, com restrição de oxigênio atmosférico. Há 525 milhões de anos atrás os animais filtradores foram substituídos por animais com coberturas externas rígidas nas mais variadas formas como espinhos, conchas e placas. Este rico arranjo de armadura externa e armas de defesa sugere que neste período teve início a predação. O aumento do tamanho destes animais tornou arriscado deixar sem coordenação as suas diferentes partes. O comportamento predatório pode ter favorecido animais capazes de movimentos rápidos para a obtenção de alimento e claro para escapar de se tornar alimento para outro animal (Kristan Jr., 2016). Novamente vale a pena ressaltar que não necessariamente a pressão pela sobrevivência forjou a organização do sistema nervoso, a existência de sistema nervoso pode ter permitido a emergência de comportamento predatório e defensivo. A pressão por alimento e não virar alimento pode ter favorecido a evolução e permanência de sistemas de condução rápida, como os neurônios. A primeira indicação de tecido nervoso é o aparecimento de olhos bem definidos e contornos de sistemas nervosos em fosseis de 525 milhões de anos (Kristan Jr., 2016).

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A origem do primeiro sistema nervoso é território de intensa disputa. Das espécies existentes de Radiata (Ctenófora e Cnidária) e Bilateria, todas possuem neurônios ao passo que Placozoa e Porífera não. A pergunta que se coloca é qual é o grupo basal? Ou seja, qual é o grupo com menor derivação que deu origem aos demais grupos. Características morfológicas e moleculares sugerem relações entre os quatro grupos: Bilateria, Cnidária, Placozoa e Porífera, a posição do grupo Ctenophora ainda é discutível. Resultados de estudos moleculares mais extensos permitem colocar o grupo Ctenophora como o grupo mais basal dos cinco clados. Os Ctenóforos teriam se separado dos metazoários muito antes do grupo Porífera. A definição do grupo basal é importante para a reconstrução dos eventos evolutivos que implicaram nos diferentes desenhos de sistema nervoso. Caso o grupo Ctenophora seja o grupo basal para as esponjas, a origem do neurônio apresenta dois cenários plausíveis. No primeiro cenário o ancestral comum de todos os maiores clados possuía neurônio, que foi perdido nos clados Porífera e Placozoa. No

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segundo cenário os neurônios teriam duas origens independentes, uma no ancestral de Ctenophora e a segunda no ancestral compartilhado pelos ramos Cnidária e Bilateria (Moroz, L.L., 2009; Budd, G.E., 2016; Castelfranco & Hartline, 2016; Kristan Jr., 2016). A análise genômica permitirá o estudo de detalhes destes eventos evolutivos e quem sabe nos traga a resposta de qual o grupo basal a ser considerado para a evolução do sistema nervoso. Outra possibilidade é a cooptação de proteínas com funções totalmente distintas das neuronais em grupos basais para esta nova função em grupos derivados e este evento pode ter ocorrido independentemente em diferentes grupos que convergiram para a evolução do sistema nervoso (Burkhardt & Sprecher, 2017).

Considerações Sobre a Organização do Sistema Nervoso e Repertório Comportamental É inegável que a existência do sistema nervoso permite a emergência de comportamentos complexos. Este sistema apresenta a propriedade de armazenar as informações e combiná-las nas mais diferentes formas para a solução de desafios. Consideramos inteligentes as espécies que apresentam grandes encéfalos a até há alguns anos atrás a laminação cortical era sinônimo de possibilidade de inteligência, para muitos a única.

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Nós, os humanos, sempre nos consideramos o topo evolutivo, a inteligência suprema, relegando as demais espécies a condição de animais, uma vez que temos dificuldade de nos enxergarmos como uma espécie animal. Para a grande maioria das pessoas só é capaz de sentir dor aquele que possui um cérebro igual ao nosso. Para muitos, com esta concepção de sistema nervoso resumida a encéfalo, os invertebrados por não possuírem cérebro igual ao nosso não devem sentir dor e como apresentam poucos neurônios em seus sistemas nervosos devem ser incapazes de aprendizado, e seus comportamentos devem ser reflexos e não elaborados. As aves por não possuírem neocórtex não são inteligentes. Por inteligência normalmente entendemos a capacidade de solução de

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problemas matemáticos, falar diversos idiomas, interpretar textos e por aí afora. Muitos indivíduos negam a teoria da evolução. De certa forma é muito incomodo um ser tão perfeito como o humano derivar de um ancestral primata não humano. A divindade se sente ameaçada! Durante muito tempo os paradigmas utilizados para avaliar a inteligência de outros animais foram inadequados, por desconsiderar a biologia da espécie em estudo. Particularmente, considero a inteligência como a capacidade de solução de problemas biologicamente relevantes. As diferentes espécies ocupam diferentes habitats e cada uma enfrenta diferentes problemas para a sua sobrevivência. Costumo dizer que se fosse possível estabelecer diálogo com as outras espécies as visões de mundo e vida seriam as mais variadas. Antes de apresentar alguns exemplos de comportamentos elaborados em invertebrados e aves é importante esclarecer que a laminação cortical sempre considerada como o diferencial da nossa espécie não é exclusiva desta. O peixe dourado, a carpa e o peixe paulistinha, da família dos ciprinídeos, possuem uma estrutura cerebral laminada, o lobo vagal, composta por 15 camadas, importante para o comportamento alimentar desta família, permitindo a separação da boa comida daquela ruim. As camadas mais superficiais desta estrutura constituem o componente sensorial (informações gustativas do interior da boca e órgão palatal), sendo homóloga ao núcleo do trato solitário de outros vertebrados; as camadas mais profundas constituem o componente motor, controla os músculos bucais, e é homóloga a porções do núcleo ambíguo de outros vertebrados. Os Gymnotiformes, peixes elétricos neotropicais, apresentam laminação no torus semicircularis, estrutura mesencefálica, importante para a decodificação dos sinais elétricos emitidos pelo próprio peixe e por outros. Esta estrutura apresenta 12 lâminas e 48 tipos celulares e integra informações nos dois eixos, vertical e horizontal. O corpo geniculado lateral, estrutura integrante da via visual, em mamíferos e alguns marsupiais é laminado. A laminação traz consigo as seguintes vantagens: 1- redução no comprimento das conexões, 2 – o arranjo retangular das lâminas reduz o volume da estrutura e 3 – facilita a emergência de função mais complexa, uma vez que as lâminas são passíveis de integração das informações tanto no eixo vertical quanto horizontal. A organização laminar promove economia de espaço, tempo de condução e energia, sendo, portanto, uma estratégia

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evolutiva, que pode ter ocorrido de maneira independente nas diferentes espécies (Striedter, 2005).

Comportamentos Puramente Inatos ou Elaborados? No grupo dos invertebrados, os cefalópodes (polvo, lula e sépia) apresentam sistema nervoso altamente desenvolvido, que se caracteriza pela fusão de gânglios e o subsequente desenvolvimento destes em lóbulos, formando cérebro complexo próximo ao esôfa*go. O lobo vertical nos polvos é considerado a região de maior complexidade. Os polvos são considerados os invertebrados mais inteligentes, vários vídeos estão disponíveis demonstrando a capacidade de solução de problemas, aprendizado por observação de outro polvo na solução do paradigma experimental, habilidade de fuga e recentemente o registro de polvos carregando cascas de coco vazias para serem utilizadas como abrigos, sugerindo a utilização de ferramentas por esta espécie.

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Outro invertebrado cujo comportamento sugere ser elaborado é o caranguejo eremita, Pagurus bernhardus . Este caranguejo por não possuir carapaça habita conchas deixadas por moluscos, apresentando predileção pela concha Littorina obtusata, a busca por uma nova residência é constante, havendo competição entre dois indivíduos da mesma espécie pela posse da concha predileta. A escolha pela nova concha implica não só na exploração visual como também no abandono da velha concha e entrada na nova para testar se esta preenche os requisitos que satisfaçam o novo inquilino. O sistema nervoso dos caranguejos é constituído por um gânglio denominado de cefálico, que desempenha função na percepção olfativa, visual, antenal e de equilíbrio. O gânglio cefálico conecta-se ao cordão nervoso ventral por meio do cordão circumesofa*geano. O cordão nervoso ventral nos braquiúros é resultante da fusão dos gânglios torácicos e abdominais. O cordão nervoso ventral integra as informações provenientes do gânglio cefálico e adequa o controle motor das pernas ambulatórias e quelípodes permitindo resposta comportamental adequada, tanto de locomoção quanto de defesa. O gânglio estomatogástrico situado na região dorsal do estomago

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controla os seus movimentos de trituração e esvaziamento. O número de neurônios que compõem o sistema nervoso central de crustáceos é pequeno, contudo, estes animais com poucos neurônios e sistema nervoso de organização simples são capazes de sentir dor e reagir a ela, bem como de blefarem quando o que está em jogo é evitar o embate corporal. Para muitos de nós imaginar que um caranguejo sinta dor soa bastante bizarro, talvez se definirmos melhor esta percepção e estabelecermos critérios para constatar esta propriedade de percepção em outras espécies, bizarro talvez se torne não termos levado esta possibilidade em conta. A dor pode ser descrita como uma sensação e sentimento aversivos associados a dano potencial ou real do tecido (Broom,2001). A dor contém dois componentes: 1 - a capacidade de detectar o estímulo doloroso, nocicepção que permitirá ao animal a emissão de comportamento adequado e 2- a interpretação emocional interna, que corresponde ao sofrimento, desta percepção. Os critérios para a demonstração de dor em outras espécies incluindo vários invertebrados são:

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1 – Existência de sistema nervoso e receptores; 2 – Reação de esquiva; 3 – Reações motoras protetivas que incluem uso reduzido da área afetada, claudicação, friccionar a área afetada ou autotomia (em crustáceos a perda das pernas ou quelípodes é fenômeno defensivo de sobrevivência, e o processo é controlado por dopamina). A autotomia difere da retirada de pernas ou quelípodes feitas muitas vezes com a justificativa de pesca de preservação. Na autotomia existe a coagulação da hemolinfa em concomitância à perda do apêndice, na retirada dos apêndices feitos por exemplo por um humano a hemolinfa leva mais tempo para coagular podendo levar o animal à morte por perda do seu suprimento de oxigênio; 4 – Alterações de parâmetros fisiológicos como glicemia, concentração de lactato; 5 – Existência de receptores opioides e evidencias de redução da dor com o uso de anestésicos locais ou analgésicos (Elwood, Barr & Patterson, 2009).

Em um artigo publicado por Elwood e Appel em 2009, realizado com o caranguejo eremita estes autores demonstraram nesta espécie a experiencia de nocicepção. Os experimentos consistiam em retirar os indivíduos de suas e oferecer a concha predileta para ser ocupada.

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O artifício utilizado pelos autores foi a colocação de eletrodos no interior das conchas que permitiam a aplicação de choques elétricos, em intensidade inferior àquela que causa danos teciduais. Foram utilizados dois grupos de caranguejos, o grupo controle que não recebeu nenhum choque e o grupo experimental que recebeu o choque elétrico. Nova concha predileta sem eletrodos era oferecida 20 segundos após o choque a 5 cm de distância do caranguejo, com a sua abertura para baixo. Os parâmetros medidos foram: tempo de aproximação e investigação da nova concha, número de vezes que o quelípodes era colocada dentro da nova concha. Os caranguejos que não receberam choques não abandonaram suas conchas, aqueles pertencentes ao grupo experimental demonstraram resistência para abandonar a preferida concha, indicando competição motivacional entre abandonar um recurso precioso e sentir dor. O abandono de conchas é mais frequente quando o choque é realizado em conchas que não são as preferidas. Alguns animais do grupo experimental abandonaram as conchas após o choque limpando o abdômen, batendo o abdômen contra uma concha vazia, comportamento usual desta espécie quando deseja expulsar o ocupante de uma concha para fazer uso dela. Este comportamento de bater em concha desocupada pode indicar agressão desencadeada por um estímulo nocivo.

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O comportamento de blefe, muito utilizado em jogos de carta como o pôquer, tem o objetivo de enganar o adversário. No caso o jogador sabe o que tem na mão, desconhece, mas suspeita o que contem a mão de seu adversário. A fim de evitar ter que mostrar o seu jogo e enganar o adversário, aquele que fará uso de blefe assume postura de quem está com o jogo ganho, muitas vezes fazendo altas apostas tentando dissuadir o seu oponente a permanecer no jogo. O blefe é trapaça, e o caranguejo eremita faz uso desta artimanha para dissuadir o seu oponente do confronto físico. A concha é fundamental para a sobrevivência desta espécie. As disputas pelas conchas envolvem comportamentos denominados de pré luta, cujo objetivo é a mudança do comportamento do oponente. Na fase de pré luta os oponentes exprimem diversos comportamentos que podem resultar na aproximação ou retirada de seu oponente. A pré luta é, portanto, o momento adequado para a manipulação do oponente. Um dos comportamentos expressos na fase de pré luta é a apresentação da quelípoda. A apresentação honesta é aquela que permite ao opositor

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avaliar o seu tamanho estando a quelípoda aberta perpendicular ao solo. A apresentação desonesta impede ao oponente a avaliação do tamanho real uma vez que a quelípoda aberta é apresentada em posição frontal acima do opositor. Esta é a blefe. Experimentos onde caranguejos de menor tamanho receberam conchas de tamanho preferido dos caranguejos de maior tamanho e aos caranguejos de maior tamanho foram ofertadas conchas de menor preferência e menores, demonstraram que a apresentação de blefe foi frequentemente utilizada pelos indivíduos de menor tamanho, quando confrontados com os maiores. A manipulação utilizada pelos indivíduos menores reduz a probabilidade dos indivíduos de maior tamanho atacarem e se o ataque acontecer há redução das chances de o atacante vencer a disputa (Elwood etal., 2005). Os resultados acima descritos sugerem que apesar de poucos neurônios e estrutura pobre em complexidade estes crustáceos parecem conhecer as suas limitações e avaliar as potencialidades de seus adversários. Durante muito tempo as aves foram consideradas animais sem capacidade de raciocínio, dada a organização de seus cérebros que não apresenta neocórtex. As novas metodologias permitiram importantes mudanças nestas considerações uma vez que a organização nuclear das estruturas cerebrais de aves apresenta hom*ologia com estruturas laminares corticais da nossa espécie.

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Os corvos possuem sofisticada capacidade mental e utilizam a lógica para a solução de problemas. Pedaços de carne pendurados por uma corda amarrada em um poleiro foram oferecidos a corvos, situação pouco provável na natureza. Após alguns minutos de estudo da situação, corvos adultos resolveram o problema, em 30 segundos. A ave com auxílio do bico ergueu a corda, utilizando o pé para segurar o pedaço de corda erguido, deixou o pedaço de carne amarrado cair novamente, novamente com o bico ergueu a corda, soltando a anterior do pé e segurando o novo segmento, as etapas foram repetidas até o comprimento da corda ser o suficiente para permitir à ave segurar com o pé o pedaço de carne e degusta-lo. O problema não foi resolvido por tentativa e erro e sim por análise da situação e solução lógica, uma vez que a tarefa foi realizada na primeira tentativa e em várias etapas. Corvos com um ano de idade necessitaram de seis

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minutos para resolverem o problema utilizando várias estratégias como voar no alimento, tentar cortar ou torcer a corda durante este período. Vale ressaltar que as aves não foram recompensadas com alimento em nenhuma etapa do processo de erguer-segurar a corda, para comer, o corvo cumpria a sequência até o fim. Algumas espécies de corvos se alimentam de carne obtida de caça abatida por lobos. Existe competição pelo alimento, portanto os corvos precisam de adaptação a um ambiente imprevisível. Quando jovens estas aves praticamente “brincam com o inimigo” rolando de costas na neve com seus pés para o ar, próximos aos lobos e à caça abatida. Este comportamento lúdico prepara o animal a reações rápidas e plásticas tornando familiar uma situação perigosa. Uma característica de o comportamento alimentar dos corvos é esconder o pedaço de alimento obtido e o corvo o faz totalmente em privado, ou seja, longe de seus co- específicos. Este comportamento de esconder o alimento sem dar pistas do esconderijo, se justifica uma vez que é comum um corvo roubar o alimento escondido por outro. Além da logica estas aves são oportunistas.

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Em um experimento pesquisadores colocaram dois corvos em uma gaiola, um dos corvos podia ser visto pelos corvos soltos em uma área contendo alimento e locais para esconder o mesmo. O outro corvo da gaiola não podia ser visto pelas aves livres pela existência de uma cortina que o escondia. Quando os corvos da gaiola foram soltos, os autores observaram que o corvo que estava exposto era controlado pelos corvos livres enquanto aquele que ficou atrás da cortina era ignorado pelos demais. Estes resultados sugerem que os corvos são capazes de identificar e memorizar o indivíduo que oferece risco, no caso roubo do alimento escondido (Heinrich & Bugnyar, 2007). Algumas aves recolhem alimentos na época em que estes estão disponíveis, como vermes, sem*ntes e os escondem para períodos de escassez. Experimentos realizados em laboratório permitiram a verificação de que estas aves quando lhes é dado acesso aos alimentos escondidos, ingerem primeiro os vermes que são perecíveis e depois as sem*ntes, indicando conhecerem o onde esconderam e quando o fizeram (Clayton etal., 2003).

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A vida social pode ter sido o fator que direcionou a evolução da inteligência, uma vez que possuir a habilidade de prever as respostas de outros animais da mesma e de outras espécies torna-se fator extremamente importante. A capacidade de resolver problemas biologicamente relevantes permite plasticidade comportamental, uma vez que os ambientes habitados pelas diferentes espécies são complexos e imprevisíveis nos quais comportamentos preestabelecidos podem ser inapropriados.

Considerações Finais O sistema nervoso trouxe muitas possibilidades, mas não é essencial à vida uma vez que animais que não o possuem ainda habitam este planeta, como as esponjas. A simplicidade em sua organização ou o número reduzido em suas células, a sua organização ganglionar, nuclear ou laminar, difuso ou concentrado formando cérebros, nada informa sobre a inteligência do animal que possui o sistema. Os paradigmas para investigar dor, inteligência – sempre no sentido de solução de problemas de relevância biológica é que devem ser adequados à espécie em estudo.

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“A ausência de evidencia não é evidencia de ausência” (Sherwin, 2001), é uma frase que tenho sempre em mente e que me auxilia a perguntar sempre que me deparo com afirmações categóricas e privadas de dados experimentais confiáveis. A evolução da ciência traz consigo novas metodologias, que se adequadamente utilizadas permitirão responder muitas perguntas não só sobre a evolução do sistema nervoso. Quem sabe se em um futuro não muito distante a nossa espécie entenda que a sua existência depende do respeito às demais espécies existentes em nosso planeta, por ser ela mais uma espécie e não a espécie dona do planeta. A trajetória evolutiva do sistema nervoso é longa, controversa e ainda em grande parte desconhecida, é um sistema de alto custo energético, e importante para todas as espécies que o possuem. Talvez conhecendo melhor a sua história evolutiva entenderemos que é imperioso fazer uso do mesmo da melhor maneira possível, afinal desperdiçar esta construção da evolução seria “irracional”, não muito coerente para uma espécie que se julga a mais inteligente do planeta!

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Neuromitos no Alvo: Desmitificando o Cérebro

3 Roberta Ekuni*

Universidade Estadual do Norte do Paraná

Introdução

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Autor para correspondência: robertaekuni@ uenp.edu.br Universidade Estadual do Norte do Paraná, Centro de Ciências Biológicas, Rodovia BR-369, Km-54. CP 269. Vila Maria, CEP: 86.360-000 Bandeirantes - PR, (43) 3542-8008 Agradecimentos Ao Fundo de Combate aos Neuromitos por auxiliar o Projeto “Caçadores de neuromitos” ao qual a autora faz parte. Aos queridos Orlando Francisco Amodeo Bueno (in memorian) e Larissa Zeggio, parceiros do Projeto Caçadores de Neuromitos.

Feche os olhos e tente lembrar de matérias de divulgação científica que viu recentemente. Provavelmente, dentre as que pensou, alguma envolvia o cérebro1 , certo? Desde a “década do cérebro” (anos 1990), a Neurociência se popularizou ao ocupar tanto capas de revistas científicas de alto impacto como “Science” e “Nature” quanto revistas e jornais populares (Ansari, Coch, & De Smedt, 2011). Esses estudos, exercem um fascínio nas pessoas, fenômeno conhecido como neurofilia (apetite pelo cérebro) (Fuller, 2012) que também está presente em programas televisivos e filmes. Inclusive, como cita Fuller (2012), devido ao grande interesse geral nas questões que envolvem “neuro”, no seriado Dr. House (uma série que se passa em um hospital com casos médicos interessantes que devem ser diagnosticados para que o paciente seja salvo), quase 30% dos episódios envolvem casos de síndromes neurológicas. Entretanto, a expertise do personagem principal é nefrologia e doenças infecciosas e não neurologia. Em consonância com essa neurofilia, na área médica, a maioria dos livros ranqueados no site da Amazon são da Neurociência, sendo que 20 estão no top 100 dos livros de medicina mais vendidos (Fuller, 2012). Isso se repete em publicações de uma revista médica de alto impacto, no qual a maior porcentagem de artigos publicados 1 No Brasil, a tradução de brain é encéfalo (telencéfalo, ponte e cerebelo). Entretanto, o termo popularmente conhecido é cérebro (telencéfalo). Como popularmente o termo cérebro é utilizado em ações de divulgação científica (por exemplo, em ações como a Semana do Cérebro, chancelada no Brasil pela Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento - SBNeC), no presente capítulo, o termo cérebro será utilizado para se referir à tradução popular do termo brain.

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envolvem neurologia (Fuller, 2012). Além disso, há muitas informações que antes eram explicadas pelo campo da Psicologia tentando ser substituídas por explicações neurocientíficas (Baron, 2018). Talvez isso se deva ao fato de que há uma tendência em achar que a Neurociência seja o melhor método para explicar fenômenos psicológicos (Weisberg, Hopkins, & Taylor, 2018). Frente a esse apetite pelo cérebro, temos um fenômeno conhecido como neuromitos, que de modo geral, são informações incorretas sobre o cérebro, mais especificamente um “equívoco gerado pelo entendimento incorreto, uma má interpretação ou má citação de fatos estabelecidos cientificamente (pela ciência do cérebro)” (OECD, 2002, p. 111). Um exemplo clássico de neuromito é que usamos cerca de 10% do cérebro, inclusive virou tema de filmes (Lucy, filme de Luc Besson e Sem limites, filme de Neil Burger). Na Argentina, esse foi o neuromito que os professores mais acreditavam ser correto (40%) (Hermida, Segretin, Soni García, & Lipina, 2016). Em um levantamento, 14% dos norte-americanos que diziam ter alto treinamento em Neurociência, acreditavam nessa afirmação (Macdonald, Germine, Anderson, Christodoulou, & McGrath, 2017). Outro questionário realizado com neurocientistas, mostrou que uma pequena parcela (6%) acreditava nesse mito (Herculano-Houzel, 2002). Entretanto, em ambos os casos, comparado com educadores ou com a população em geral, a porcentagem de neurocientistas ou pessoas com treinamentos em Neurociência que acreditavam nesse neuromito é bem menor. De forma breve, talvez esse neuromito persista tanto por ser otimista, ou seja, se o ser humano usasse pouco, imagine o que ele poderia fazer se desbloqueasse outras porcentagens? Outro fator pode se dar ao fato de que quando as pessoas veem neuroimagem, geralmente uma pequena parte está colorida, podendo dar uma falsa impressão que o cérebro não está sendo todo utilizado (para desmitificação completa desse mito, ver Abrahão, 2017).

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Diante disso, o objetivo desse capítulo é discutir os neuromitos, sua origem, motivo pelo qual as pessoas tendem a acreditar nessas informações incorretas, potenciais prejuízos e como combatê-los.

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Neuromitos: Qual a sua Origem? Os neuromitos podem surgir devido a afirmações duvidosas vindas de interpretações de leigos sobre imagens cerebrais ou dados de experimentos neurocientíficos (Lalancette & Campbell, 2012). Além disso, por ignorarem a interconectividade do cérebro, ou seja, que este funciona de forma conjunta, simplificam os achados científicos, gerando uma divulgação incorreta dos mesmos (Geake, 2008). Não é novidade que há um grande aumento do número de publicações envolvendo o cérebro nas mídias populares (O’Connor, Rees, & Joffe, 2012). Uma pesquisa mostrou que a mídia é a maior responsável por espalhar informações sobre o cérebro para os professores e estudantes, inclusive informações erradas (Tardif, Doudin, & Meylan, 2015). Não é a intenção da mesma, mas para se fazer entendida, muitas vezes ela generaliza e publica informações parciais sobre as descobertas neurocientíficas, produzindo interpretações equivocadas (neuromitos) sobre o funcionamento do cérebro que se espraiaram (Pasquinelli, 2012). Outro ponto é que a mídia tende a ser sensacionalista, a oferecer informações relevantes (mesmo quando não são) e a omitir informações relevantes (Pasquinelli, 2012; Racine, Waldman, Rosenberg, & Illes, 2010). Contudo, não se pode julgar que a mídia é somente ruim, visto que a mesma tem efeito positivo para informar a população em geral, via jornalismo científico de qualidade (Ekuni & Pompeia, 2016; Watts, 2014).

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Ressalta-se que a mídia não é a única responsável pela criação e propagação de mitos. A ciência está em constante mudança, e muitas vezes, uma teoria científica que é aceita em um determinado momento, frente a novas evidências, passa a não ser mais aceita (OECD, 2007). É preciso acompanhar essas mudanças para não manter informações ultrapassadas como corretas. Por exemplo, antigamente acreditava-se que no cérebro adulto não havia neurogênese (produção de novos neurônios), mas hoje sabe-se que há (OECD, 2007). Além disso, uma pesquisa com professores do Canadá apontou que as maiores fontes de aquisição dos neuromitos investigados por ela (a saber: estilos de aprendizagem, inteligências múltiplas, dominância hemisférica, exercícios coordenados, e uso de 10%

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do cérebro) foram em cursos de treinamento para professores e vieses cognitivos (por exemplo, pela informação parecer lógica ou pela própria experiência do professor em ensinar) (Sarrasin, Riopel, & Masson, 2019). Nesse sentido, é necessário voltar a atenção para os cursos de formação de docentes para evitar a propagação de neuromitos.

Por Que as Pessoas Acreditam nos Neuromitos? Há uma tendência da mídia publicar assuntos que estão em voga (O’Connor etal., 2012). Entretanto, os estudos que mostram que ainda precisam de maiores evidências para fazer recomendações práticas, não viram manchetes de notícia (Ekuni & Pompeia, 2016), o que acaba influenciando o julgamento das pessoas devido ao fato delas terem mais acesso aquelas informações. De acordo com a Psicologia Cognitiva, pelo viés de disponibilidade, algo vem à mente com mais facilidade devido a familiaridade (Tversky & Kahneman, 1973), assim, as pessoas tendem a lembrar mais das informações familiares e repetidas, o que influencia seu julgamento.

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Há uma tendência em julgar uma informação como verdadeira quando a mesma é vista pela segunda vez, fenômeno conhecido como efeito da verdade (the truth effect) (Dechêne, Stahl, Hansen, & Wänke, 2010). Assim, como os autores pontuam, uma informação ambígua, ou seja, que a pessoa tem dúvida se é fato ou não, tem mais chances de se tornar percebida como verdadeira se ela for repetida. E isso também acontece com os neuromitos, já que os mesmos estão espalhados em vários locais (na mídia, internet e até em cursos voltado para professores) (Goswami, 2006). Com isso, o indivíduo acaba ouvindo repetidas vezes a mesma informação e por ela se tornar familiar, ela pode pensar: “hum, já ouvi isso em algum lugar, deve ser verdade!”. Outro fator que pode explicar a crença das pessoas em neuromitos pode se dar diante do termo conhecido como “pósverdade” (post-truth) definido pelo dicionário Oxford como um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que

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apelos à emoção e a crenças pessoais”2. Há indicação que as crenças, por exemplo, as religiosas poderiam influenciar para maior crença em neuromitos (Hermida etal., 2016). Assim, há uma tendência de interpretar os resultados das pesquisas de maneira que confirmem a crença anterior da pessoa, um fenômeno conhecido como viés de confirmação (Nickerson, 1998). Isso faz com que a crença em alguns mitos se mantenham com mais vigor, por exemplo, quando buscam informações online, as pessoas tendem a ignorar informações conflitantes com as crenças delas (Del Vicario etal., 2016). Isso é relevante pois aumenta ainda mais as crenças em neuromitos, visto que as pessoas costumam a acreditar neles de forma agrupada (van Dijk & Lane, 2018). Ou seja, se uma pessoa acredita que ouvir Mozart deixará seus filhos mais inteligentes, buscará outras informações sobre como melhorar a inteligência, podendo encontrar outros neuromitos e tomá-los todos como verdade. Além desses vieses cognitivos, outro ponto que pode explicar o motivo pelo qual as pessoas acreditam em neuromitos se deve ao fato de que as explicações que envolvem Neurociência tendem a ser mais credíveis para as pessoas que a leem para explicar fenômenos psicológicos, mesmo que a explicação seja irrelevante (Weisberg, Keil, Goodstein, Rawson, & Gray, 2008). Isso pode ser elucidado pelo “efeito do fascínio sedutor” (seductive allure effect ) no qual pessoas leigas preferem explicações que envolvam Neurociência para fenômenos psicológicos (Weisberg et al., 2018). Isso pode ser explicado pelo fato das pessoas poderem ter a percepção de que a Neurociência está mais conectada com diversas áreas do conhecimento (Weisberg etal., 2018). Em suma, parafraseando “raio gourmetizador”, meme que ficou conhecido na área da alimentação que transforma comidas simples em verdadeiros objetos de desejos com elevado valor financeiro, temos o “raio neurotizador”. Basta colocar o prefixo NEURO em qualquer informação para ela virar uma “NeuroInformação”, mais atrativa, com uma “pegada” de neurociências e consequentemente com mais pessoas se interessando pelo assunto (Ekuni, Zeggio, & Bueno, 2017).

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2. https://en.oxforddictionaries.com/word-of-the-year/word-of-the-year-2016.

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Em consequência disso, produtos que remetem ao cérebro, tendem a ser mais avaliados como mais científicas, interessantes e efetivas do que o mesmo produto sem remeter ao cérebro (Lindell & Kidd, 2013). Essa avaliação foi realizada por estudantes de áreas diferentes do conhecimento, por pais e por estudantes de Psicologia, sendo que os alunos de Psicologia julgaram melhor, comparado com os pais e alunos de outros cursos. Isso mostra o efeito sedutor do cérebro, mas também que uma formação adequada pode ter um efeito protetor em relação à crença nos neuromitos (Lindell & Kidd, 2013). Contudo, achados com professores da Coréia do Sul concluem que saber Psicologia aumenta o conhecimento geral sobre o cérebro, mas não diminui a crença em neuromitos (Im, Cho, Dubinsky, & Varma, 2018). Ou seja, há indicação de que não basta apenas aumentar o conhecimento geral sobre Neurociência, é preciso também desmitificar os neuromitos.

Por Que os Neuromitos são Prejudiciais? >

Acreditar em informações erradas sobre o cérebro pode ser prejudicial? No caso dos neuromitos, potencialmente sim (Dekker, Lee, Howard-Jones, & Jolles, 2012). Um dos motivos se deve ao fato de que as pessoas que adotam práticas baseadas neles, investem seu tempo e dinheiro em práticas fadadas ao fracasso ao invés de, por exemplo, focarem em práticas que podem realmente melhorar a aprendizagem (Busso & Pollack, 2015; Macdonald etal., 2017; Pasquinelli, 2012). Um exemplo ocorreu na Irlanda do Norte, onde houve uma tentativa de implementação de uma reforma do currículo educacional supostamente baseada na Neurociência, mas que continha muitos equívocos (neuromitos) (Purdy & Morrison, 2009). Por exemplo, o neuromito de que as pessoas são naturalmente propensas a aprender melhor se as instruções dadas pelos professores forem congruentes com seu estilo de aprendizagem (visuais, auditivas ou sinestésicas– VAK) (Purdy, 2008). Assim, pessoas que são visuais aprenderiam melhor se as instruções fossem dadas por estímulos visuais, vendo gráficos, imagens etc, pessoas auditivas por informações auditivas e pessoas cinestésicas (kinaesthetic) por movimentos, por fazer na prática. Entretanto, não há evidências científicas que comprovem

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esse efeito de congruência entre instrução e estilo de aprendizagem, visto que há poucas pesquisas que usam método científico adequado para estudar esse fenômeno e os que usam, não possuem efeito de congruência (Pashler, McDaniel, Rohrer, & Bjork, 2009; Rohrer & Pashler, 2012). Essa reforma curricular realizada na Irlanda do Norte foi amplamente criticada por não ser baseada em Neurociência, como a mesma afirmava ser, o que levou o Conselho Educacional retirar das propostas posteriores que a reforma curricular era baseada em Neurociências (Purdy, 2008). No entanto, o Conselho que propôs a reforma manteve seu apoio em cartilhas destinadas a professores com tópicos como estilos de aprendizagem, conectar o cérebro direito e esquerdo e Brain Gym® para melhorar a aprendizagem (Purdy, 2008). Infelizmente, todos esses neuromitos são amplamente difundidos na campo educacional (e.g. Dekker etal., 2012). Brevemente, em relação a crença de que há exercícios para conectar os hemisférios cerebrais (cérebro direito e o esquerdo), não há evidencias que exercícios possam conectar ambos lados (Spaulding, Mostert, & Beam, 2010), até porque, na maioria da população há um feixe de fibras nervosas, o corpo caloso, que conecta os hemisférios cerebrais (Roland etal., 2017). Complementarmente a esse neuromito, há o equívoco de que pessoas que são racionais possuem o lado esquerdo mais dominante e pessoas criativas possuem dominância hemisférica direita. As evidências de neuroimagem com análise de mais de 1000 pessoas mostram que não há uma predominância de ativação de um hemisfério específico (Nielsen, Zielinski, Ferguson, Lainhart, & Anderson, 2013).

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Já em relação ao neuromito de que ginástica cerebral, mais especificamente o Programa Brain Gym® supostamente baseado na Neurociência, afirma que podem melhorar o aprendizado por meio de exercícios, massagens, pressões em pontos específicos do corpo. As evidências apontam que o programa é baseado em suposições teóricas inválidas, e não há pesquisas baseadas no método científico que comprove a eficácia da mesma (Spaulding etal., 2010; Zeggio & Malloy-Diniz, 2015). Em meio a esse bombardeio de informações que supostamente podem melhorar a educação, somado com uma formação

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neurocientífica muitas vezes inadequadas com a sede que os educadores tem que inovar o ensino e de conectar o cérebro com a educação (Geake, 2005; Goswami, 2006), os educadores podem se apressar em fazer a ponte entre Neurociências e Educação. Ao serem implantadas abordagens no contexto educacional baseadas em neuromitos, pode até haver uma percepção positiva dos alunos, o que pode aumentar a crença nos mitos, entretanto a estratégia não será efetiva (Howard-Jones, 2014a). Infelizmente ainda falta conhecimento científico para que os educadores possam acessar criticamente as pesquisas (Hook & Farah, 2013). Além disso, as práticas supostamente baseadas na Neurociência ameaçam os programas baseados em evidências, já que as pessoas podem não acreditar em algo que contradiz o neuromito (Pasquinelli, 2012; van Dijk & Lane, 2018).

O Que as Pessoas Sabem Sobre o Cérebro? Muito se fala sobre a ponte entre Neurociência e Educação e da importância dessa conexão para melhorar a educação (Sigman, Peña, Goldin, & Ribeiro, 2014). Entretanto, talvez a Educação seja a área que mais sofre com os neuromitos. Os educadores mais interessados em neurociências sentem urgência em colocar em prática os conhecimentos das neurociências em salas de aula, o que os torna alvos fáceis de programas baseados em neuromitos (Dekker etal., 2012). E isso se torna um ciclo vicioso, pois os educadores acabam difundindo esses conhecimentos inverídicos, alguns inclusive em cursos de treinamento para professores (Sarrasin etal., 2019).

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Diante disso, questionários têm sido administrados em vários países para verificar o que os educadores acreditam sobre o cérebro. Entretanto, devido a diferenças culturais e tamanho da amostra, esses dados não são generalizáveis para toda a população (van Dijk & Lane, 2018). Mas há um ponto em comum: as análises realizadas com educadores no Reino Unido e Holanda (Dekker etal., 2012), Portugal (Rato, Abreu, & Castro-Caldas, 2013), Turquia, Grécia e China (HowardJones, 2014b), Brasil (Bartoszeck & Bartoszeck, 2016; Silvia, Zeggio, & Ekuni, 2014), Turquia (Karakus, Howard-Jones, & Jay, 2015), Suíça (Tardif etal., 2015), América Latina (predominantemente da Argentina, Chile e Peru; alguns participantes do México, Nicarágua, Colômbia

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e Uruguai) (Gleichgerrcht, Lira Luttges, Salvarezza, & Campos, 2015), Espanha (Ferrero, Garaizar, & Vadillo, 2016), na Argentina (Hermida etal., 2016), Estados Unidos (Macdonald etal., 2017; van Dijk & Lane, 2018) e Coréia do Sul (Im etal., 2018), mostram que os educadores tendem a acreditar em vários neuromitos associados ao aprendizado. É difícil dizer quais os neuromitos que as pessoas mais acreditam pois até mesmo levantamentos realizados no mesmo país tiveram resultados diferentes. Por exemplo, em um estudo realizado nos EUA, os três neuromitos que os educadores mais acreditavam foram: que há exercícios para integrar o cérebro direito e esquerdo (89%), Brain Gym® ajuda os estudantes a lerem e usarem melhor a linguagem (80%), se os alunos aprenderam de forma congruente com seu estilo de aprendizagem predominante, aprenderá melhor (76%) (Macdonald etal., 2017). Enquanto que no estudo de van Dijk e Lane (2018), também realizado nos EUA, a prevalência maior foi que ambientes enriquecidos estimulam o desenvolvimento cerebral de crianças pré-escolares (94%), há exercícios para integrar o cérebro direito e esquerdo (78%) e a crença de que consumir comidas e bebidas com muito açúcar deixam as crianças inatentas (68%). Ou seja, como van Dijk e Lane indicam, talvez a prevalência da crença em neuromitos dependa da amostra estudada, da cultura, formação, e outros fatores.

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Como Combater os Neuromitos? Direções da Psicologia Cognitiva As evidências que contrariam neuromitos são publicadas quase que exclusivamente em periódicos especializados em Neurociência, aos quais o grande público não tem acesso (HowardJones, 2014b). Contrariamente ao estudo que mostrou que quem lia mais informações sobre o cérebro acreditavam mais em neuromitos (Dekker etal., 2012), saber mais fatos sobre Neurociência pode ser um fator preditivo de menor crença nessas informações incorretas (van Dijk & Lane, 2018). Corroborando com isso, um estudo que comparou a crença em neuromitos da população em geral, educadores e pessoas com treinamento em neurociência apontou para o fato de

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que as pessoas com treinamento em Neurociência acreditavam menos em neuromitos (46%) quando comparado com educadores (56%) e o público em geral (68%) (Macdonald etal., 2017). O mesmo estudo apontou que os preditores de apontar que uma informação era um neuromito foi: ter graduação, ler periódicos científicos revisado por pares e ter frequentado vários cursos de Neurociência. Somente ler jornalismo científico não é o suficiente para identificar um neuromito (Macdonald etal., 2017). Ou seja, a formação científica adequada pode auxiliar na melhor identificação do que é um fato ou um mito. É dever dos cientistas popularizar a ciência, ou seja, transformar as descobertas científicas em linguagem adequada para nãocientistas (Bueno, 2010). Diante disso, primeiramente é preciso fortalecer a divulgação neurocientífica. Há diversas iniciativas espalhadas no Brasil por meio de ações da extensão universitária (e.g. Carvalho, Macacare, Rocha, & Ekuni, 2020; Macacare et al., 2018; Martins & Mello-Carpes, 2014; Rocha, Macacare, Cesário, Benassi-Werke, & Ekuni, 2019; Silva, Grandi, Castro, & Ekuni, 2017; Vieira etal., 2018 para uma revisão ver Aranha, Chichierchio, & ShollFranco, 2015). Também há iniciativas globais como “Brain Awareness Week” promovido pela Dana Foundation e chancelada no Brasil pela Sociedade Brasileira de Neurociência e Comportamento (SBNeC) que incentiva instituições a organizarem eventos que visem popularizar a ciência do cérebro. No que diz respeito especificamente aos neuromitos, também há iniciativas de divulgação científica no formato de livros (e.g. Ekuni, Zeggio, & Bueno, 2015; Zeggio, Ekuni, & Bueno, 2017). Macdonald etal., (2017) apontam que as pessoas que acreditam em um neuromito, tendem a acreditar em vários de forma agrupada, assim, no momento de desmitificar, deve-se explicar sobre vários neuromitos juntos.

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Uma vez que as pessoas começam a acreditar nos neuromitos, mesmo que essas informações incorretas sejam corrigidas, ainda pode-se prevalecer a crença na informação anterior, fenômeno conhecido com o influência do efeito contínuo da desinformação (Continued Influence Effect of misinformation) (Ecker, Hogan, & Lewandowsky, 2017). Para evitar que isso aconteça, deve-se buscar tentar preencher as lacunas do conhecimento via explicações

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alternativas e sempre que possível repetir essas explicações sem reforçar o mito (Lewandowsky, Ecker, Seifert, Schwarz, & Cook, 2012). Pesquisas de memória que buscam compreender qual a melhor forma que corrigir uma informação errada, mostram que há maior probabilidade de correção da informação se a fonte que corrige é dada por uma pessoa de confiança que não necessariamente precisa ser expert no assunto (Guillory & Geraci, 2013). Apesar do estudo ser feito no campo de informações políticas, os autores extrapolam esse achado para outras aplicações práticas, como desmitificar o fato de que vacina MMR [sarampo (measles), caxumba (mumps) e rubéola (rubella )] não causa autismo. Diante disso, podemos pensar na importância da divulgação científica; se mais pessoas forem alcançadas pela divulgação científica de qualidade, há maior probabilidade de elas poderem corrigir informações erradas para outras pessoas. Se a pessoa for de confiança, possibilidade de corrigir possíveis equívocos é ainda maior. Alguns estudos mostram que para evitar o efeito da repetição não se deve reapresentar o mito antes de desmitificá-lo, porque ao repeti-lo pode torná-lo mais forte (Dechêne et al., 2010). Por exemplo, um estudo em que se apresentava mitos e fatos sobre vacina teve como consequência o efeito de contra-ataque (backfire effect), ou seja, fortaleceu a crença no mito da vacinação (Pluviano, Watt, Ragazzini, & Della Sala, 2019). Contudo, outro experimento realizado dando uma informação incorreta para o participante e depois apontando que a mesma era incorreta, mostrou que a correção da informação foi melhor do que quando não havia essa repetição da informação incorreta (Ecker etal., 2017). Ou seja, ainda há controvérsias na literatura sobre a melhor forma de corrigir uma informação incorreta.

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Uma vez que é comum no meio jornalístico e na divulgação científica apresentar mitos e fatos na tentativa de desmitificar uma informação incorreta, pode-se usar uma estratégia cognitiva de solicitar que o leitor faça um julgamento da informação enquanto lê, o que pode evitar o efeito do contra-ataque quando comparado a solicitar um julgamento baseado na memória tempo depois de lido (Peter & Koch, 2015). Essa diferença temporal de julgamento pode ser crucial para corrigir uma informação incorreta, já que os autores pontuam que há uma tendência de esquecer os argumentos lidos

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que explicam porque a informação é falsa. Outra forma de evitar o efeito do contra-ataque é enfatizar o fato com poucos argumentos, repeti-lo e quando for falar do mito, avisar explicitamente o leitor que falará uma informação incorreta (Lewandowsky etal., 2012). Recomenda-se também evitar que a manchete seja sobre o mito em si, por exemplo “Usamos só 10% do cérebro” e só no texto dizer algo como “cientistas comprovam que essa informação é falsa pois...”. O motivo pelo qual deve-se evitar destacar o mito se deve ao efeito da distintividade, ou seja, eventos que se sobressaem, que são destacados, são mais distintivos, assim essas informações tendem a ser mais lembradas do que as que não se sobressaem (Tulving & Rosenbaum, 2012). Depois da mídia, a segunda fonte pelo qual os educadores dizem que aprendem informações sobre o cérebro sendo que algumas dessas são equivocadas, vem de curso de formação de professores (Tardif etal., 2015). Uma pesquisa no Canadá apontou essa fonte como uma das fontes principais de informações incorretas (Sarrasin et al., 2019). Isso é preocupante e chama a atenção da formação de qualidade para prevenção da crença em neuromitos (Ekuni & Pompeia, 2016). Como exposto anteriormente, uma formação científica adequada pode fazer com que as pessoas se protejam do efeito sedutor da Neurociência (Lindell & Kidd, 2013). Assim, outras frentes de combate estariam na melhoria da formação científica dos educadores, bem como na ampliação do diálogo entre cientistas e professores (Ansari etal., 2011). Também sugere-se a necessidade de uma rede de comunicadores de pesquisa neurocientífica para ampliar a ponte entre Neurociências e Educação, e a oferta de conteúdo acessível e de alta qualidade para a sociedade (Goswami, 2006). No Brasil, a Rede Ciência para Educação (Rede CpE)3 é uma das redes que visam atingir essa meta.

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Considerações Finais Neuromitos são informações duvidosas, equivocadas que envolvem a ciência do cérebro. Há uma alta crença nessas 3. http://cienciaparaeducacao.org/

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informações, principalmente no campo educacional, o que pode levar os educadores a adotarem estratégias potencialmente fadadas ao fracasso. Uma das explicações plausíveis pelo qual os neuromitos são espalhados e perpetuados, se deve à neurofilia e às notícias que a mídia lança com explicações super simplificadas sobre as pesquisas das Neurociências (Pasquinelli, 2012). Como falta formação (neuro)científica adequada, há pouco senso crítico para julgar essas se essas informações são equivocadas ou não. Somado a isso, há fenômenos que influenciam o julgamento e há variáveis que interferem na correção da informação incorreta. Por exemplo, o efeito da repetição faz com que informações incorretas reapresentadas várias vezes tendem a ser julgadas como corretas pela familiaridade, a pós-verdade no qual as crenças individuais são mais fortes do que os fatos e argumentos que contrapõem essa crença. Além disso, há vários vieses cognitivos que podem fazer com que a crença nessas informações incorretas perpetue como o viés de confirmação, ignorando fatos conflitantes com a crença e focando atenção em fatos que possam confirmar a crença. Outra forma de combater os neuromitos, pode se dar por meio de ações de divulgação científica de qualidade, já que, por meio dela, pode-se aumentar o conhecimento neurocientífico da população. Há diversas ações voltadas para isso espalhadas no mundo e no Brasil. Entretanto, para desmitificar as informações incorretas, deve-se fazêlo baseadas em evidências científicas, levando em consideração os processos dos estudos de memória para corrigir uma informação incorreta, tais como tomar cuidado com o efeito do contra-ataque. Além disso, deve-se ampliar o diálogo entre Neurociência e Educação bem como melhorar a formação científica dos educadores.

Neuromitos no Alvo: Desmitificando o Cérebro

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A Hipótese da Conveniência Funcional: Um Estudo sobre as Qualidades da Matéria e a Auto-Organização dos Sistemas

4 Jayme Marrone Júnior*

Introdução Nos últimos anos a abordagem neurocientífica se tornou uma referência em pesquisas que buscam entender o ser humano em níveis que vão do fisiológico ao social. O caminho para se conseguir uma explicação razoável acerca do funcionamento e da capacidade do cérebro, bem como sua influência em nosso comportamento exige uma composição de conteúdos que transcendem a especificidade de cada área do saber e mobilizam uma gama de cientistas que trabalham e pesquisam de forma multirreferencial. Diante deste cenário acreditamos que a Física possa contribuir com algumas discussões principalmente com os conceitos da física moderna, mais especificamente da mecânica quântica. No entanto, se alguém diz compreender a mecânica quântica é porque verdadeiramente não a conhece (Feynman, 1985). Não obstante, entendendo nossa limitação e ainda assim com intenção de favorecer a discussão, configuramos uma hipótese que talvez possa acomodar algumas questões, dentre elas aquela que mais nos incomoda que é a percepção da realidade.

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Autor para correspondência: jaymemarrone@ hotmail.com

Os elementos fisiológicos que captam a realidade e formam nossos sentidos (visão, audição, tato, olfato, paladar) são manipulados e interpretados por uma extensa e complexa rede neural. O caminho desta percepção inicia quando o estimulo é detectado por um neurônio sensitivo que converte (luz, som, cheiro, toque) em potenciais de ação que desencadeiam um sinal de origem eletroquímica. O sinal

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é conduzido a uma área de processamento primário de acordo com a natureza do estímulo que por sua vez elabora as características iniciais da informação tal como forma, textura, cor, etc. A partir daí a informação elaborada por comparação é transmitida aos centros de processamento secundário da região talâmica onde se incorpora à outras informações de origem límbica relacionadas com experiências passadas (memórias). Por fim chega ao seu centro cortical específico (visual, olfativo, etc.) já deveras alterado. Segundo Maturana, & Varela, (1995) é possível observar, que mesmo neste breve e simplificado resumo do caminho percorrido pelo estímulo, a enorme quantidade de variáveis que podem afetar a percepção da realidade e ainda, a dependência que a mesma possui de uma lembrança análoga para que a informação possa ser classificada e compreendida cognitivamente. Desta maneira é razoável afirmar que cores, sabores, cheiros, texturas existem apenas em nossa mente de acordo com os modelos que construímos de nossas experiências do mundo. Mesmo sensações de objetos inexistentes podem ser experimentados dependendo da área cortical estimulada (Blanke, 2004). Uma experiência realizada com uma jovem epilética de 22 anos, pela equipe de Olaf Blanke da Escola Politécnica Federal de Lausanne na Suíça, mostrou que ao aplicar estimulação elétrica localizada perto da região de origem dos ataques epilépticos (junção temporoparietal esquerda), a paciente revelou sentir que alguém estava postado exatamente atrás dela.

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Experiências deste tipo revelam que as percepções por vezes diferem qualitativamente do estímulo físico, pois o cérebro é sensibilizado pelos dados e os interpreta baseado em experiências anteriores que servem de suporte cognitivo para acomodá-los e consequentemente atribuir algum significado em sua associação. A informação que não se adequa ao modelo construído ou que não pode ser apropriada com o arcabouço de memórias prévias, é interpretada como uma perturbação que pode levar à sua dispensa e consequente não percepção ou sua incorporação por meio de uma remodelação das estruturas sinápticas reorganizando os circuitos neurais de acordo com a conveniência na necessidade de sua percepção, essa é nossa premissa.

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Compreender a relação entre percepção e realidade foi a inspiração para nossa pesquisa que tem, a priori, a pretensão de investigar as causas que permeiam essa relação articulando as propriedades físicas da matéria com a dinâmica das redes neurais. É com o intuito de promover essa discussão que descreveremos brevemente os temas que pautaram o desenvolvimento destes estudos iniciais chamado a priori de Hipótese da Conveniência Funcional (HCF), cujo objetivo é acrescentar elementos que permitam uma descrição da realidade vinculada à materialidade dos objetos físicos. A percepção desta materialidade é uma experiência da consciência e racionalmente explicada em termos de partículas subatômicas tais como prótons, nêutrons e elétrons. Tais partículas são definidas a partir de propriedades físicas como massa e carga elétrica, que diante do paradigma atual são consideradas inerentes à matéria ou segundo (Moreira, 2009) ditas propriedades fundamentais da matéria. Quando usamos o termo inerente sugerimos uma existência tácita independente de qualquer outro elemento e isso parece não se adequar aos princípios da mecânica quântica no que tange à relação entre observador e observado. O problema é que de forma macroscópica, toda realidade construída pode parecer independente de quem observa, o que leva o senso comum a concluir que um prédio existe independente de qualquer mente consciente que o observe.

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Esse é um ponto a ser discutido já que entendemos a materialidade como consequência da conveniência funcional de uma rede ou sistema. O vínculo entre observador e observado é funcional a ambos, pois permite a manifestação da materialidade dos dois e de todo o sistema. Os conceitos de materialidade e realidade tem na Física um campo frutífero de discussão diante da proposta das interações fundamentais1, cuja evolução parece que caminha a uma unificação 1 Há quatro tipos de interações fundamentais: eletromagnética, gravitacional, forte e fraca. A interação entre um elétron e um núcleo atômico (eletromagnética); a atração entre quarks é do tipo interação forte; o decaimento β exemplifica a interação fraca; a interação gravitacional atua entre todas as partículas massivas, e é a que governa o movimento dos corpos celestes.

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destas interações, o que explicaria o Universo sob uma perspectiva muito mais simples. No entanto, na busca por um bloco fundamental de matéria percebemos que quanto mais tentamos isolá-los, mais elementos aparecem, por exemplo, ao olhamos para uma molécula e percebemos átomos, olhando para o átomo percebemos elétrons e núcleo, olhando para o núcleo percebemos prótons e nêutrons, olhando para estes percebemos os quarks e assim parece ser infinita a busca. Cada vez que aprimorarmos nossas lentes sobre o mundo encontraremos mais elementos, não por que eles existem por si só, mas porque convenientemente atribuímos a eles uma função, um significado, justificando nossa percepção dos mesmos. É essa a ideia inicial para nossa proposição. Se conseguimos interagir com as coisas e adjetivá-las como realidade é porque para nós sua existência é conveniente. A manifestação dessa realidade ocorre na conveniência do observador onde ele próprio é resultado desta conveniência em relação a um sistema mais complexo e assim indefinidamente. >

Associamos essa conveniência ao termo funcional pois percebemos a realidade naquilo que para nós é conveniente, aquilo que para nós tem alguma função de existir. Se isso não ocorrer, não percebemos, não é real. Esta concepção de realidade pautada em uma relação entre observador/observado é verificada também a partir da hipótese de Copenhagen2 que atribui ao ato de observar uma ação que provoca ocolapso da função de onda. Significa que, embora antes da medição o estado do sistema permita muitas possibilidades, o processo de medição elege apenas uma delas aleatoriamente e a função de onda modifica-se para o resultado dessa escolha. A contribuição da HCF é que consideramos que não há aleatoriedade no colapso da função de onda e sim uma funcionalidade pressuposta devido ao contexto em que a partícula

2 Desenvolvida por Niels Bohr e Werner Heisenberg que trabalhavam juntos em Copenhague em 1927. Considera sem sentido perguntas como “onde estava a partícula antes de a sua posição ter sido medida? Ela defende que em Mecânica Quântica, os resultados são indeterminísticos e que o ato de observar provoca o “colapso da função de onda.

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se encontra. As relações necessárias à subsistência do sistema são que determinam qual ou quais qualidades da partícula serão mais adequadas à manifestação. Acreditamos que os sistemas tendem a se auto organizarem para que sejam funcionais e a explicação para isso é a conveniência de sua própria existência. A ideia da reorganização dos circuitos neurais para construir nossa percepção da realidade encontra na HCF, um respaldo que reforça sua pertinência uma vez que o rearranjo sináptico é consequência da necessidade de aprimorar ou substituir funções neurais, fenômeno que remete à plasticidade cerebral, base da memória e da aprendizagem. Ao considerarmos realidade como um aspecto da materialidade das coisas e essa por sua vez a consequência da manifestação das propriedades fundamentais das partículas, então compreender tais propriedades é o caminho escolhido por nós para investigar essa relação.

Referenciais Teóricos

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Em nossa revisão bibliográfica encontramos várias definições e classificações do conceito massa. Os mais comuns estão associados ainda às concepções de Isaac Newton em sua obra Princípios Matemáticos da Filosofia Natural de acordo com Castellani, (2001) que incorpora a dificuldade de modificar o estado de repouso ou movimento de um objeto com sua massa, a chamada Inércia dos corpos. Temos ainda uma associação com um gradiente de energia, mas mesmo na Teoria da Relatividade Geral podemos não encontrar uma definição satisfatória para massa. Quando procuramos uma definição de carga elétrica encontramos os mesmos obstáculos, ou seja, a comunidade cientifica parece direcionar a compreensão de carga elétrica a uma propriedade fundamental da partícula, ou uma qualidade da partícula, observada experimentalmente pelos desvios em suas trajetórias quando em movimento no interior de um campo magnético. Segundo Young e Freedman, (2004), não é possível especificar exatamente o que é a carga elétrica, mas é possível descrever seu comportamento e suas propriedades. Os autores afirmam ainda, que

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a carga elétrica é uma das principais propriedades das partículas que constituem a matéria, tal como a massa. Sobre isto, (Nussenzveig, 2001) afirma que a carga elétrica é uma propriedade intrínseca de partículas que constituem a matéria. O mundo físico, como conhecemos, está baseado nessas duas propriedades ditas fundamentais e atribuímos a noção de realidade à manifestação delas, ou seja, é real aquilo que é sensível aos nossos sentidos e que de alguma maneira interage conosco (introspecção). Sobre a realidade do mundo passamos por vários pensadores, de Aristóteles até Heisenberg, no entanto o físico teórico italiano Carlo Rovelli consegue chegar bem próximo de nossa expectativa acerca do mundo como construção mental. Em seu livro, A realidade não é o que parece, (Rovelli, 2017), ele discute alguns desdobramentos da mecânica quântica no sentido de que a mesma não descreve os objetos como são, mas como acontecem e como influenciam uns nos outros. O mundo real é o mundo das interações possíveis, onde a realidade é reduzida a relação. Segundo o autor “não são as coisas que podem entrar em relação, mas são as relações que dão origem à noção de coisa.” (Rovelli, 2017, p.113).

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A mecânica quântica, ainda segundo Rovelli, amplia essa relatividade dizendo que todas as características (para nós qualidades) de um objeto só existem em relação a outros objetos. Em nosso trabalho esta relação é a questão da funcionalidade entre os integrantes do sistema. A Teoria Quântica coloca algumas questões fundamentais diante do paradigma mecanicista de Newton, dentre elas duas nos chamam atenção: O fato de que o ato de observar influencia o fenômeno e a outra, chamada de princípio da incerteza de Heisenberg diz que jamais saberemos com exatidão a posição e o movimento de partículas. Heisenberg deixa claro que o determinismo da natureza é uma ilusão. A natureza não nos fornece certezas, mas probabilidades e assim sendo o mundo é apenas uma aproximação da realidade. Foi Albert Einstein quem inicialmente questionou o caráter inerentemente incerto da natureza em sua crítica ao indeterminismo da Teoria Quântica. Segundo , a explicação para não encontramos o bloco fundamental da matéria não é porque a natureza é probabilística,

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mas porque não criamos ainda um instrumento adequado para medi-la (Einstein, 1936). Neste aspecto a HCF confirma o que Einstein diz já que se conseguimos medir algo é porque atribuímos a ele uma função e desta forma as propriedades físicas da matéria necessárias à percepção são manifestas, não porque já existem mas porque é conveniente ao sistema que sejam medidas ou percebidas, o que chamamos de realidade. Essa conveniência é um aspecto sutil, não atribuída especificamente a um observador, mas ao sistema ao qual esteja associado. No que se refere à construção da realidade pelo indivíduo consciente escolhemos a Teoria dos Construtos Pessoais do Físico, Matemático e Psicólogo americano George Kelly já citado anteriormente. Embora Kelly sustente um universo alheio ao observador, a maneira como o ser se relaciona e constrói seu próprio universo a partir da sua conveniência é ponto chave do nosso trabalho. A conveniência está associada à necessidade de previsão e por consequência de controle, cujo intuito é a própria manutenção da existência. O indivíduo participante do sistema e consciente dele, constrói sua própria interpretação do mundo a partir de suas experiências e as modula de acordo com sua conveniência na tentativa de preservar essa construção e com isso consegue atribuir a si mesmo uma função.

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Na questão da consciência buscamos em David Chalmers3 que coloca a informação como uma propriedade tão essencial da realidade quanto a matéria e a energia sendo a experiência consciente uma característica fundamental, irredutível a qualquer coisa básica (Chalmers, 1995). Em (Damásio, 2000) a consciência está associada à capacidade de percepção de si e do ambiente explicando assim que a materialidade de quem observa é por ele manifesta de acordo com o padrão neural que possui de si mesmo. Em outras palavras, criamos a realidade e somos por ela criados compondo um sistema que se auto alimenta diante da materialização do que venha a ser real.

3 Professor de Filosofia, Diretor do Centro de Consciência, na Universidade Nacional da Austrália.

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Desta forma podemos apenas descrever o estado do sistema em um dado ponto da linha temporal de seu desenvolvimento, ressaltando é claro o estado presente, mas podendo sim transitar entre as memórias do passado e as projeções das previsões futuras, seguindo a linha dos construtos pessoais (Kelly, 1963). Não podemos deixar de citar o físico indiano Amit Goswani4 que em seu livro “O Universo Autoconsciente” afirma que é a consciência que cria a matéria, e não o oposto (Goswami, 1998). Para ele, a consciência pode ser definida como: o agente que afeta objetos quânticos para lhes tornar o comportamento apreensível pelos sentidos, o que dá origem ao que denominamos realidade. Para exemplificarmos, um elétron é considerado um objeto quântico pois seu comportamento por vezes é descrito como partícula e por outras como onda. Para a Física Moderna não é possível afirmar que um objeto quântico se manifeste no espaço-tempo até que o observemos como uma partícula, e é neste ponto que Goswani (1998) afirma ser a consciência o fator responsável por produzir o colapso da função de onda, ou em outras palavras, é a consciência que provoca a materialização do observador e do objeto simultaneamente entrelaçados. A Hipótese da Conveniência Funcional complementa a afirmação de Goswani ao supor que o fenômeno da consciência surge da necessidade de quem a tenha de atribuir a si e/ou ao meio uma função que contribui com a existência/manutenção da rede que os contém.

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Para discutir a questão formação dos sistemas, não apenas do ponto de vista geométrico em sua estrutura física, mas também sob a perspectiva das organizações buscamos em (Debrun, 1996) os conceitos de Organização e Auto-organização (AO). Para o autor, uma organização, ou “forma” é auto-organizada quando se produz a si própria. Debrun distingue dois tipos de Auto-organização: a) Primária: ocorre quando um novo sistema se forma a partir do encontro de elementos que pertenciam a outros sistemas. Ex.: origem da vida;

4 Ph.D. em física quântica, autor de inúmeros artigos científicos, além de pro­fessor titular de física no Instituto de Física Teórica da Universidade do Oregon.

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b) Secundária: ocorre em um sistema já constituído, quando um novo padrão de organização se forma, a partir das interações entre seus componentes e com o ambiente. Ex.: jogo de basquete.

Dado que toda organização tem como base elementos discretos, convém apreciar que a forma auto-organizada não se produz no vazio, mas a partir de tais elementos. Consideramos as influências do meio externo como um dos fatores que desencadeiam o rearranjo sistêmico, mas este só ocorre mediante as relações entre os integrantes. Em nossa concepção de auto-organização não há nenhum tipo de controle imposto pelo meio na configuração do sistema, cujo único intuito é a subsistência do todo. O próprio sistema reconhece o meio e consequentemente cria a demanda de reestruturação. Isto ocorre porque é na necessidade de refletir sobre as relações novas e antigas entre os integrantes do sistema que é pautada a existência do mesmo. Se aplicarmos a hipótese em nosso cotidiano, podemos dizer que os problemas que surgem no dia a dia servem apenas para atribuir a nós mesmos a funcionalidade de sua resolução, ou seja, criamos os problemas para que convenientemente o sistema nos confira uma função e desta forma possamos pertencer a ele.

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O fenômeno da auto-organização também é discutido por (Prigogine & Glansdorff, 1971) 5 a partir da segunda lei da termodinâmica e mostra que ele gera estruturas dissipativas criadas e mantidas através de trocas de energia com o meio externo, em condições de não-equilíbrio. Estas estruturas dissipativas são dependentes de uma nova ordem, denominada pelos autores de ordem por flutuações. Nestes processos auto-organizadores a estrutura é mantida por meio de dissipações energéticas, na qual a energia se desloca gerando simultaneamente a estrutura, através de um processo contínuo. Se as flutuações são pequenas, o sistema as acomoda, não modificando a sua estrutura organizacional, mas se as flutuações atingem um tamanho crítico, desencadeiam um desequilíbrio no sistema, ocasionando novas interações e

5 Ilya Prigogine, químico russo naturalizado belga. Recebeu o Nobel de Química de 1977, pelos seus estudos em termodinâmica de processos irreversíveis com a formulação da teoria das estruturas dissipativas.

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reorganizações intra-sistêmicas. Os antigos modelos interagem entre eles de novas maneiras, e estabelecem novas conexões. As partes se reorganizam em um novo todo e o sistema alcança uma ordem mais elevada. Note que os autores envolvem o ambiente a partir da necessi­ dade de troca energética com os constituintes do sistema e não como elemento influenciador do processo de auto-organização. Para o nosso estudo, essa nova ordem sistêmica é que determina a materialidade funcional, e consequentemente, qual ou quais propriedades da partícula deverão se manifestar de acordo com sua conveniência.

Desenvolvimento A Proposta Se a materialidade das coisas é atribuída pelo emaranhado composto pelo observador, observado e ambiente e que a necessidade de funcionalidade determina a manifestação das propriedades fundamentais, propomos que a realidade seja uma consequência da conveniência funcional deste sistema onde as relações é que são determinísticas e não os objetos. O próprio sistema cria e é criado a todo instante diante de uma única proposição, associar-se para existir.

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Essa conveniência é ratificada, por exemplo, quando acreditamos na continuidade dos objetos que percebemos em nosso redor. Na verdade, as imagens formadas em nossa retina persistem no local em torno de 0,1s até que se possa receber outro estimulo visual, ou seja, aquilo que acreditamos ser continuo, na verdade é fragmentado. Se tivéssemos que lidar com a consciência dessa fragmentação isso levaria todo o sistema a um colapso de energia (Kist & Garattoni, 2012). Para evitar isso, é conveniente ao organismo que o cérebro atue na complementação das lacunas visuais na formação de imagens com uma memória experiencial similar da situação. É necessária uma modulação das estruturas que compõem a percepção da realidade para que o sistema continue funcional e que o Todo se torne mais importante que as partes.

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Sob a mesma lente, na tentativa de compreender o Universo como um sistema funcional criamos as interações fundamentais para que separadamente pudéssemos dar conta de uma descrição apropriada a cada contexto observado, ou seja, criamos a ideia de que estas interações existem por serem inerentes à natureza pois esquecemos que elas surgem quando tentamos delimitar um fenômeno. A tentativa de isolarmos determinado evento, para simplificar sua compreensão, tem como consequência o aparecimento de qualidades decorrentes da separação. Precisamos entender que a atitude de delimitação é possível, mas sempre tendo em mente que algumas variáveis surgem não por serem intrínsecas ao objeto de estudo, mas resultado desta delimitação. É como se imaginássemos uma rede sendo rompida e as pontas soltas são análogas as variáveis que surgem mas que ao retomar suas conexões desaparecem, reorganizando a formação do Todo, ou seja, de uma rede íntegra novamente. Não há motivo para descrevermos o Universo em versões de massa, carga, cor ou sabor. Estas qualidades são suprimidas quando equacionarmos a associação, o que significa que não precisamos entender o que é massa para descrever a ação gravitacional, mas compreender qual a função da massa dentro do contexto, nem do caráter carga elétrica, mas da função carga e assim sucessivamente.

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De acordo com a HCF a realidade do Universo é consequência de sua funcionalidade, e a incerteza, bem como as propriedades fundamentais da matéria, são recursos necessários para convenientemente expandir os limites de suas funções. A expansão do Universo é a ampliação de seus atributos funcionais, justamente porque tentamos medi-lo, e ao fazê-lo oferecemos a ele mais uma função. Isso também se aplica a existência dos quarks e outras subpartículas. A natureza pode ser descrita por sua conveniente função sendo as propriedades fundamentais da matéria apenas traços elegantes decorrentes da criação de subsistemas (rupturas do todo) e cuja percepção, se não considerarmos o contexto, revela apenas versões aproximadas de sua existência. A partir disso a busca por uma

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unificação se torna inócua, ao invés disso temos outro desafio que é descobrir o referencial ao qual tal manifestação é funcional. As coisas são o que são e estão onde estão porque para alguém ou algo aquela situação é convenientemente funcional que assim sejam e estejam. Assim podemos apenas refletir e compreender que podem ser e podem estar e que não há essência em ser e estar. Para ajudar na compreensão dessa proposta reunimos algumas informações já aceitas pelo paradigma científico atual, direta ou por consequência, sob forma de postulados. I A existência/realidade é função direta da observação; Efeito Zeno Quântico (Patil, Chakram, & Vengalattore, 2015); II A observação nunca é isenta de motivação; A utilidade e a função. (Araujo, 2006); III A Forma é uma qualidade de partículas que agrega funcionalidade, tal qual a massa e carga elétrica.

Assim a propriedade massa ocorre quando a função de ser matéria (interações gravitacionais e inerciais) é mais conveniente. Por exemplo, uma pessoa que deseja sentar busca ao seu redor uma cadeira. Se no ambiente houver alguma probabilidade de partículas formarem um sistema que tem por função ser uma cadeira, a qualidade massa daquelas partículas que constituem o sistema, se manifesta no campo de probabilidade local.

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A carga elétrica também se manifesta quando as interações eletromagnéticas são mais convenientes, como exemplo, a repulsão elétrica entre as eletrosferas dos átomos da cadeira e da pessoa, já que a repulsão eletromagnética é cerca de 1040 vezes mais intensa que a atração gravitacional evita-se desta forma que a pessoa atravesse a cadeira possibilitando exercer a função de acondicionar alguém sentado. Propomos que tal qual a massa e a carga elétrica, o arranjo das partículas mediante sua função dentro do contexto é uma propriedade fundamental da matéria e como tal deve ser considerada como variável sistêmica que tem como premissa representar a relação

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entre observador e observado em sua disposição espaço-temporal6, ou melhor dizendo, em sua predisposição espaço-temporal. De certa forma, enquanto não for funcional para o sistema/ rede tudo é uma questão de potencial (probabilidade) e a partir daí a concepção de onda de probabilidade faz sentido, pois elimina a necessidade de atribuirmos inerência às coisas. Incorporamos assim o fato de que se de alguma forma um elemento for útil (funcional) as propriedades da matéria se manifestam se não, fica na forma de potencial criando a partir do observador consciente um campo de possibilidades. No que diz respeito a este observador, ele só é parte integrante de um sistema se sua função integrativa contribuir para a subsistência do todo. É essa função integrativa, ou seja, a dependência entre os constituintes da rede que de forma hierárquica elege uma entre tantas possibilidades descritas na função de onda explicando desta forma porque indivíduos diferentes manifestam a mesma realidade. Caso um deles manifeste algo diferente, este evento não contribui para a formação do grupo. Aquele que não comunga da mesma manifestação se exclui.

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A maior probabilidade no colapso da função de onda não é uma característica intrínseca ao ambiente ou especificamente do observador, mas uma necessidade do conjunto que os envolve, ao qual denominamos rede ou sistema. Participar de um grupo ou arranjo parece ser mais vantajoso, em termos de subsistência, do que permanecer isolado já que um conjunto, do ponto de vista organísmico, possui propriedades especificas, que isolados, seus integrantes não têm. Como contempladores da realidade que somos, fazemos isso a todo instante criando oportunidades sobrepostas a oportunidades e se acercando delas na tentativa de evitar o risco de não ter função, o que está atrelado à inexistência.

6 Sistema de coordenadas utilizado como base para o estudo da relatividade restrita e relatividade geral. O tempo e o espaço tridimensional são concebidos, em conjunto, como uma única variedade de quatro dimensões a que se dá o nome de espaço-tempo. Um ponto, no espaço-tempo, pode ser designado como um “acontecimento”. Cada acontecimento tem quatro coordenadas (t, x, y, z); ou, em coordenadas angulares, t, r, θ, e φ que dizem o local e a hora em que ele ocorreu, ocorre ou ocorrerá.

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Desta maneira, este arranjo, denominado por nós como Forma, possui as mesmas atribuições das grandezas físicas descritas como massa e carga, desde suas transmissões via campo até sua mediação como partícula.

Forma, uma Questão Ontológica De acordo com o contexto, Forma pode ser empregada e m d ive rs a s s ituaçõ e s . S e u u s o co m u m s e r ve p a r a demonstrar uma figura ex terna de um material sólido. É por isso que podemos classificar os diferentes objetos em quadrados, esferas, círculos, entre outros. Neste sentido, a classificação das formas se refere às formas geométricas. Por outro lado, o conceito de forma está relacionado à organização das coisas em nossa mente. A maneira como algo é estabelecido, ou então, o modo como é feito também é conhecido como forma. Segundo a metafísica aristotélica, matéria e forma são princípios distintos, mas absolutamente complementares (Zingano, 2003), A matéria se define por aquilo que uma coisa existe ou quando algo for feito, e representa a essência da substância. Por exemplo, se uma mesa foi feita de pedra, sendo esta sua principal substância, a pedra é, por natureza, o fundamento da essência; é a matéria. Por outro lado, a mesa, ao ser feita, adquiriu um determinado modelo; é justamente essa determinação que se entende por forma. Então, a forma faz com que uma coisa seja isso ou aquilo, e seu aspecto referencial, é meramente acidental e não substancial.

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Mas a que serve a natureza da mesa (pedra)? Sua funcionalidade (forma) parece ser mais útil, pois se pensarmos em apoiar pratos ou panelas, efetivamente não importa se a mesa é de pedra ou madeira. Entendemos claramente que o conjunto de pés e tampo juntos é mais efetivo do que separados, uma vez que se estivessem simplesmente amontoados não teriam a forma de mesa e, portanto, sem função. No entanto, de acordo com nossa premissa, se de alguma maneira interagirmos com os mesmos, tornam-se potenciais de ser mesa (função) o que de maneira consciente passam a ser realidade. A forma parece mais sutil do que a essência. Tão sutil e imaterial a ponto de não ser sensível aos sentidos. Ela surge em nossa mente

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e não requer nada material exceto uma experiência anterior daquilo que supostamente, como no exemplo, chamamos de mesa. Sendo assim, sobre sua propagação, já que não arrasta matéria pode ser transmitida como onda tal qual a luz. Mas a luz em sua propagação é uma interação de campos elétrico e magnético então talvez a Forma também possa se propagar da mesma maneira. Um campo que transporta a forma, que dá origem a ela quando as partículas que são por ele sensibilizadas se encontram em seu interior, um campo MORFO (forma) GENETICO (radical indo-europeu gen-/gne-, nascer, gerar), um campo que gera a forma. Como em nossa proposta colocamos a Forma como uma qualidade da partícula tal qual a massa e a carga elétrica e ainda lembrando que essas qualidades são propagadas através de seus respectivos campos, recorremos ao trabalho do biólogo Rupert Sheldrake7 (1981) sobre campos morfogenéticos. Segundo ele: Eles são campos não físicos que exercem influência sobre sistemas que apresentam algum tipo de organização inerente. Todas estas coisas são organizadas por si mesmas. Um átomo não tem que ser criado por algum agente externo, ele se organiza só”. “Esta teoria trata sistemas naturais autoorganizados e a origem das formas. E eu assumo que a causa das formas é a influência de campos organizacionais, campos formativos que eu chamo de campos mórficos. A característica principal é que a forma das sociedades, ideias, cristais e moléculas dependem do modo em que tipos semelhantes foram organizados no passado. Há uma espécie de memória integrada nos campos mórficos de cada coisa organizada. Eu concebo as regularidades da natureza como hábitos mais que por coisas governadas por leis matemáticas eternas que existem de algum modo fora da natureza (Sheldrake, 1981).

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Reconhecemos a contribuição do autor nesta nova perspectiva sobre os Campos Morfogenéticos, no entanto, em nosso trabalho, nós os consideramos como campos físicos e acreditamos que seu tratamento formal deverá seguir os mesmos moldes dos campos gravitacional e elétrico. Se cada qualidade da partícula (massa e carga) desenvolve seu próprio campo, a Forma não deve ser diferente.

7 Biólogo, bioquímico, parapsicólogo, escritor e palestrante inglês; mais conhecido por sua teoria da morfogênese. Pesquisador em bioquímica e fisiologia vegetal, descobriu junto com Philip Rubery, o mecanismo de transporte da auxina.

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A analogia dos campos morfogenéticos com os campos físicos está em sua existência/comprovação uma vez que o campo gravitacional só é observável em seus efeitos sobre partículas dotadas de massa, assim como o campo eletromagnético só é comprovado por seu efeito sobre cargas elétricas, propomos que o campo morfogenético tenha seu efeito observado sobre a Forma das partículas. Se a mudança no comportamento de partículas dotadas de carga e/ou massa quando imersas em seus respectivos campos ratifica a existência desses campos, a modificação na Forma ou organização das mesmas também comprovaria a existência dos campos morfogenéticos. De acordo com nosso terceiro postulado8 o conceito de campo morfogenético, bem como sua comprovação, fica atrelado à causa da forma dos sistemas, e sua influência tem por si só maior ou menor intensidade de acordo com a necessidade e/ou importância que a organização da particula/sistema tem em relação ao contexto. Entendemos também que o aspecto final de um agrupamento pode ser representado em função de sua estabilidade mecânica funcional (massa), estabilidade eletromagnética (carga elétrica) ou ainda estabilidade organizacional (forma), dependendo na necessidade de subsistência do sistema em sua conexão com o ambiente.

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Essa necessidade natural dos sistemas em se acomodar diante das variações do ambiente é melhor compreendida se lançarmos mão do conceito de auto-organização.

Organização e Auto-Organização Organização, do grego organon, é uma palavra relacionada a agrupamentos que, tendo elementos (composição) juntos (conectividade) se constroem (estrutura) formando núcleos/ subsistemas (Integralidade) que permitem, desta maneira, o surgimento de funções/propriedades singulares ao conjunto (Funcionalidade).

8 A Forma é uma qualidade dos sistemas que agrega funcionalidade tal qual a massa e carga elétrica.

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Graças à organização um sistema assume propriedades que não podem ser encontradas nas entidades isoladas, ou mesmo na simples reunião delas. Quando um elemento externo ao sistema provoca a reunião das partes entendemos que o evento ocorre a custas de um fornecimento de energia e desta maneira temos uma organização forçada, cuja manutenção remete à instabilidade (Figura 1). A probabilidade das bolas se organizarem em uma pilha é muito pequena, sugerindo então que alguém (elemento externo) faça isso, ou seja, alguém forneceu energia para que o sistema se organizasse daquela maneira. Observemos ainda que o conjunto possui uma energia potencial devido à sua organização. No entanto quando um sistema é sujeito a um estimulo (ruído) mínimo externo (alguém tira uma bola da base), este se acomoda de maneira mais estável (Figura2), o que é comum estar associado a uma desorganização que indica um grau mais alto de entropia.

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Organizado

Instável

Figura 1. Fonte: https://pt.dreamstime.com/foto-de-stock-equipamento-deesporte-das-bolas-de-t%C3%AAnis-no-fundo-branco-image94280211.

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Desorganizado

Estável

Figura 2. Fonte: https://br.depositphotos.com/90881494/stock-photo-basketof-tennis-balls-scattered.html Quando isso ocorre, o sistema libera energia ao meio externo (Figura 3) e é nesse contexto que o ser humano demonstra sua maior habilidade que é reconhecer as transformações de energia e utilizálas em seu benefício, pois compreende que ao observar a tendência dos sistemas à desorganização, pode usufruir da energia liberada a seu favor.

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Verificamos que a maneira como o sistema se estabiliza parece desorganizado, no entanto, se prestarmos um pouco mais de atenção, perceberemos que de todas as possibilidades de desorganização uma em especial foi escolhida. É como se os integrantes do sistema produzissem o resultado final, de acordo com a necessidade de adaptação ao ambiente, para atingir sua estabilidade. Nesse contexto, entendemos que a desorganização de um sistema é o resultado de um processo de auto-organização, ou seja, um evento espontâneo, não aleatório e com a característica de que a repetição aumenta sua recorrência.

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Ao se desorganizar o sistema libera energia ao meio como uma queda d´água fornece eletricidade

SISTEMA Organizado Instável

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Desorganizado Estável O sistema recebe energia do meio externo para se organizar

Figura 3. Fonte: Do autor.

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Um sistema para ser auto-organizado tem algumas características específicas, que definem para nós as condições fundamentais para o surgimento das propriedades físicas da matéria. São elas: • Redundância Estrutural: É a repetição dos elementos básicos constituintes; • Redundância Funcional: Semelhança entre os processos executados; • Adaptação Funcional: Capacidade do sistema de deslocar e distribuir funções; • Confiabilidade Sistemática: Quando sistemas altamente complexos possuem as três primeiras características eles adquirem a capacidade de aceitar um certo nível de intromissão (ruído/ desordem) em sua organização sem que a estrutura entre em colapso. Na verdade, o sistema utiliza esse fator de desequilíbrio como elemento de complexificação para que se auto organize em um nível superior de estabilidade, o que chamamos de evolução.

É como se o sistema ao evoluir incorporasse outros subsistemas causadores de tais interferências ampliando sua rede e de certa maneira garantindo sua existência. Somente pela auto-organização é possível promover essa independência, pois a organização exige de um elemento externo sempre uma certa quantidade de energia para manter seu status de detentor da ordem.

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Como dissemos anteriormente, uma Forma é dita autoorganizada quando se produz a si própria, o que significa apresentar a capacidade de criar padrões de comportamentos não previsíveis, descentralizados e em alguns casos, de crescente adaptação. Uma vez auto-organizado, sistemas semelhantes terão mais chances de repetir a mesma configuração, o que explicaria a memória integrada nos campos mórficos no trabalho de Sheldrake (1981) quando ele cita a cristalização espontânea de substâncias.

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A competição entre as formas pode ser explicada pela estabilidade termodinâmica; no entanto, a transmissão dessa informação fica a critério da ressonância mórfica9. Outros exemplos de comparação entre sistemas organizados e auto-organizados mais tangíveis à nossa experiência cotidiana são os semáforos e rotatórias. Um conjunto de semáforos (organizado) regula o trânsito em um cruzamento. Já as rotatórias (auto-organizado), a decisão de passar / esperar é transferida para os próprios motoristas (internos ao sistema). Os mesmos orientar-se-ão por algumas regras simples internas que irão determinar quando é permitido entrar na rotatória. Para que ocorra a manutenção do sistema a auto-organização acaba por determinar qual ou quais propriedades sistêmicas serão mais apropriadas à manifestação. Em alguns casos não são os estados de menor energia as melhores opções, por vezes a necessidade da forma supera a estabilidade energética. Um exemplo disso é a água, cuja molécula possui geometria angular porque o átomo central (oxigênio) tem dois pares de elétrons não ligantes.

Fórmula eletrônica da água

4 nuvens eletrônicas

Geometria angular

O

O H

>

H

H H

104’5º

H

H

Fonte: https://mundoeducacao.bol.uol.br/quimica/determinacao-geometriamolecular.htm.

9 O conhecimento adquirido por um conjunto de indivíduos agrega-se ao patrimônio coletivo, provocando um acréscimo de consciência que passa a ser compartilhado por toda a espécie. E esse processo de coletivização da informação foi denominado por Sheldrake de “ressonância mórfica”. É através dela que as informações se propagam no interior do campo mórfico, alimentando uma espécie de memória coletiva.

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Supondo que a molécula de água tivesse o formato linear isso satisfaria a repulsão elétrica e a estabilidade estrutural. No entanto, a água, na forma linear, seria considerada apolar, sendo classificada como um gás nas CNTP 10 . A substância não faria ligação de hidrogênio, não se associaria e toda vida que conhecemos hoje não existiria, uma vez que a mesma, supostamente, surgiu na água em seu estado líquido. Entendemos que a Teoria da Repulsão dos pares de elétrons da camada de valência explica de maneira cabal a geometria da molécula dado que a repulsão entre pares não-ligantes é maior que entre ligantes, mas isso é a explicação partindo da pré-existência das qualidades massa e carga elétrica de seus constituintes. O que estamos propondo é que a conveniência funcional desta geometria é anterior à manifestação de tais propriedades. A Forma (a autoorganização) se torna mais importante que a configuração de mínima energia, para que toda vida sistêmica seja materializada. Ressaltamos que a persistência na formação de moléculas de água é mais um exemplo de repetição de padrões formativos que Sheldrake (1981) chama de ressonância mórfica e continua ocorrendo para sustentar a vida, função maior do sistema. Se ampliarmos nossa atenção e se pudermos romper com o paradigma que mantém a molécula de água com angular e ainda, só por um momento, considerarmos a possibilidade de uma nova geometria, perceberemos que a forma da mesma não é inerente a ela, mas resultado das infinitas vezes que o evento ocorreu e por isso tem muito mais possibilidade de continuar ocorrendo.

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Essa recorrência faz com que interpretemos de forma ilusória que a molécula de água seja estável e natural, acreditando como consequência que ela existe independente de nós. Insistimos em dizer que ela só é assim porque é conveniente ao sistema que assim seja e que nossa interação a faz real.

10 As condições normais de temperatura e pressão (cuja sigla é CNTP no Brasil) referemse à condição experimental com temperatura e pressão de 273,15 K (0 °C) e 101 325 Pa (101,325 kPa = 1,01325 bar = 1 atm = 760 mmHg), respectivamente. Esta condição é comumente empregada para medidas de gases em condições atmosféricas (ou de atmosfera padrão).

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A todo momento átomos surgem, elétrons preenchem as mesmas órbitas ao redor do núcleo; átomos se combinam repetidamente para produzir as mesmas formas moleculares. Essa repetição pode ser explicada não porque existem leis físicas imutáveis que determinam formas eternas, mas por conta de uma influência de causa formativa anterior, ou seja, o campo morfogenético de sistemas passados aumenta a possibilidade de formas futuras se manifestarem. Uma das consequências de nossa hipótese seria fato de que se todas as propriedades ditas fundamentais até agora sejam resultado da conveniência funcional, o tempo seria a única medida verdadeiramente inerente à realidade.

A HCF nas Relações Sociais No âmbito da convivência entre indivíduos, partimos da premissa de que o ser humano tem a tendência a se agrupar, se associar. Essa tendência provavelmente tem origem na intuição de que ao formar grupos teremos maior chance de sobreviver às influências externas. Desta forma quando compartilhamos de uma mesma realidade temos a possibilidade de nos conectar a partir dela, ou seja, temos algo em comum que nos motiva a formar um grupo (um sistema). Quanto mais pontos em comum tivermos, mais forte nossas conexões.

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Vamos voltar ao exemplo da cadeira onde a conveniência de um observador em encontrar um objeto que tenha a função de acomodálo sentado faz com que se manifeste massa e carga elétrica nas partículas que podem, a partir do seu campo, produzir a materialização de uma cadeira. Outro indivíduo pode percebê-la também, talvez não para sentar, mas para compartilhar da mesma conveniência criando uma experiência em comum e consequentemente a possibilidade de associação. Temos então uma explicação bastante simples sobre o motivo de indivíduos diferentes produzirem a mesma realidade. Isso ocorre porque o objeto em si não é o elemento mais importante e sim o fato de que sua realidade seja compartilhada com outro constituinte do sistema. É a associação gerada pelo compartilhamento desta manifestação que os mantêm em conexão garantindo aos integrantes uma funcionalidade que é a razão de sua existência.

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Entendemos que a materialidade não é algo intrínseco, mas resultado da necessidade de associação. Desta maneira tal qual um arranjo molecular, todo sistema social é pautado nessa concepção, uma vez que criamos grupos porque comungamos de uma mesma conveniência. A existência de um evento comum é sustentada pela necessidade de manter o grupo. A crença compartilhada de que algo exista fornece uma qualidade que sustenta o sistema, não pela existência do objeto ou evento propriamente dito, mas pelo agrupamento motivado por esta crença. A partir deste momento, para manter a associação, cada elemento toma para si uma função baseada em sua própria conveniência e constrói sua própria concepção de universo. A manutenção das conexões garante sua importância diante do sistema por ele criado. É por isso que o indivíduo desenvolve seus valores e prerrogativas sempre na tentativa de sustentar seu mundo. Esta atitude é uma maneira de garantir o controle das interações que ele mantém com o sistema. Estar consciente de sua função frente a uma determinada organização é o maior desafio do indivíduo. Um mesmo indivíduo pode participar de sistemas diferentes com funções diferentes, por exemplo, no trabalho ele pode ser um técnico em informática, em casa ser pai, na escola ser professor ou aluno.

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Não há uma essência única e sim uma habilidade fantástica de modular funções, no entanto, esta habilidade passa despercebida pela maioria das pessoas que acreditam ter uma só face, uma base primordial só que na verdade temos múltiplas faces. Ao assumir que possuímos uma essência rejeitamos o exercício de modularmos nossas funções em prol de uma busca quixotesca de nosso bloco fundamental tal qual a ciência o fez sem sucesso. Essa postura de dizer que nossa essência permite ou não tal coisa é uma maneira de terceirizar nossa responsabilidade diante das nossas relações. A manutenção destas relações exige adaptações funcionais pois caso um dos integrantes não consiga mais executar dada função, outros poderão exercê-la (análogo à plasticidade cerebral). Para responder a um certo nível de interferência o sistema entra em um movimento auto-organizativo onde é necessário, por vezes, uma

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adaptação na execução de tarefas, o que chamamos anteriormente de redundância funcional. A partir desta necessidade sistêmica os integrantes têm duas possibilidades, promover conscientemente esta modulação funcional e o conjunto evolui ou, insistir em manter a mesma função, o que significa buscar outro sistema para exercê-la. A insistência em manter a mesma função é causada pela estabilidade energética e sendo assim, desprovidos desta reflexão, indivíduos que não desenvolvem essa habilidade preferem mudar de ambiente a modular suas funções. As vezes essa falta de percepção é tamanha que o indivíduo não se encaixa em nenhum outro sistema, perdendo efetivamente sua função e consequentemente sua importância e razão de existir. A hipótese vem mostrar que como qualquer conjunto de elementos, nós como seres sociais fazemos essas adaptações a todo momento. A crença em uma única função é o que determina o individualismo e atribui ao elemento uma importância intrínseca, que ele verdadeiramente não tem, exatamente da mesma forma que atribuímos qualidades intrínsecas à matéria. >

Na verdade, quando uma ou mais qualidades se manifestam, naquele lapso temporal elas são únicas e isto faz com que acreditemos que sejam inerentes, mas só o são diante da necessidade daquele instante.

Considerações Finais O intuito do trabalho foi sugerir argumentos que permitam uma descrição da realidade vinculada à necessidade de associação e formação de sistemas físicos. A percepção da realidade é resultado de um processo auto organizativo das redes neurais desencadeada por elementos influenciadores que podem ser captados por nossos sentidos ou estimulados diretamente em vias corticais. A HCF revela que importância da associação não deve ser considerada apenas como requisito de nossa construção da realidade, mas sugere que todas as manifestações daquilo que entendemos

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como propriedades intrínsecas da matéria, são resultados desta necessidade de formação de sistemas. Tais propriedades dependem do seu estado peculiar de associação e manifestam-se naquilo que for mais funcional e, portanto, mais conveniente à formação de sistemas. Desta maneira propomos que a funcionalidade seja a causa do arranjo espaçotemporal (Forma) de um conjunto de partículas e que a predisposição deste arranjo seja considerada uma propriedade das mesmas tal qual a massa, carga elétrica, cor, sabor. Na verdade, intuímos que estas propriedades são recursos que a partícula desenvolve para se associar e assim sendo não são próprias da partícula, mas resultado de suas conexões. Sob esta perspectiva, as qualidades da matéria são criadas mediante a necessidade de se auto-organizar em um arranjo funcional no contexto do sistema no qual observador e observado integram o que chamamos de realidade. A única propriedade fundamental do sistema, seja ele constituído por partículas ou pessoas, é a associação, o arranjo, a auto-organização, que em nosso trabalho denominamos de Forma. >

A causação formativa (campo mórfico) parece se antecipar a todas as propriedades da matéria, desmistificando a inerência das mesmas e vinculando-as a conveniência funcional. Daí o nome de Hipótese da Conveniência Funcional. A existência está no funcional e a realidade encontra-se na conveniência do sistema.

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As Neurociências, a Experiência Espiritual Religiosa e os Fenômenos “Paranormais”: Existe Correlação e em até que Ponto?

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José Luciano Tavares da Silva* Universidade Estadual de Londrina

Josiane Cecília Luzia Universidade Estadual de Londrina

Introdução Uma coleção de anotações e cartas escritas por pessoas prestes a serem executadas, após serem acusadas de ajudar judeus a sobreviver no decorrer da segunda guerra mundial, mostra algo interessante. Todos os relatos escritos por pessoas com muita fé ou crianças apresentam uma semelhança entre si (de esperança talvez), exceto pelo relato de um homem ateu, de dezenove anos, que se envolvera com o movimento de resistência em busca de aventura. Suas cartas diferiam de todas as outras, pois ele era o único que tinha medo da morte (Mlodinow, 2012). Aparentemente a maioria dos seres humanos é constituída para acreditar que a morte não é o final da existência. Isso nos é inerente, considerando que é muito difícil conceber que um dia simplesmente “deixaremos de existir”. Provavelmente a maioria também há de concordar que tudo aquilo que vivenciamos no decorrer da vida (pensamentos, sensações, lembranças, sonhos, emoções e outros) devemos à atividade cerebral.

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Autor para correspondência: jlucianotavares@ gmail.com

Todavia, muita gente acredita que, embora relacionada ao cérebro, a “mente” poderia existir de forma independente de sua atividade, possuindo um aspecto “etéreo” ou “divino”, que lhe possibilitaria sobreviver após a morte encefálica. Ou seja, Deus criou

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o cérebro e a mente, que são relacionados entre si, mas apenas até certo ponto. Para as neurociências, no entanto, a coisa não é bem assim. Não foi Deus quem criou o cérebro, mas sim o cérebro quem criou Deus. Ou seja, a religiosidade e crença na vida após a morte nada mais é que um subterfúgio criado pelo cérebro para nos consolar frente ao fim inevitável. De forma semelhante ao fato de todas as culturas demonstrarem propensão para desenvolver um idioma, todas demonstram claramente propensão para desenvolver uma religião e crença numa realidade espiritual. O termo “espiritual” é geralmente aplicado a qualquer essência humana que nos conecte a um mundo invisível que desafia a medição científica, mas que, no entanto, acreditamos e sentimos existir, deixando vestígios aqui e ali. Pode referir-se ainda a qualquer coisa transcendente ou algo que nos move ou transporta profundamente e nos conecta de uma maneira ou de outra a algo maior que nós mesmos (Nelson, 2012). Enquanto a espiritualidade apresenta um contexto individual, o aspecto religioso apresenta contexto social, como participar de uma organização com tradições, costumes, doutrinas e crenças (Nelson, 2012). Os impulsos religiosos e espirituais geralmente trabalham simultaneamente para ajudar a fortalecer a crença em um deus e na igreja, pois certos costumes religiosos, como contemplação, canto, oração e engajamento em rituais podem evocar experiências espirituais (Alper, 2008).

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Embora o aspecto espiritual apresente íntima relação com o religioso, tal relação não é exclusiva, considerando que a espiritualidade pode existir sem a presença obrigatória das doutrinas religiosas (Niekerk, 2018). Assim, é possível uma pessoa ser altamente religiosa (devotada à doutrina e ao ritual da igreja), embora completamente incapaz de ter uma experiência espiritual. Inversamente, é igualmente possível que alguém seja altamente espiritual, embora nem um pouco religioso (Alper, 2008). Historicamente, muito do que seria agora experiência espiritual aconteceu dentro de religiões estabelecidas (a palavra “espírito”, por exemplo, é mencionada em toda a Bíblia judaico-cristã), mas com a ascensão do secularismo no final do século XIX e no início do

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século XX, a palavra “espiritual” adquiriu significados fora da religião organizada, uma podendo existir de forma independente da outra (Nelson, 2012). Todavia, muitas tentativas de definir religião pareciam estar definindo na verdade a espiritualidade, já que esta também pode pressupor algumas doutrinas (meditação ou “reza contemplativa”, por exemplo), que sobrepõem-se às doutrinas religiosas. Assim, parece que aqueles que se declaram “espirituais, mas não religiosos” apresentam uma compreensão empobrecida da espiritualidade (Carey, 2018). As religiões de forma geral pregam a existência de “vida após a morte”, de maneira que a morte pode representar um novo começo, uma passagem para uma outra vida, onde nos reunimos com os entes queridos e vivemos eternamente em um paraíso fantástico. Esta crença é comum na maioria das doutrinas teológicas, sendo solidificadas pelos relatos de pessoas que passaram pelas denominadas “experiências de quase-morte”, que serão discutidas adiante. Apesar dessas experiências deixarem uma marca indelével na vida do indivíduo, muitas vezes reduzindo qualquer medo de morte pré-existente, há quem defenda que todos seus aspectos apresentem base neurofisiológica ou psicológica (Mobbs, & Watt, 2011).

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Determinados estados de consciência atingidos por motivos neurológicos ou mesmo induzidos em laboratório, podem promover a experiência de certos aspectos da realidade que não estão disponíveis em outros estados, descartando possível fingimento ou confabulação de quem passa pela experiência (Beauregard, & O’Leary, 2007). Mesmo neurocientistas renomados e, portanto, em sua maioria céticos em relação à existência do mundo espiritual, podem em algum momento viver experiências que os fazem mudar de opinião. De fato, o neurocirurgião e neurocientista da Universidade Harvard, Eben Alexander III, em livro publicado no Brasil com o título “Uma prova do céu”, relata sua experiência transcendente após permanecer entre a vida e a morte (Alexander, 2013). Tal fato indica que, sendo as experiências espirituais ou religiosas, não importando o nível de transcendência que esta alcance, apenas fenômenos criados pela atividade encefálica, sem dúvida alguma podem convencer, mesmo

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aqueles que cuja vida profissional resuma-se a estudar o sistema nervoso, de que vêm de “fora” deste, imitando de forma prodigiosa a percepção do mundo real. Para o psicólogo e escritor Michael Shermer, famoso por suas críticas ao que ele denomina “pseudociências”, os sistemas que nos fazem crer em algo sobrenatural são poderosos. Funcionando como uma espécie de “máquina de crença”, o cérebro busca e encontra padrões para os quais infunde significado, com objetivo de obter explicações sobre o porquê das coisas acontecerem. Tais padrões significativos tornar-se-ão as crenças, que uma vez constituídas, induzem o cérebro a procurar e encontrar evidências que as reforcem e confirmem (Shermer, 2012). A capacidade de encontrar padrões é tão importante para a sobrevivência, que o cérebro passa a identificar alguns padrões imaginários, sem considerar exemplos genuínos de causa e efeito (Wiseman, 2017). Enquanto o princípio religioso ou espiritual aceita determinados fenômenos, ditos “paranormais” pela crença ou fé, um dos princípios fundamentais da ciência é que toda ação produz um efeito e todo efeito apresenta uma causa a princípio explicável do ponto de vista científico. Não há, portanto, espaço para a possibilidade de determinados fenômenos considerados por muitos como “paranormais” serem outra coisa a não ser ilusões criadas pelo cérebro.

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Contudo, nem todos os fenômenos ditos “paranormais” apresentam sólida base neurocientífica, tendo em vista existirem algumas evidências cujas causas ainda encontram-se além da explicação pelos métodos investigativos utilizados, não significando, contudo, que não poderão ser explicados posteriormente (Greyson, Holden, & Lommel, 2012).

Objetivo Geral Estabelecer até que ponto fenômenos considerados espirituais sob o ponto de vista religioso ou “paranormais”, podem ser explicados pelas neurociências.

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Objetivos Específicos • Enumerar fenômenos que podem ser considerados pelo público em geral como indicativos de paranormalidade; • Confrontar tais fenômenos, a princípio paranormais, com estudos publicados e que inferem para estes explicações plausíveis do ponto de vista científico; • V erificar até que ponto tais fenômenos podem ou não ser explicados à luz das neurociências e o que pode-se concluir a partir de tal verificação.

Desenvolvimento Fenômenos “Paranormais” O falecido astrofísico Carl Sagan, em uma das passagens do livro “O mundo assombrado pelos demônios” (Sagan, 2006), relata a suposição de alguém afirmando o seguinte: “um dragão que cospe fogo pelas ventas vive em minha garagem”. Na esperança de verificar por si mesmo a existência de um dragão ao vivo e a cores, você pede a quem afirmou que lhe mostre o bicho. O problema é que o dragão é invisível e você não pode vê-lo. Daí você propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão. O problema é que ele flutua pelo ar e não deixa pegadas. Em seguida a proposta é utilizar um sensor infravermelho para detectar o fogo invisível. O problema é que o fogo que o dragão produz é desprovido de calor. A proposta então é borrifar tinta no dragão para torná-lo visível. O problema é que trata-se de um dragão incorpóreo e a tinta não irá aderir ... e assim por diante. Qual seria, então, a diferença entre o suposto dragão e um dragão inexistente?

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“Todos os processos mentais, mesmo os processos psicológicos mais complexos, advém de operações no cérebro”. A afirmação de Erik Kandel (Kandel, Schwartz, Jessell, Siegelbaum, & Siegelbaum, 2014), um dos mais renomados neurocientistas da atualidade, é incisiva no que tange às experiências aparentemente “sem explicação” pelas ciências naturais. Ainda nos primórdios da ciência ocidental, no século XVII, René Descartes apresentava uma visão dualística, com distinção entre o que

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seria denominado “mente” e “cérebro”. Nesta interpretação o “cérebro” exerceria funções também observadas em animais inferiores, tais como, percepção, memória, atividades motoras, desejos e paixões, ao passo que a “mente” teria uma conotação “etérea”, exclusiva do ser humano. Tal conotação representaria a “alma” ou “espírito”, cuja comunicação com o “cérebro animal” ocorreria por intermédio da glândula pineal, localizada no centro do cérebro. No entanto, após casos documentados de pacientes neurológicos afetados por lesões encefálicas e que deixaram claro que a separação entre “mente” e “cérebro” não fazia o menor sentido, tal dualidade caiu por terra (Damásio, 2005). Mesmo assim, as propriedades da mente aparentam ser tão radicalmente diferentes das propriedades da matéria viva, um fenômeno à parte quando em comparação com os encontrados nos tecidos biológicos, que por vezes é difícil acreditar que a primeira deriva desta última. A mente dotada de subjetividade é denominada “mente consciente” ou apenas “consciência” (Damásio, 2011), cuja construção misteriosa pelo cérebro humano é um tema que certamente ainda renderá décadas de pesquisa científica. Sendo a mente derivada do cérebro, nossas lembranças e personalidade estão armazenadas em seus padrões e códigos neuronais. Se este morre, obviamente os neurônios e tais padrões e conexões se rompem, destruindo irreversivelmente nossas lembranças e personalidade, não restando absolutamente nada no que diz respeito à consciência, a qual simplesmente deixa de existir. O problema é que “deixar de existir” pode parecer à primeira vista simplesmente inconcebível, levando à crença de que após a morte do corpo, a mente continuaria existindo de uma forma etérea, como alma ou espírito.

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Assim, o cérebro seria apenas o lado “fisico” ao passo que a “mente” seria representada pela “alma”. A explicação da mente com base na atividade encefálica é a crença dos denominados “monistas”, ao passo que os “dualistas” defendem a existência de mente e cérebro separadamente. Diferente do monismo, que é contraintuitivo, a crença no dualismo é intuitivo e por isso atribuia atividade mental a uma fonte independente da função cerebral (Shermer, 2012).

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Pensando na própria finitude e preocupados com o que nos aguarda de maneira inevitável num futuro mais ou menos próximo, talvez tenhamos simplesmente “inventado” a “vida após a morte” ou “vida espiritual”. Por outro lado, inúmeros relatos de pessoas que vivenciaram fenômenos ditos “paranormais” ou não explicáveis pelas ciências naturais (pelo menos para tais pessoas), dão a entender que tais fenômenos são a prova da existência do “outro lado”. A seguir abordaremos alguns fenômenos considerados por muitos como paranormais e como a neurociência pode (ou não) explicá-los.

Familiaridade com o que Ainda não Havia Ocorrido: o déjà vu O termo déjà vu trata-se da expressão no idioma francês para “ já visto”, ou seja, é a impressão de que determinado momento já foi vivenciado anteriormente (porém, sabendo, por intermédio de lembrança consciente, que tal fato não ocorreu realmente). O fenômeno geralmente é acompanhado por crenças de predição ou profecia, incluindo lembranças de encarnações passadas, sonhos proféticos ou outros fatores, sejam estes naturais ou sobrenaturais.

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Na verdade o déjà vu é uma experiência bastante comum e normal, sendo que a maioria das pessoas já o vivenciaram ao menos uma vez na vida (O´Connor, Barnier, & Cox, 2008), mas cujo mecanismo exato ainda é desconhecido. Uma das teorias que foram associadas à ocorrência de déjà vu, a denominada “teoria da via dupla”, tornou-se popular no final do século XIX e início do século XX, sendo ainda frequentemente citada como a explicação do fenômeno, devido à sua plausibilidade intuitiva. A teoria propõe que o déjà vu é experimentado quando sinais sensoriais transmitidos por mais de uma via neuronal não convergem nas áreas corticais no mesmo momento preciso, fazendo com que o cérebro interprete mal um único encontro como uma experiência duplicada. Como a diferença entre a entrada das duas vias tem apenas milissegundos de duração, a primeira experiência neuronal não é codificada como um evento em si e, portanto, não é lembrada, desencadeando uma sensação de familiaridade com um passado

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indefinido quando a segunda experiência neuronal é encontrada. Foi proposto que a sensação origina-se nos nervos ópticos e, portanto, o déjà vu resultaria de um atraso no percurso das vias ópticas. O problema com esta explicação é que o fenômeno também ocorre com a participação de outros sentidos, como audição, tato e olfação, além de ocorrer também em pessoas cegas (O´Connor, & Moulin, 2006). Embora outras explicações tenham sido sugeridas, como processos cognitivos momentaneamente fora de sincronia ou desatenção (Brown, 2003), sabe-se atualmente que o déjà vu está associado a alterações fisiológicas normais e também patológicas em determinadas áreas encefálicas. Do ponto de vista fisiológico relaciona-se com atividade momentaneamente anormal de áreas associadas direta ou indiretamente à sensação de familiaridade e memória. Em condições patológicas, pode estar presente tanto em disfunções neurológicas, como a epilepsia do lobo temporal (onde se localizam as estruturas que respondem pela memória e familiaridade) que será abordada nesta revisão, quanto anormalidades de fundo psiquiátrico, como a esquizofrenia (Pašićetal., 2018).

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Em estudo com pacientes epiléticos, pacientes neurológicos e pessoas normais, Warren-Gash e Zeman (2014) avaliaram a prevalência de déjà vu em 150 indivíduos, sendo 50 pacientes epiléticos, 50 pacientes neurológicos sem epilepsia e 50 estudantes saudáveis, verificando que 100% dos pacientes epiléticos, 73,5% dos pacientes neurológicos e 88% dos estudantes haviam experimentado o déjà vu ao menos uma vez na vida. Segundo Brown (2003), a frequência tende a diminuir com a idade, o que explica a maior frequência em estudantes (mais jovens), quando em comparação com pacientes neurológicos. Há, contudo, diferenças entre os sintomas do déjà vu normal ou fisiológico e o patológico. Diferentemente do déjà vu fisiológico (onde a sensação restringe-se à familiaridade com determinada situação ainda não vivenciada), no fenômeno associado à epilepsia (déjà vu ictal), os pacientes apresentam maior propensão a relatar sintomas como fadiga prévia, desrealização, alucinações olfativas e gustativas, dores de cabeça, sensações abdominais e medo (Warren-Gash, & Zeman, 2014).

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O déjà vu ictal geralmente origina-se em uma rede neural que inclui estruturas do lobo temporal medial, notadamente o córtex rinal, constituído pelos córtices perirrinal e entorrinal, responsáveis pela sensação de “familiaridade” (Guedj, Aubert, McGonigal, Mundler, & Bartolomei, 2010; Takedaetal., 2011; Bartolomeietal., 2012; Brandt, Eysenck, Nielsen, & Oertzen, 2016), os quais localizam-se adjacentes ao hipocampo, estrutura relacionada à memória explícita. Ao estudar áreas encefálicas associadas ao reconhecimento de faces e palavras, sejam estas familiares ou não, Brandt et al . (2016) confirmaram que dano ao córtex entorrinal esquerdo acarreta prejuízo no processo de familiaridade em relação a uma lista de palavras, deixando, contudo o processo de lembrança intacto. Esses resultados sugerem que o córtex entorrinal suporta a memória de reconhecimento baseada na familiaridade (livre de contexto) e que a familiaridade e a lembrança são subservidas por regiões distintas dentro dos lobos temporais mediais. Takeda et al . (2011) relatam a presença de constante déjà vu em paciente cujo exame de Cintilografia de Perfusão Cerebral (conhecida pelo acrônomo SPECT, que vem do inglês Single Photon Emission Computed Tomography) indicava hiperperfusão e foco epilético localizado no córtex rinal, mais especificamente córtex entorrinal esquerdo. A sensação de familiaridade era de tal maneira persistente, que o paciente descrevia seu estado como se estivesse vivendo a mesma vida que já havia vivido anteriormente (neste caso denominado usualmente como déjà vécu ou “ já vivido”). O paciente relatava que, quando via alguém pela primeira vez, sentia que já conhecia a pessoa antes, quando visitava algum lugar pela primeira vez, sentia que já estivera lá e mesmo quando via notícias na TV ou jornal, sentia que já sabia de todas elas com antecedência.

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Estudando o caso de uma paciente com grave foco epilético seletivo para a mesma região (córtex entorrinal lateral esquerdo), Brandt, Conway, James e Oertzen (2018) confirmaram a existência de uma relação direta entre a atividade anormal desta área e as experiências de déjà vu e déjà vécu . De maneira semelhante, Martinetal. (2019), estudando casos de epilepsia de lobo temporal medial, também relacionada ao córtex rinal (peririnal e entorrinal), verificaram que a falsa sensação de familiaridade no decorrer das crises deve-se à atividade do córtex rinal, mas a preservação da

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lembrança (função do hipocampo) não é obrigatória para a ocorrência do fenômeno. Corroborando tais achados, o estudo de Curotetal. (2019) relata o caso de paciente epilético com danos bilaterais exclusivamente no hipocampo, mas com a região perirrinal estrutural e funcionalmente intacta. Apesar de apresentar amnésia grave, o paciente ainda relatava episódios tanto de déjà vu quanto de déjà vécu, mostrando que os fenômenos podem ocorrer mesmo em casos de hipocampos massivamente danificados e confirmando que a região do córtex perirrinal apresenta papel central em sua ocorrência. Em se tratando do déjà vu fisiológico, o estudo de Brázdiletal. (2012), realizado em sujeitos saudáveis com ou sem relatos do fenômeno, mostrou quantidade significativamente menor de substância cinzenta em regiões corticais (com predomínio no lobo temporal medial) e subcorticais de indivíduos que relataram passar pela experiência. Nessas regiões, o volume de massa cinzenta foi inversamente correlacionado com a frequência dos episódios, apoiando uma explicação neurológica para o fenômeno. Pešlováetal. (2018) também encontraram relações entre o déjà vu fisiológico e a diminuição no volume de substância cinzenta de determinados subáreas do hipocampo. Como a função de memória parece exigir o envolvimento coordenado do hipocampo com toda a rede localizada no lobo temporal medial, é possível que o déjà vu fisiológico resulte de sinalização aberrante dentro desse circuito, envolvendo interações neurais que produzem um sentimento errôneo de familiaridade (Shaw, Marecek, & Brázdil, 2016).

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Aparentemente, também há uma relação entre a incidência de episódios de déjà vu e níveis elevados de estresse e fadiga, conforme demonstrado por Wells, O’Connor, e Moulin (2018), que observaram maior frequência do fenômeno em pessoas com ansiedade clínica, notadamente em períodos em que esta ansiedade está mais exacerbada. Tais pacientes também apresentam maior angústia durante os episódios em comparação a controles saudáveis. Urquhart, Sivakumaran, Macfarlane e O’Connor (2018) utilizaram metodologia para gerar familiaridade e novidade dentro de um análogo déjà vu em sujeitos neurologicamente saudáveis. Por intermédio da combinação de familiaridade gerada experimentalmente e sugestões que indicavam que esta estava incorreta, foi gerado um conflito

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cognitivo nos participantes. Foram coletados dados de ressonância magnética funcional (fMRI) e comportamentais de 21 participantes, 16 dos quais relataram déjà vu. Os autores inferiram que o déjà vu trata-se de uma experiência impulsionada por conflitos mnemônicos, com a participação dos córtices cingulado anterior, pré-frontal medial e parietal. Assim, regiões frontais envolvidas no controle cognitivo, monitoramento e resolução de conflitos podem também apresentar um papel na fenomenologia da experiência. É possível, portanto, inferir que apesar da possível participação de outras estruturas corticais e subcorticais no déjà vu, aparentemente alterações funcionais da atividade no lobo temporal medial, mais especificamente do córtex rinal, apresentam importante papel no advento do fenômeno em situações fisiológicas normais, mas também em determinadas condições patológicas que envolvam tais áreas. Contudo, conforme indicam Pašić et al. (2018), apesar de comum, o déjà vu ainda é um fenômeno que merece maior investigação, principalmente por meio de abordagens multidisciplinares via cooperação entre neurobiólogos, neurologistas, neurocientistas, psiquiatras e psicólogos experimentais, que certamente poderão colaborar de maneira mais eficaz para sua melhor elucidação.

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Fenômenos Relacionados ao Esquema Corporal Seres humanos são indivíduos autoconscientes, cujo pensamento e comportamento são baseados em processos corporais básicos, que transcendem os domínios de sensação corporal (somatosensação) e ação motora. Nosso corpo pode ser visto e suas partes podem ser localizadas no espaço mesmo na escuridão total, sabemos para onde estamos indo e podemos sentir o coração batendo. O espaço corporal é um espaço multissensorial, constituído continuamente por impressões exteroceptivas (táteis, visuais, olfativas, auditivas), proprioceptivas (vestibulares, musculares/motoras) e interoceptivas (viscerais). A sensação de self ou “eu”, localizado em determinado lugar no espaço, é constituído pelas múltiplas interações entre essas impressões (Brugger, & Lenggenhager, 2014; Dieguez, & Lopes, 2017). Consequentemente, a variedade de distúrbios que afetam o corpo de uma pessoa é considerável, podendo este ser

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experimentado como “perdido”, “sem pertencer”, “sem controle”, “vazio”, “feio”, “desapegado” ou até mesmo “duplicado”. Tais distúrbios do self abrangem todos os níveis de representação corporal, de membros únicos a todo o corpo em um contexto social (Brugger, & Lenggenhager, 2014) e são denominados como distúrbios do “esquema corporal”. Os distúrbios do esquema corporal podem envolver apenas um lado do corpo, sendo classificados como unilaterais, ou podem se estender ao corpo todo, sendo denominados distúrbios não-lateralizados. Dentre os distúrbios unilaterais pode-se citar os denominados “membros fantasmas supranumerários”, onde o paciente refere a nítida sensação de apresentar membros adicionais, embora invisíveis, as “hemiassomatognosias” ou apenas “assomatognosias” inconsciente e consciente, onde na primeira o paciente ignora um dos lados do corpo, como se este nunca houvesse existido, e na segunda apresenta vívida sensação de que uma parte do corpo desapareceu, e por último a “somatoparafrenia” onde o paciente refere partes de seu corpo como pertencentes a outras pessoas (Dieguez, & Lopes, 2017).

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A sensação de membros fantasmas supranumerários pode ser causada por vários tipos de lesões cerebrais que resultem no comprometimento do sistema de feedback sensorial para o esquema corporal interno e para o movimento (Kimetal., 2017), ao passo que as assomatognosias podem resultar de grandes lesões envolvendo múltiplos setores temporoparietais e fronto-mediais (Feinberg, Venneri, Simone, Fan, & Northoff, 2010). A assomatognosia e a somatoparafrenia são distúrbios semelhantes. O primeiro compromete o senso de propriedade, sendo caracterizado pela falha do paciente em ter uma sensação, sentimento ou julgamento contínuo de que a parte do corpo (normalmente o membro comprometido) lhe pertence. A somatoparafrenia está tipicamente associada a déficits motores e somatossensoriais profundos. Com lesões maiores envolvendo, além da área temporoparietal, também a área orbitofrontal; esta disfunção propicia ao paciente forte senso de desapropriação em relação ao membro comprometido (asomatognosia), juntamente com a atribuição ilusória desse membro a outra pessoa (Romano, & Maravita, 2019; Feinbergetal., 2010).

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Sabe-se há décadas que disfunções numa determinada região encefálica no hemisfério direito denominada “ junção temporoparietal” (JTP) associa-se ao fenômeno de somatoparafrenia (Bisiach, Rusconi, & Vallar, 1991), observando-se a presença de lesões nesta área em vários pacientes sintomáticos (Vallar, & Ronchi, 2009). Considerando a função da JTP na integração das diversas informações sensoriais advindas da periferia ou “integração multissensorial” (Vallar, & Ronchi, 2009), além de ser forte candidata à fonte da autoconsciência e o local onde o self é representado (Iontaetal., 2011; Cheyne, & Girard, 2009), o papel da JTP no “esquema corporal” é particularmente relevante. Apesar de ainda não haver um consenso em relação à sua anatomia precisa, geralmente a JTP é considerada uma área cortical situada na junção do lóbulo parietal inferior, córtex occipital lateral e sulco temporal superior posterior (Mars et al., 2012; Donaldson, Rinehart, & Enticott, 2015). Seja a JTP uma região cortical precisamente identificável ou um grupamento de sub-regiões com funções separadas, sabe-se que ela apresenta papel crucial para o processamento e integração de múltiplas modalidades sensoriais, além de gerar uma percepção coerente das alterações na autolocalização e espaço extrapessoal por intermédio dos diversos referenciais sensoriais que a ela convergem (Kheradmand, & Winnick, 2017).

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Em se tratando das disfunções do esquema corporal nãolateralizadas, ou que se estendem ao corpo todo, podem-se citar a macrosomatognosia, onde o paciente refere que alguma parte de seu corpo aumenta de tamanho, podendo por exemplo “ocupar o espaço de uma sala” (Dieguez, & Lopez, 2017), além de outras percepções bizarras, como alteração de tamanho e formato do corpo e ilusões de mudanças nas formas, dimensões e movimentos de objetos. Por conta disso, a macrosomatognosia também é denominda “Síndrome de Alice no País das Maravilhas”, considerando que as ilusões e alucinações se assemelham aos fenômenos estranhos que a personagem Alice apresentava no famoso conto de Charles Lutwidge Dodgson (cujo pseudônimo era Lewis Carroll), experimentando ele mesmo tais sintomas. A anomalia pode derivar de crises epiléticas parciais complexas, enxaqueca, infecções ou intoxicações (Fine, 2013).

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Outras disfunções do esquema corporal que envolvem o corpo todo são os denominados “fenômenos autoscópicos” ou autoscopia (Dieguez, & Lopez, 2017), que culturalmente costumam apresentam explicações “sobrenaturais” e serão tratados detalhadamente a seguir.

Autoscopia ou “Fenômenos Autoscópicos” O termo “autoscopia”deriva do grego autos que significa “ego” e skopeo que significa “olhar para” e é utilizado para descrever diferentes fenômenos de várias etiologias e mecanismos (Anzellottietal., 2011). Do ponto de vista cultural, o conceito de autoscopia está incorporado a um grupo de crenças relacionadas à “bilocação” ou suposta capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Considerado por muitos como paranormal e não médico, postula que as pessoas podem se dissociar em dois corpos materiais, ou em um corpo material e outro com característica “etérea”. Também se relaciona à noção paranormal de hipotéticos “corpos astrais”, que ligam o corpo terrestre a uma representação astral superior, supostamente portadora de energia psíquica (Dening, & Berrios, 1994).

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Na verdade, os fenômenos autoscópicos também fazem parte da gama de disfunções relacionadas ao esquema corporal, caracterizando-se por experiências visuais ilusórias que consistem na percepção da imagem do próprio corpo no espaço, seja de um ponto de vista interno, como de um espelho, ou de um ponto de vista externo (Anzellottietal., 2011). A forma mais simples de fenômeno autoscópico envolve a sensação de “presença” de alguém próximo sem, contudo, que tal presença seja vista. No denominado efeito doppelganger1 o sujeito o percebe como sendo o próprio corpo, um “duplo” também visualmente. O corpo reduplicado é visto ou sua presença é “sentida” a uma distância específica do próprio corpo, uma distância

1. doppelgänger é uma palavra advinda da junção em alemão de doppel que significa “duplo”, “réplica” ou “duplicata”, e ganger, que significa “andante”, “caminhante” ou “aquele que vai”.

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frequentemente estável dentro de um determinado episódio (Brugger, 2002). A mente literária geralmente retrata o doppelgänger, como um ser que é “parte eu”, “parte outro”, como um presságio de morte ou calamidade. Às vezes este é a projeção visível e tangível de uma consciência culpada, que se torna cada vez mais intolerável, até que, por fim, a vítima ataca violentamente seu duplo e descobre que atacou a si mesma. Às vezes o duplo é invisível e intangível, mas ainda assim evidencia sua existência (por exemplo, bebendo a água que o sujeito coloca à noite na moringa) (Sacks, 2013). As experiências autoscópicas podem ser classificadas principalmente em quatro tipos distintos: sensação de presença, alucinação autoscópica, heautoscopia e experiência extracorpórea (Brugger, 2002).

Sensação de “Presença” Nesta sensação, nenhuma impressão visual está envolvida, mas frequentemente a presença é sentida “à margem da visão” e pode ser relatada por pessoas saudáveis em condições de privação sensorial ou isolamento social. Frequentemente são relatadas sensações referentes a “presenças fantasmagóricas” (como se alguém ou alguma coisa “invisível” estivesse muito próximo). É comumente relatada por pessoas submetidas a níveis intensos de stress como montanhistas, exploradores, sobreviventes e após a perda de alguém muito próximo, como o cônjuge por exemplo. Também podem estar presentes em situações de exaustão e privação de oxigênio e em pessoas acometidas por doenças psiquiátricas ou neurológicas (Anzellottietal., 2011; Blankeetal., 2014).

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Pessoas perfeitamente normais por vezes viram-se para surpreender quem a espreita de maneira bem próxima, mas não veem ninguém. Embora não experimentem ver a “presença”, estão convencidos desta, podendo inclusive descrever sua localização espacial com muita precisão (Blanke, Arzy, & Landis, 2008). Apesar de ser comumente associada à presença real de algo sobrenatural, uma situação bastante comum que pode acarretar tal sensação é a “paralisia do sono”, fenômeno comum, também presente

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em pessoas normais e caracterizado por paralisia motora enquanto o sistema sensorial está ativo. Tal condição comumente inclui de maneira simultânea a presença de alucinações, denominadas hipnagógicas ou hipnopômpicas (se no início ou final do sono, respectivamente), as quais envolvem além de ver e ouvir, também sentir uma presença intrusa e ameaçadora (Jalal, & Ramachandran, 2014). A paralisia do sono vem sendo documentada há séculos. Em 1664, o médico holandês Isbrand Van Diemerbroeck (1609-1674) publicou uma coleção de histórias de casos, sendo que uma das quais, com o título Of the Night Mare (“Do Pesadelo”), descreve as experiências noturnas de uma mulher de 50 anos, relatando os sintomas clássicos da paralisia do sono acompanhados por alucinações hipnagógicas (Kompanje, 2008): . . . durante a noite, quando estava se recompondo para dormir, às vezes acreditava que o diabo estava sobre ela e a segurava, às vezes que era sufocada por um grande cachorro ou ladrão deitado sobre o peito, para que mal pudesse falar ou respirar e quando ela se esforçou para jogar fora a carga, ela não foi capaz de agitar seus membros. E enquanto ela estava naquele conflito, às vezes com grande dificuldade ela acordava . . .. Essa afecção é denominada íncubus ou o night-mare2 que é um interceptador do movimento da voz e da respiração, com um sonho falso de algo repousando pesadamente sobre o peito, impedindo o livre influxo dos espíritos para os nervos . . ..

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O medo associa-se a tais alucinações, notadamente com a sensação de presença detectada e contribuem para a elaboração de outras alucinações, em especial as que envolvem experiências visuais (Cheyne, Newby-Clark, & Rueffer, 1999). Neste ponto, a “presença intrusa” pode assumir formas diversas, podendo-se citar os inúmeros relatos de pessoas que descrevem de maneira sincera e altamente emotiva a experiência que tiveram ao serem sequestradas por seres extraterrestres. Muitos destes relatos, além de absolutamente sinceros, apresentam em comum o sentimento aterrorizante de que

2. Mare vem do inglês antigo maere que significa gnomo ou íncubo (em português sonho aflitivo que produz sensação opressiva; pesadelo). Acreditava-se que o tal maere (gnomo) atacava os seres humanos, enquanto eles estavam dormindo, sentavam-se em seus peitos e produziam uma sensação de sufocação, dificultando o sono (Barbosa, 2010).

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o sujeito encontra-se totalmente paralisado enquanto determinadas criaturas providenciam para que este flutue no ar enquanto ascende em direção a determinada espaçonave (Sagan, 2006). No entanto, embora sem dúvida alguma particularmente aterrorizadoras, as sensações de presenças intrusivas são explicadas pela neurociência e podem ser recriadas por intermédio de estimulação elétrica na JTP, mesma região que pode participar da somatoparafrenia e outras alucinações. Ao estudarem o caso de uma jovem que estava sendo avaliada para tratamento de epilepsia, com eletrodos colocados sobre a superfície cortical, Arzy, Seeck, Ortigue, Spinelli e Blanke (2006) verificaram que, após estimulação elétrica na JTP esquerda, a paciente relatava tais presenças. Estimulações leves com a jovem deitada propiciavam a sensação de que havia alguém deitado atrás dela. Estímulos mais intensos propiciavam a sensação mais detalhada de que a presença era de alguém jovem, porém de sexo inderterminado e também deitado na mesma posição. A repetição do estímulo com ela sentada com os joelhos entre os braços provocava a sensação de que um “homem” estava sentado atrás dela com seus braços ao seu redor. Procedendo em seguida a leitura de um texto, o “homem” desta vez colocava-se a seu lado direito, mas desta vez provocando a sensação de que a presença tinha intenções agressivas. Os autores concluíram que a falta de integração multissensorial e/ou sensório-motora na JTP, devido à estimulação elétrica, pode levar a uma ilusão do próprio corpo como sendo de outra pessoa no espaço extrapessoal próximo. Embora a paciente estivesse ciente da semelhança entre seus próprios traços posturais e posicionais e os da pessoa ilusória, ela não reconheceu que essa pessoa era uma ilusão de seu próprio corpo, de maneira semelhante ao que ocorre com muitos pacientes esquizofrênicos.

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Além da JTP, aparentemente outras regiões encefálicas também apresentam função no processo de integração multissensorial. Tsakiris, Hesse, Boy, Haggard e Fink (2007) verificaram atividade da ínsula posterior na integração de informações multissensoriais para decidir sobre a atribuição de partes do corpo que lhe pertencem, mesmo na ausência de informações eferentes (motoras). O estudo de Blanke et al. (2014) mostrou que lesões no córtex insular e especialmente no córtex frontoparietal também estão associadas à má-interpretação da fonte e identidade dos sinais sensório-

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motores (táteis, proprioceptivos e motores) do próprio corpo, o que pode gerar a falsa sensação de presença. Neste mesmo estudo, os autores também induziram tais sensações em pessoas normais por intermédio de um mecanismo robótico que gerou conflitos sensóriomotores nos participantes, permitindo induzir nestes a mesma sensação de presença observada nos pacientes. Outros estudos, porém, caracterizam a sensação de presença por motivos diferentes dos observados na autoscopia, como o caso descrito por Picard (2010), no qual uma paciente, com foco epilético no hemisfério esquerdo, relatou sentir múltiplas presenças inexistentes, porém reconhecendo estas como “membros da família”. Como o caso pareceu contradizer a hipótese de fenômeno autoscópico que envolve a “reduplicação neural do próprio corpo”, a autora propôs que poderia tratar-se de um tipo de alucinação diferente da autoscopia. A parestesia lateralizada no hemicorpo direito juntamente com dados neurorradiológicos indicou provável origem na ínsula esquerda, que também poderia participar do componente emocional relacionado a tais sensações. A sensação de presença também pode ocorrer em doenças neurodegenerativas, como a Doença de Parkinson e também parece não ir ao encontro do que é observado em situações de autoscopia. Em muitos casos a sensação de presença foi identificada como a de um parente preciso, iniciando ocasionalmente quando este parente deixa a presença do paciente, indicando um gatilho externo. Além disso, embora a presença pudesse ser sentida nas proximidades do paciente, às vezes era localizada em outro cômodo ou fora da casa. Finalmente, em um caso a presença sentida era de um cão, o que dificilmente é consistente com um “eu ilusório” (Fenelon, Soulas, Langavant, Trinkler, & Bachoud-Levi, 2011).

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Pode-se, portanto, inferir que atividades anômalas de áreas neurais que estejam associadas à autoconsciência poderiam responder pela falsa sensação de presença. Sabendo-se que a JTP, ínsula e córtex frontoparietal integram sinais corporais multissensoriais e são considerados como locais neurais da autoconsciência corporal; aparentemente a sensação de presença de origem autoscópica pode ser consequência de alterações em tais estruturas, acarretando uma percepção errônea da fonte e identidade dos sinais do próprio corpo (Case, Solcà, Blanke, & Faivre, 2020). Contudo, em determinadas

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disfunções neuropatológicas é possível que tais sensações possam também derivar de fontes diferentes das observadas na autoscopia.

Alucinação Autoscópica Durante uma alucinação autoscópica (AH), a pessoa experimenta ver seu “outro corpo” ou “duplo” no espaço extracorpóreo, mas sem a sensação de “sair do próprio corpo” (ou desencarnação). Os indivíduos com AH experimentam ver o mundo através de sua perspectiva visuoespacial habitual e experimentam seu self, ou “centro de consciência” dentro de seus corpos físicos (Mohr, & Blanke, 2005). Este tipo de alucinação também denominada “alucinação em espelho” (do inglês mirror-hallucination) geralmente apresenta duração de apenas alguns minutos e consiste na percepção visual exata de uma imagem de si mesmo como visto num espelho, porém não localizando-se como na posição do outro corpo ilusório (Anzellottietal., 2011). A auto-identificação, a auto-localização e a perspectiva da primeira pessoa permanecem centradas no corpo físico, com o corpo alucinatório frequentemente experimentado de maneira invertida, como no espelho. Considerando a relação da AH com lesões em áreas corticais associadas a aspectos visuais, a alucinação é vista do lado do campo visual deficiente, oposto ao do lado da lesão encefálica (Heydrich, & Blanke, 2013).

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Brugger (2002), cita o caso de um homem de 41 anos que, oito dias depois de ficar cego em conseqüência de um tumor de hipófise, repentinamente notou um rosto em sua frente que olhava para ele a uma distância estimada de 60-100 cm. A experiência foi inicialmente assustadora, mas se acalmou ao reconhecer que o que via era a imagem do próprio rosto. Em uma inspeção mais minuciosa, notou que sempre via o rosto de frente e que este imitava instantaneamente suas próprias expressões faciais. O paciente não tinha dúvidas sobre a “qualidade do espelho” da alucinação, enfatizando que quaisquer movimentos faciais produzidos “experimentalmente” foram copiados em tempo real, “exatamente como no espelho”. Zamboni, Budriesi e Nichelli (2005), descrevem o caso de uma paciente de 30 anos que sofreu hemorragia nos polos occipitais, estendendo-se à junção parieto-occipital direita por complicações

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cardiovasculares decorrentes de eclampsia. Três meses após a ocorrência, a paciente relatou a visão de uma imagem como se estivesse olhando para um espelho que estava constantemente em frente a ela, à distância de cerca de um metro. A imagem era transparente e acompanhava sua visão de tal maneira que aparecia deitada no chão se olhasse para baixo ou no teto se olhasse para cima. Usualmente apresentava apenas cabeça e ombros, mas também o restante do corpo se a paciente a explorasse movendo o olhar para baixo, além de vestir-se exatamente como ela. Desaparecia quando fechava os olhos e progressivamente desapareceu por completo após três meses. O exame neurológico durante o período de AH mostrou fraqueza do membro inferior direito, heminegligência visuo-espacial esquerda3, ataxia óptica4, apraxia ocular5, percepção de profundidade prejudicada, agnosia6 grave para objetos, prosopagnosia7 e alexia8. Em relato de caso, Joshi, Thapa e Shakya (2017) verificaram a presença de AH no estado de abstinência de álcool, onde o indivíduo enquanto consciente se viu como se olhasse para um espelho por cerca de 3 segundos, durante o período do amanhecer e do anoitecer. O caso indicou possível associação entre autoscopia e a síndrome de dependência de álcool.

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Malik, Mehra e Jangra (2019) descrevem o caso de uma pessoa jovem do sexo feminino que, dentre outros sintomas psiquiátricos como alucinação auditiva e ilusão de perseguição, eventualmente apresentava medo, apontando os dedos em direção à parede. Ao ser perguntada a razão disso, ela dizia ver uma cópia sua à sua frente, a cerca de um metro e meio de distância de seu corpo. Ela descreveu a imagem com características faciais semelhantes à sua, como cor e estilo de cabelo, dizendo “é outro eu”. Ela dizia que seu duplo aparecia nu para ela e era como sua “imagem no espelho”. Posteriormente,

3. Heminegligência – Falta de atenção aos estímulos advindos do lado oposto ao da lesão encefálica, com falha em relatar, responder ou orientar-se a estímulos significativos. A disfunção advém de lesões que atingem córtex parietal direito e giro supramarginal, estendendo-se a áreas subcorticais. 4. Ataxia Óptica – Incapacidade de alcançar corretamente objetos guiados pela visão. 5. Apraxia Ocular – Ausência ou defeito no movimento ocular controlado, voluntário e intencional. 6. Agnosia – Incapacidade de identificação. 7. Prosopagnosia – Incapacidade de identificação de rostos. 8. Alexia – Incapacidade de leitura (Koob, Moal, & Thompson, 2010)

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foi realizado diagnóstico de esquizofrenia e após alguns meses com tratamento farmacológico observou-se melhora de 70 a 80%. A presença de AH está associada com lesões em áreas encefálicas mais posteriores, nas regiões corticais occipitoparietal e occipto-temporal (Blanke, & Mohr, 2005). Considerando a normalidade da autoconsciência corporal durante as alucinações, os autores especulam se estas são caracterizadas por um distúrbio da representação do próprio corpo, causada por danos às vias visuais ventrais, associadas com a percepção e reconhecimento do corpo humano, partes do corpo e faces (Heydrich, & Blanke, 2013). Jonas et al. (2014) descrevem os casos de dois pacientes de neurocirurgia por conta de epilepsia, o primeiro do sexo masculino e 46 anos e a segunda uma mulher de 24 anos. Nenhum dos pacientes relatava AH no decorrer de suas crises e foram submetidos à delineação dos focos epiléticos por intermédio de implantação de eletrodos no lobo temporal medial do paciente 1 e ínsula posterior do paciente 2. Foram realizadas estimulações intracerebrais visando localizar a zona epilética sem que os pacientes soubessem quando a estimulação iniciava ou terminava. Ao iniciar a estimulação na parte mais lateral do sulco occiptoparietal direito do primeiro paciente, este imediatamente ralatou estar vendo sua própria face e busto no campo visual esquerdo. Se a estimulação ocorresse fora deste local específico, o paciente relatava alucinações com faces desconhecidas. A estimulação também no sulco occiptoparietal direito da paciente 2 propiciou alucinações semelhantes, em que a paciente relatou estar vendo sua própria imagem, como num espelho.

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Os autores concluíram que a junção occipitoparietal medial, região que apresenta papel central em várias operações de autoprocessamento e especialmente no reconhecimento de faces, mais particularmente da própria face, também é fundamental na geração de AH. Tal representação visual do próprio rosto pode ser útil para processos de reconhecimento de face e cognição social que envolvem julgamento de semelhança facial com outras pessoas. Também foram relatadas AHs em desordens neurológicas (como epilepsia, enxaqueca, delírio, tumor cerebral, isquemia e infecção), no contexto de desordens psiquiátricas (como desordens psicóticas, desordens do humor, distúrbios de ansiedade e desordem de

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identidade dissociativa), bem como durante os estados hipnagógicos ou hipnopômpicos do sono. Além disso, existem alguns relatos de casos de AHs que se manifestam no campo hemianópsico na hemianopsia (perda parcial ou total de metade do campo visual de um ou ambos os olhos) (Blom, 2010). É possivel, portanto, inferir que AHs tratam-se principalmente de fenômenos visuais (com componentes multissensoriais), geralmente de pouca duração (alguns segundos ou minutos) e podendo ocorrer repetidamente, porém sem alteração no self corporal, em que um “eu verdadeiro” “reside” no “meu” corpo e percebe o mundo da perspectiva desse corpo (Caseetal., 2020).

Heautoscopia A heautoscopia está localizada em algum ponto entre a autoscopia e a experiência fora do corpo. A principal característica desse fenômeno é alternância entre perceber a própria imagem corporal no espaço extracorpóreo da perspectiva do corpo interno e perceber o próprio corpo físico da perspectiva do duplo extracorpóreo (Hoepneretal., 2012).

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Trata-se de um fenômeno autoscópico caracterizado por forte distúrbio da auto-consciência corporal, incluindo alterações na auto-identificação, alterações emocionais e afinidade com o corpo autoscópico, frequentemente associado a alterações na perspectiva da primeira pessoa e na auto-localização (Heydrich, & Blanke, 2013). Uma alucinação autoscópica ou “em espelho” envolve a reduplicação puramente visual das próprias características, enquanto a heautoscopia também envolve a projeção de aspectos somestésicos e motores na figura alucinada (Brugger, 2005). A “posse do corpo” é definida como uma experiência imediata e contínua de que nosso corpo pertence a nós, ao passo que a auto-localização é definida como a experiência na qual o self (ou personificação) está localizado em determinada posição no espaço. Neste tipo de alucinação, o paciente observa um “duplo” de si mesmo no espaço extra pessoal. Todavia, este “duplo” não se trata de uma mera imagem ou alucinação visual, pois o self pode ser experimentado como presente na posição do corpo físico (quadro

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de referência centrado no corpo) e, simultaneamente ou em rápida alternância, na posição do corpo duplicado no espaço extra pessoal (Lopez, & Blanke, 2007). Martínez-Hortaetal. (2020), em estudo de caso com paciente jovem (31 anos), portador de mutação genética relacionada à doença de Huntington, descrevem a presença de sintomas psiquiátricos associados à autoscopia (iniciando com a sensação de presença e daí progredindo para experiência extracorpórea e heautoscopia), antes do início de sintomas motores. O paciente relata que em diversas ocasiões, quando em relação sexual com sua parceira, foi “expulso de-repente” de seu corpo por uma terceira pessoa, que de fato era ele mesmo, mas a quem referiu por “outro”. Seu self estava localizado em uma perspectiva visuo-espacial elevada da qual foi capaz de olhar para o “outro”, sendo progressivamente mais agressivo durante a relação sexual. Desta perspectiva extracorporal foi incapaz de retornar a seu corpo físico, sendo preenchido pelo sentimento extremamente frustrante de observar sua parceira tendo relações sexuais com “outro homem”. A experiência foi finalizada drasticamente com sua parceira gritando e perguntando porque ele estava sendo tão agressivo.

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Brugger, Agosti, Regard, Wieser e Landis (1994) descrevem o caso de um sujeito que aos 15 anos começou a apresentar sinais de epilepsia com crises parciais complexas, cujos exames mostraram foco epileptogênico no lobo temporal esquerdo. Pela manhã o paciente sentiu-se tonto e virando-se, ele se viu ainda deitado na cama. Ele ficou zangado com “esse cara que eu sabia que era eu mesmo e que não acordava e, portanto, arriscava chegar atrasado no trabalho”. Ele tentou acordar o corpo na cama primeiro gritando com ele, depois tentando sacudi-lo e pulando sobre ele repetidamente. O corpo deitado não mostrou reação. Só então o paciente começou a ficar intrigado com sua dupla existência e a ficar cada vez mais assustado com o fato de não poder mais dizer qual dos dois realmente era. Várias vezes sua consciência corporal passou do que estava de pé para o que ainda estava deitado na cama; quando estava deitado na cama, sentia-se bastante acordado, mas completamente paralisado e assustado pela figura de si mesmo curvando-se e batendo nele. Sua única intenção era tornar-se uma única pessoa novamente e, olhando pela janela (de onde ainda podia ver seu corpo deitado na cama), ele de repente decidiu pular “para impedir a intolerável sensação de

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se dividir em dois”. Ao mesmo tempo, ele esperava que “essa ação realmente desesperada amedrontasse a pessoa na cama e o instasse a se fundir comigo novamente”. A próxima coisa que ele lembra é “acordar com dor no hospital”. Modelos explicativos para a heautoscopia sugerem um distúrbio da integração de sinais multissensoriais, incluindo também sinais interoceptivos (viscerais) e motores. É importante ressaltar que o “outro” é frequentemente relatado como ofensivo e agressivo, em alguns casos dando a impressão de progressivamente se tornar mais autônomo e, eventualmente, controlar e interferir nas ações e movimentos do paciente. Também há associação entre a heautoscopia e episódios dramáticos que têm um profundo impacto emocional e, em alguns casos, tem sido associada a idéias de referência, paranóia e suicídio (Anzellottietal., 2011). Segundo Lopez e Blanke (2007), uma integração central coerente de informações sensoriais e motoras é necessária para o processamento acurado do próprio corpo, self e “autoconsciência”. No entanto, tal integração está anormal em sujeitos que apresentam os fenômenos de heautoscopia e de “experiência extracorpórea”, sugerindo uma integração multissensorial deficiente em relação aos planos de referências de tais pacientes. Segundo os autores, sinais vestibulares que proveem concomitantemente informações sobre a posição do corpo e movimento deste no espaço e que apresentam papel-chave na integração de sinais da gravidade e referência de localização do corpo, não estão funcionando de maneira adequada em tais pacientes.

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A presença de disfunções não é, contudo, um pré-requisito para que alguém possa experimentar o fenômeno da heautoscopia, como demonstrado no estudo de Iontaetal. (2011) que, utilizando tecnologia robótica em sujeitos saudáveis, aliada a determinadas simulações, criaram nos participantes o sentimento de ser uma entidade localizada em outra posição no espaço e de perceber o mundo a partir dessa posição e perspectiva, alterando sua auto-localização. Aymerich-Franch, Petit, Ganesh e Kheddar (2016) foram mais além, ao utilizar realidade virtual juntamente com um robô humanoide, recriando uma experiência de reduplicação do próprio corpo, percebido simultaneamente no corpo físico e no corpo do robô. Os

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voluntários apresentaram uma ilusão que se assemelha fortemente à heautoscopia, sugerindo que uma mente humana saudável também é capaz de se bilocar em dois corpos diferentes simultaneamente. Além de propiciar a ilusão de mudança na autolocalização e perspectiva em sujeitos saudáveis, o estudo de Iontaetal. (2011) também os comparou com pacientes que apresentavam experiências autoscópicas. Por intermédio de Imagens por Ressonância Magnética Funcional (fMRI) verificaram quais áreas encefálicas respondiam pelas experiências relatadas em um ou outro caso. Assim como observado nos estudos de Arzyetal. (2006) e Blankeetal. (2014), em relação à “sensação de presença”, as mudanças subjetivas verificadas sobre a localização e perspectiva do self foram refletidas na atividade da JTP bilateralmente. Os autores observaram ligação causal entre o dano desta mesma área no grupo de pacientes neurológicos, fornecendo evidências de que esta área também codifica a auto-localização, refletindo um dos sentimentos subjetivos mais fundamentais dos seres humanos: o sentimento de ser uma entidade localizada em certa posição no espaço, de onde percebe o mundo. >

Uma forma simples de se manipular a sensação de ter um corpo cujas partes lhe pertencem é por meio da denominada “ilusão da mão de borracha”, na qual participantes experimentam a sensação de posse de uma mão artificial (como se fosse sua própria mão), quando a mão real é escondida de seu campo de visão e substituída por uma falsa mão de borracha. O fenômeno ocorre quando tanto a mão real escondida quanto a mão falsa visível são tocadas da mesma maneira e de forma sincronizada, propiciando a ilusão de que a mão de borracha é na verdade a mão verdadeira. Quando a ilusão é produzida, observa-se (dentre outras áreas) a ativação da JTP (Wawrzyniak, Klingbeil, Zeller, Saur, & Classen, 2018). Considerando a função desta área na integração multissensorial (Kheradmand, & Winnick, 2017), a falha em integrar aspectos mecanorreceptivos e visuais (por exemplo estimular a mão real e a mão de borracha de maneira não sincronizada), pode causar a inabilidade em incorporar a mão de borracha na representação do corpo, tal como é observado em pacientes com determinadas lesões encefálicas (Wawrzyniaketal., 2018). Para criar uma representação central do próprio corpo, o cérebro deve integrar e pesar as evidências de diferentes fontes sensoriais

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(como informações visuais, táteis, proprioceptivas e vestibulares) e chegar rapidamente a uma decisão. Isso envolve mecanismos para impor coerência às informações de diferentes fontes sensoriais e mecanismos para diminuir incoerências para evitar incertezas. Assim, o cérebro deve criar representações sensoriais-centrais do movimento e posição do corpo e sua posição no espaço extrapessoal, mesmo que isso exija a inibição temporária de entradas discrepantes. Por exemplo, entradas proprioceptivas discrepantes podem ser descartadas (e consideradas como ruído) se entradas visuais, táteis e vestibulares sobre a posição e o movimento do próprio corpo concordarem entre si (Melzack, 1990). Além da JTP, o cortex insular posterior também trata-se de uma área multimodal no que diz respeito à integração de diversas informações sensoriais, incluindo sinais somatossensoriais, visuais, auditivos e vestibulares, além de relacionar-se com funções motoras e límbicas ou emocionais (Flynn, Benson, & Ardilas, 1999). De fato, Heydrich e Blanke (2013) identificaram que danos no córtex insular posterior esquerdo pode relacionar-se ao fenômeno da heautoscopia. Aparentemente a falta de integração entre os sinais corporais exteroceptivos somatossensoriais e visuais, juntamente com sinais viscerais e emocionais resulta numa auto-identificação errônea dos pacientes com heautoscopia, aumentando a afinidade emocional destes com o “corpo autoscópico”.

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A atividade de áreas corticais relacionadas à integração multissensorial é suficiente para redefinir os limites do corpo e incorporação de até mesmo um espaço vazio, mesmo que a informação visual contradiga diretamente a presença de um membro físico (Guterstam, Gentile, & Ehrsson, 2013), de maneira semelhante com o que ocorre no fenômeno do membro fantasma. A sensação vívida de presença de determinado membro após sua amputação (podendo também ocorrer após amputação de outras partes inervadas do corpo, tais como mama ou pênis), após a destruição de suas raízes sensoriais ou mesmo após secção completa da medula espinhal (que pode levar à sensação de um corpo fantasma abaixo do nível da lesão) é relativamente comum. As experiências do membro fantasma apresentam-se como sensações reais, considerando que são produzidas pelos mesmos processos

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encefálicos (ou redes neurais) que fundamentam a experiência do corpo quando este está intacto (Melzack, 1990). Embora as experiências corporais envolvam um acréscimo à faixa normal de percepção, o ganho perceptivo parece apresentar mais problemas do que sua perda, considerando que o primeiro é mais propenso a ser envolto no manto do paranormal do que o segundo. Em terminologia mais convencional, existe uma maior disponibilidade para relacionar a perda de função à perda de estrutura do que interpretar novas funções para as quais não há equivalente estrutural evidente (Wade, 2009). Ambos os conjuntos de fenômenos podem ser interpretados em termos sobrenaturais, mas os membros fantasmas provaram ser mais passíveis de incorporação no corpo da ciência normal. Caixas de espelhos têm sido empregadas para fornecer estimulação visual que poderia corresponder àquela decorrente da falta de uma parte do corpo. O deslocamento visual no espelho de todo o corpo apresenta semelhanças com a autoscopia e, portanto, pode fornecer uma ponte conceitual e experimental entre membros fantasmas e fenômenos autoscópicos (Wade, 2009).

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Experiência Extracorpórea Uma das crenças metafísicas sobrenaturais mais difundidas é a de uma alma que consiste em um self essencial e um self fundamental que transcende o corpo físico e sua explicação pelas ciências naturais (Cheyne, & Girard, 2009). A maioria das pessoas já ouviu falar do termo “experiência de quase-morte” (EQM), seja em programas de TV ou reportagens ou porque já vivenciou o fenômeno em algum momento da vida. Dentre outros sintomas (que serão tratados mais adiante em tópico específico), aquele que é relatado com bastante frequência é a experiência extracorpórea (EEC), considerada como sendo a sensação de sair do corpo físico e em muitos casos vendo a si mesmo de um ponto de vista situado acima deste. Assim, como outros fenômenos autoscópicos, a EEC relacionase com distúrbios da percepção e cognição do corpo ou imagem corporal que depende de informações proprioceptivas, táteis, visuais

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e vestibulares, bem como, em sua integração com informações sensoriais do espaço extrapessoal (BLANKEetal., 2004). Segundo Sacks (2013) há séculos existem histórias sobre pessoas que passaram por EECs, mas o termo só foi introduzido nos anos 60 pela psicóloga de Oxford Celia Green, que examinou sistematicamente relatos feitos por mais de quatrocentas pessoas que as vivenciaram. Embora a EEC possa fazer parte da EQM, na maioria das vezes não requer que o sujeito esteja à beira da morte para ser experimentada. Um dos primeiros registros de EEC ocorreu durante craniotomia acordada9, realizada pelo neurocirurgião Wilder Penfield. Durante o procedimento, um paciente com histórico de epilepsia habitual experimentou uma EEC no momento em que o giro temporal superior direito foi estimulado eletricamente. Na ocasião, o paciente registrou a sensação como se estivesse flutuando para longe de si mesmo, exclamando “Oh meu Deus! Estou deixando meu corpo!” (Penfield, 1955). A experiência de Penfield em neurocirurgia foi repetida apenas cerca de 70 anos depois quando, num procedimento de craniotomia realizada também com o paciente acordado; este reportou a sensação de EEC após estímulo realizado na JTP esquerda (Bos, Spoor, Smits, Schouten, & Vincent, 2016).

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Contudo, o fenômeno da EEC também pode ser induzido ao se utilizar determinados procedimentos não invasivos que possam alterar as informações sensoriais, provocando divergências entre as informações que chegam ao sistema nervoso. Sinais multissensoriais sincronizados, porém manipulados por espelhos, vídeos ou realidade virtual, de forma a propiciar conflitos localizacionais, podem induzir uma mente humana saudável a perceber sua auto-localização fora das fronteiras corporais, produzindo uma ilusão que se assemelha a uma EEC (Blanke, & Metzinger, 2009; Ionta et al., 2011; Bourdin, Barberia, Oliva, & Slater, 2017; Guterstam, Björnsdotter, Gentile, & Ehrsson, 2015).

9. Craniotomia trata-se de procedimento cirúrgico em que um retalho ósseo do crânio é temporariamente removido para acesso ao cérebro. A craniotomia acordada é usada principalmente para mapeamento e ressecção de lesões em áreas cerebrais de importância vital (áreas motoras e de linguagem), nas quais a imagem não é suficientemente sensível (Zhang, & Gelb, 2018).

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Utilizando a hipnose, Faccoetal. (2019) também obtiveram um método não-invasivo para indução da EEC de maneira controlada. Os sujeitos que participaram do experimento relataram que claramente haviam deixado o corpo na cadeira e flutuaram perto do teto da sala, com a consciência neste mesmo local, mostrando várias características fenomenológicas das EECs espontâneas. Utilizando análise de ondas de eletroencefalograma os autores também observaram papel-chave na atividade da JTP em sua indução. Considerando que a JTP também apresenta importante papel no processamento de sensações vestibulares (Bünning, & Blanke, 2005; Blanke, & Arzy, 2005), alterações no funcionamento dessa área, seja por lesão, drogas ou estados neurais espontâneos como sono REM, poderiam gerar experiências corporais vestibulares anômalas, como alucinações de flutuação, de voo e motoras. Se suficientemente intensas, tais alterações também podem evocar sensações mais elaboradas como de “corpo desencarnado”, que por sua vez preparam o cenário para a experiência autoscópica de EEC, na qual pode-se ver o corpo físico de um ponto de vista externo (Cheyne, & Girard, 2009). >

Conforme indicam Lopez, Halje e Blanke (2008), a EEC está fortemente associada a alterações funcionais na região central do córtex vestibular (“córtex vestibular parieto-insular”). Logo, estimulações vestibulares em pessoas normais podem ser um meio eficiente de alterar a integração multissensorial com objetivo de investigar a base neural da sensação de posse do próprio corpo. Lopez e Elzière (2018) mostram o papel de distúrbios vestibulares periféricos como fatores desencadeantes da EEC, a qual pode surgir a partir de uma combinação de incoerência perceptiva (devido a sinais vestibulares conflitantes com outros sinais sensoriais sobre orientação e movimento do corpo), com fatores psicológicos (despersonalização, desrealização, depressão e ansiedade) e neurológicos (enxaqueca). Outras alterações neurológicas podem induzir a EEC em certas situações, conforme demonstrado por Blanke, Landis, Spinelli e Seeck (2004), ao estudar pacientes epiléticos que relatavam experiências autoscópicas, principalmente EEC. Durante as crises, ou no decorrer de avaliação por eletroestimulação, os autores verificaram a presença de dano ou disfunção cerebral localizados na JTP. Os resultados sugeriram que os processos de percepção e cognição do corpo e a criação inconsciente de representações centrais deste são pré-

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requisitos para uma ação rápida e eficaz com o meio ambiente. Havendo dados ambíguos de diferentes sistemas sensoriais segue-se a experiência intrigante de ver o próprio corpo em uma posição que não coincide com aquela que é sentida. É, contudo, possível que outras áreas encefálicas também apresentem importantes interconexões com a JTP e com isso possam também participar do fenômeno da EEC, conforme indica Hiromitsu, Shinoura, Yamada e Midorikawa (2020), em estudo de caso onde uma paciente acometida por tumor no córtex cingulado posterior (PCC) apresentou vários episódios de EEC. Os episódios foram abolidos após neurocirurgia para extirpação do tumor, sugerindo que o PCC contribui para a auto-localização, dependendo da perspectiva visual. Os resultados vão ao encontro do estudo de Guterstametal. (2015), o qual sugere papel-chave do PCC na integração de representações neurais da auto-localização e propriedade do corpo. Yu et al. (2018), estudando o caso de uma adolescente com epilepsia intratável, verificaram a ocorrência de EEC ao se proceder estimulação do córtex insular anterior esquerdo por eletrodos intracranianos. Após a destruição de vários locais precisamente localizados nesta área via termocoagulação por radiofrequência, as crises da paciente desapareceram e a EEC não mais pode ser reproduzida, mesmo estimulando esses locais repetidamente. Os autores sugerem que o envolvimento do córtex insular anterior na EEC deve-se à função desta área na integração de sinais multissensoriais e seu importante papel na autoconsciência, além do JTP.

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O estudo de Ridder, Laere, Dupont, Menovsky e Heyning (2007) mostra o advento de EEC mediado pela estimulação da parte posterior do giro temporal superior direito em paciente com eletrodos implantados nesta área para tratamento de zumbido. Exames de imagem mostraram ativação na JTP (mais especificamente nos giros angular e supramarginal, que fazem parte desta área). O uso abusivo de certas drogas, tais como maconha, LSD e principalmente a ketamina, também classicamente relacionam-se com o advento de EEC e outros fenômenos relacionados (Wilkins, Girard, & Cheyne, 2011). Além disso, o uso tanto da maconha quanto da ketamina são considerados como modelos de indução de sintomas

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de esquizofrenia (Fletcher, & Honey, 2006), dentre os quais é possível a manifestação de alucinações autoscópicas (Maliketal., 2019). Finalmente, após o exposto é possível afirmar que, de acordo com estudos de vários grupos de pesquisa, a EEC juntamente com os demais fenômenos autoscópicos apresentam-se muito bem fundamentados em alterações (patológicas ou não) da atividade encefálica, notadamente em se tratando da atividade da JTP e outras áreas adjacentes e/ou que influenciem sua função. A importância destas regiões encefálicas para o processamento e integração de múltiplas modalidades sensoriais, que a ela convergem, gerando a partir daí uma percepção coerente da autolocalização e espaço extrapessoal, parece ser indiscutível. É provável que algumas áreas encefálicas envolvidas nos fenômenos autoscópicos também sejam ativadas na denominada “experiência de quase-morte”, que será tratada a seguir. Contudo, apesar desta geralmente apresentar a EEC dentre os fenômenos observados, sua natureza é heterogênea e de mais difícil explicação face à complexidade das sensações relatadas por aqueles que a vivenciaram.

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Experiência de Quase-Morte O termo “experiência de quase-morte” (EQM) foi introduzido pelo médico e filósofo Raymond A. Moody, autor do livro Live after life (“A vida depois da vida” na edição em português), em 1975. O livro acabou fazendo muito sucesso, mostrando o grande desejo pela existência de uma “outra vida”, que viria após a vida terrena. Considerando a formação do autor na área médica e psicológica, o fato da ciência não poder explicar os fenômenos relatados, seria de certa maneira um aval para a realidade daquilo que é descrito (Kasten, & Geier, 2014). Assim, não apenas este, mas muitos livros populares sobre EQM tornaram-se best-sellers, provavelmente porque um grande número de pessoas quer acreditar que a imortalidade da “alma” é cientificamente possível, tornando mais tolerável a inevitabilidade da morte (Agrillo, 2011). Certamente a tentativa da civilização moderna de explicar tudo em bases científicas enfraquece racionalmente a esperança de

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uma existência de vida, ou “alma” após a morte. Assim, de maneira simultânea, o medo do inevitável fim da vida cresce conforme avança o progresso tecnológico (Kasten, & Geier, 2014). As EQMs são caracterizadas por eventos psicológicos profundos, com elementos transcendentais e místicos, que de certa maneira transcendem o ego pessoal, incluindo inefabilidade e um sentimento de união com um princípio divino ou superior. Tais eventos ocorreriam tipicamente em indivíduos próximos à morte ou em situações de intenso perigo físico ou emocional (Greyson, 2000). Moody (1975), analisou centenas de casos de EQM, desenvolvendo uma idéia da sequência em que ocorrem os fenômenos pelos que os experimentaram. Assim, a EQM iniciaria por determinado sentimento (muito díficil de ser explicado) para em seguida ouvir alguém (o médico, por exemplo) relatar sua morte. Após o reconhecimento da situação de morte10, seguiria um sentimento de paz e quietude, percepção de um ruído (por exemplo zumbido, sinos ou música), sensação de ser puxado para um túnel escuro, sensação de sair do corpo (EEC), encontro com outros (seres espirituais), visão de luz muito brilhante, ver as memórias de experiências que teve na vida passar diante de si (em ordem cronológica ou não) e daí alcançar um certo “limite” ou “borda” para chegar a algum lugar (uma porta, névoa, linha, cerca ou algo assim) e finalmente o “retorno de volta à vida”.

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Uma visão mais científica e sistemática do fenômeno foi examinada pelo cientista Bruce Greyson, da Universidade de Virgínia, que passou anos estudando aspectos psiquiátricos da EQM. Em uma de suas pesquisas, estudando 67 pessoas que estiveram à beira da morte e utilizando 80 manifestações características de EQM, formulou 16 questões de múltipla escolha divididas em quatro características gerais: Cognitiva (pensamentos), Afetiva (sentimentos), Paranormal (ex. EEC) e Transcedental (ex. encontro com espíritos). A partir destas questões, com pontuação variando de zero a dois, dependendo da resposta, chegando ao máximo de 32 pontos, formulou um score mínimo de sete pontos para que determinado evento possa ser 10. Apesar do “reconhecimento de que se está morto” fazer parte das EQMs, tal situação não é limitada a tais experiências, pois uma intrigante e rara síndrome denominada “Síndrome de Cotard” ou “Síndrome do Cadáver Ambulante” faz com que o sujeito acredite que está morto, mesmo que todas as evidências indiquem o contrário (Grover, Aneja, Mahajan, & Varma, 2014).

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considerado uma EQM (Greyson, 1983; Nelson, 2012). Serralta, Cony, Cembranel, Greyson e Szobot (2010) adaptaram a escala de Greyson para a cultura brasileira, mantendo equivalência semântica entre a versão original e a nacional, podendo, segundo os autores, ser utilizada para pesquisas dentro desta área no Brasil. Apesar de comuns, as EQM ainda apresentam etiologia desconhecida (Peinkhofer, Dreier, & Kondziella, 2019) e face à complexidade dos relatos, com suas implicações científicas, teológicas e filosóficas, o estudo deste fenômeno representa um dos principais desafios da neurociência moderna. Para complicar ainda mais, mesmo considerando o termo “quase morte”, as experiências também podem ocorrer a pessoas que, embora possam estar doentes, não estão nem perto da morte, considerando os dados em seus registros médicos. Muitas dessas pessoas podem temer que estejam prestes a morrer, mesmo que não estejam (Stevenson, Cook, & McClean-Rice, 1989). Para Lake (2019), não existe dicotomia real entre as chamadas verdadeiras EQMs, desencadeadas por situações de real risco à vida, e as experiências semelhantes às EQMs que não estão associadas a uma emergência médica. Ambas são provavelmente mediadas pela sobreposição de aspectos fisiológicos, psicológicos e culturais, podendo propiciar efeitos semelhantes nos valores e comportamentos que influenciam a aptidão do ponto de vista evolutivo.

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Contudo, as EQM podem ser experimentadas de forma diferente, dependendo do sujeito estar ou não realmente próximo da morte. Um estudo foi realizado em um grupo de 58 pacientes, dos quais 28 considerados tão próximos da morte que teriam morrido sem intervenção médica e 30 sem risco de morrer, embora muitos pensassem que a morte era iminente. Os pacientes de ambos os grupos relataram EQM muito semelhantes, mas os pacientes que realmente estavam perto da morte eram mais propensos a relatar uma percepção aprimorada da presença de uma luz e também um aprimoramento da capacidade cognitiva (Owens, Cook, & Stevenson, 1990). Para Lake (2019), o funcionamento cognitivo aprimorado nestes momentos poderia permitir a transmissão de valores emocionais e espirituais positivos entre parentes e entes queridos. Tais valores seriam posteriormente conservados na população, resultando em aumento da aptidão do grupo, reduzindo o medo de morrer e da morte.

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Apesar de pouco ser conhecido sobre a personalidade das pessoas que experienciaram a EQM, segundo Martial, Cassol, Charland-Verville, Merckelbach e Laureys (2018), uma das características poderia ser a propensão à fantasia. Os autores utilizaram a escala de Greyson para selecionar pessoas que passaram pela experiência, comparando aqueles que alcançaram escore mínimo de 7 pontos com outro instrumento de pesquisa para medir tal propensão, o “Questionário de Experiências Criativas” (CEQ). Desenvolvido por Merckelbach, Horselenberg e Muris (2001), o CEQ apresenta correlações substanciais com medidas de esquizotipia e dissociação, intimamente ligadas à propensão à fantasia. No entanto, segundo Martial et al. (2018), as pessoas que relataram EQMs sem risco de morte tiveram uma pontuação mais alta na propensão à fantasia quando em comparação com pessoas que relataram EQMs clássicas (com risco real de morte), indivíduos cujas experiências não atenderam aos critérios de EQM e controles correspondentes. Indivíduos que relataram EQMs clássicas demonstraram envolvimento na fantasia de forma semelhante a sujeitos controles correspondentes.

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Embora não seja num pré-requisito, é possível que a crença na transcendência espiritual e vida após a morte seja importante para que as EQM ocorram, conforme indica Chandradasa, Wijesinghe, Kuruppuarachchi e Perera (2018), que avaliaram a prevalência de EQM em hospital caracterizado pelo atendimento de pacientes seguidores de diversas religiões diferentes. A maior prevalência de EQM foi em pacientes seguidores das religiões teístas (que afirmam a crença da existência de Deus) cristianismo, islamismo e hunduismo, quando em comparação com o budismo, uma religião não teísta (que não inclui a idéia de um deus). Num estudo prospectivo, Lommel, Wees, Meyers e Elfferich, (2001) estudaram o advento de EQM em pacientes que foram submetidos a ressuscitação cardiopulmonar e que passaram pela experiência, em comparação com outros submetidos ao mesmo procedimento, sem contudo relatar EQM. Concluíram que apenas fatores médicos não poderiam explicar a ocorrência de EQM, pois, embora todos os pacientes estivessem, segundo os autores, “clinicamente mortos”, a maioria não passou pelo fenômeno. Verificaram ainda que a gravidade da crise não estava relacionada à ocorrência ou profundidade da

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experiência, não sendo também possível considerar carência de oxigenação cerebral, medicação ou fatores psicológicos como agentes causadores do fenômeno. Além disso, segundo os autores, seria impossível haver consciência e posterior memória dos fenômenos ocorridos, considerando situações em que o registro da atividade elétrica de córtex e tronco encefálico por eletroencefalografia (EEG) se mostraria horizontal (sem atividade elétrica). French (2001), contudo, contesta tal impossibilidade, afirmando que não há como saber se as EQM reportadas pelos pacientes realmente ocorreram quando não havia atividade elétrica encefálica ou se ocorreram rapidamente antes ou quando estes estavam gradualmente se recuperando do evento. Considerando que memórias falsas, relacionadas por exemplo à simples imaginação, podem ser indistinguíveis das verdadeiras (Shaw, 2016), tais fenômenos poderiam estar relacionados com memórias daquilo que na verdade não ocorreu realmente. Lake (2019) considera a possibilidade do cérebro ainda estar em funcionamento nos momentos que antecedem ou se seguem à perda de consciência, mesmo que a EEG indique o contrário. Além disso, Martens (1994) mostra que alterações da memória sob a influência de hipóxia e hipercarbia (excesso de CO2) ocorrem somente após vários minutos de isquemia cerebral. Consequentemente, a ocorrência e a recuperação de EQMs são limitadas a uma janela de tempo estreita, permitindo um certo grau de hipóxia cerebral e hipercarbia necessária para desencadear a experiência, mas com restauração oportuna do suprimento de oxigênio e diminuição do CO2 para preservar a memória de curto prazo.

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Por outro lado, é comum quem passa por uma EQM referir que não apresenta nenhuma dúvida sobre a realidade dos fenômenos vicenciados, descrevendo sua experiência como “mais real do que a realidade” ou “mais real do que qualquer outra coisa que já experimentei” (Greyson, 2014). De fato, Thonnard et al. (2013) mostram que as memórias de EQM contém mais características fenomenológicas (sensoriais e emocionais) do que as memórias de eventos reais e de coma, sugerindo que não podem ser consideradas apenas como lembranças imaginadas de eventos. Pelo contrário, suas origens fisiológicas poderiam levá-las a serem percebidas como absolutamente reais.

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Palmieri et al. (2014), investigando o fenômeno das memórias de EQM serem declaradas como sendo “mais reais que a realidade”, adotaram uma abordagem integrada. O estudo envolveu hipnose para melhorar a recuperação e diminuir erros de memória e dados de EEG com objetivo de comparar as características das memórias de EQM e seus marcadores neurais com memórias de eventos reais e imaginados. Os resultados indicaram que as memórias de EQM são diferentes das memórias autobiográficas imaginadas e muito semelhantes às memórias de eventos reais, em termos de riqueza de detalhes, informações autorreferenciais e emoções. No entanto, nada pode garantir que as memórias de EQM não possam ser de certa forma “exageradas” ou “floreadas” com o passar dos anos, de tal maneira que os relatos dos sujeitos que passaram pela experiência não apresente um viés voltado para o que a mídia coloca em relação a tais experiências. Com o objetivo de investigar este aspecto, Greyson (2007) comparou memórias de EQM quando estas aconteceram e vinte anos após o evento, concluindo que, ao contrário do esperado, relatos de EQM e, particularmente, relatos de seus efeitos positivos, mantiveram suas características, mostrando que aparentemente tais memórias parecem ser mais estáveis do que lembranças de outros eventos traumáticos.

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Em relação aos seus efeitos positivos na vida de quem a experimentou, a EQM parece ter efeitos protetores no bem-estar psicológico dos pacientes (Cant, Cooper, Chung, & O’Connor, 2012). Tais efeitos são geralmente associados a transformações positivas com maior senso de significado e interesse em alguns aspectos da vida, dentre os quais: menos medo da morte (geralmente perda completa do medo da morte); maior sensação de altruísmo como amor, empatia e responsabilidade em relação aos outros e também de estar mais conectado com outras pessoas; maior fé e interesse no significado da vida e menor materialidade (Klemenc-Ketis, 2013; Greyson, 2014), além de conversão religiosa e impacto positivo na saúde mental, inclusive por ex-detentos (Braghetta, Santana, Cordeiro, Rigonatti, & Lucchetti., 2013). Algumas pessoas podem lutar por anos para tentar entender e integrar suas experiências, mas essas são raras exceções (Greyson, 2014). Greyson e Khanna (2014) utilizaram a “escala de transformação espiritual”, desenvolvida originalmente para testar mudanças

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espirituais em pacientes após diagnóstico de câncer (Cole, Hopkins, Tisak, Steel, & Carr, 2008), para comparar a transformação espiritual entre experimentadores de EQM e controles. Quem experimentou a EQM apresentou pontuação significativamente maior, indicando maior transformação espiritual ao se comparar com os que não passaram pela experiência. Assim, o crescimento espiritual após trauma está associado não apenas à sobrevivência após o evento traumático, mas também à ocorrência e profundidade de EQMs durante o evento desencadeante. A relevância da transformação espiritual para a vida cotidiana dos indivíduos e as associações com o bem-estar sugerem que mais pesquisas nesse sentido são justificadas e que estratégias para melhorar o crescimento espiritual podem acarretar benefícios ao paciente, se incorporadas à prática terapêutica. Mas até que ponto pode-se conjeturar que todos os fenômenos observados na EQM podem ou poderão um dia ser totalmente explicados pela ciência? Como poderia ser criado um traço tão nítido de memória da EQM em situações em que os processos cerebrais funcionariam com capacidades diminuídas? Como as teorias atuais da memória podem explicar essas experiências? Seriam necessários fatores adicionais para explicar totalmente a memória criada em situações críticas? (Martial, Cassol, Laureys, & Gosseries, 2020).

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Uma ampla gama de teorias orgânicas da EQM é apresentada, incluindo aquelas baseadas em hipóxia cerebral, anóxia e hipercarbia, endorfinas e outros neurotransmissores, e atividade anormal nos lobos temporais (French, 2005). Há, contudo, que se ponderar que apesar de determinadas pesquisas relacionadas às EQMs especularem sobre as possíveis causas do fenômeno, este ainda apresenta-se como uma incógnita, face à ausência de dados neurológicos. As condições médicas e neurológicas associadas às EQMs e relacionadas à interferência cerebral ou dano cerebral são parada cardíaca, anestesia geral, epilepsia do lobo temporal, estimulação elétrica do cérebro e anormalidades do sono como por exemplo, intrusões REM (Blanke, Faivre, & Diegues, 2016). Mesmo adotando uma rigorosa metodologia científica, o debate teórico é amplamente aberto e não é possível tirar conclusões firmes sobre a origem de tais experiências (Agrillo, 2011). As teorias espirituais assumem que a consciência pode se separar do substrato neural do cérebro e que a EQM pode fornecer um vislumbre de uma vida

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após a morte. As teorias psicológicas incluem a proposta de que a EQM é um mecanismo de defesa dissociativo que ocorre em tempos de extremo perigo ou, menos plausivelmente, que a EQM reflete memórias de nascer (French, 2005). Há grande número de relatos que associam previamente a EQM à sensação de calma e euforia. Assim, dado que muitas EQM ocorrem, como o nome sugere, quando há perigo real de morte, faria sentido que o corpo liberasse substâncias químicas que induzissem um estado de calma e serenidade. Por exemplo, se alguém apresenta uma hemorragia com risco de morte, entrar em pânico, acelerando a atividade cardíaca apenas aceleraria a perda de sangue. Seria, portanto, uma vantagem o corpo induzir um estado de calma e euforia, desacelerando desta maneira a frequência cardíaca e consequentemente a perda de sangue. Esta seria, provavelmente uma função adaptativa de uma EQM, levando em consideração que a calma, em meio a eventos ameaçadores da vida, reforça as chances de sobrevivência (Alper, 2008). De fato, o viés positivo para a vida após uma EQM relaciona-se com os aspectos positivos e agradáveis experimentados no decorrer do fenômeno, tais como, tranquilidade, paz e senso de harmonia com o universo (Charland-Vervilleetal., 2014).

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Porém, nem sempre as experiências são agradáveis e, por assim dizer, “harmoniosas”, pois, embora mais raras, experiências verdadeiramente aterradoras ou “infernais” também foram relatadas, sendo possível que tais experiências estejam na verdade subdocumentadas por motivos diversos, tais como, memórias “dolorosas” ou risco de estigmatização (Cassoletal., 2019). Quem passa por EQMs angustiantes não diferem em termos de gênero e idade em comparção com as EQMs clássicas. As experiências angustiantes, contudo, incluem mais sobreviventes de suicídio, ao passo as clássicas parecem incluir pessoas mais velhas (Cassoletal., 2019). As narrativas relacionadas a experiências angustiantes também podem conter recursos pertencentes ao tipo positivo (visão de luz e túnel, EEC e revisão da vida), todavia interpretadas pelos que a vivenciaram como “terríveis” ao invés de confortantes. Também ocorrem situações em que a experiência é de “não-existência” ou de ser condenado a um “vazio inexpressivo

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para a eternidade” com o desespero de sentir não apenas que a vida como a conhecia não mais existe, mas também que nunca existiu. A experiência também inclui imagens e sons terríveis, tais como avistar uma paisagem feia ou agourenta e/ou a presença de seres demoníacos, ouvir ruídos altos e/ou irritantes, ver animais assustadores e/ou encontrar outros seres em extrema angústia (Greyson, & Bush, 1992). Não obstante, a crença popular acerca das características aparentemente paranormais das EQMs, sejam estas positivas ou negativas, Mobbs e Watt (2011), em revisão sobre o tema, apresentam explicações científicas, para (segundo eles) “todos” os fenômenos relatados por quem vivenciou a EQM, sugerindo que não há nada paranormal nessas experiências. Considerando que seriam apenas manifestação de função cerebral anômala durante um evento traumático e às vezes inofensivo; os autores defendem ainda que todos os aspectos da experiência têm uma base neurofisiológica ou psicológica. A experiência extra-corpórea, revisão da vida e visão de pessoas falecidas estariam, por exemplo, relacionadas a intrusões do sono REM (também defendido por Nelson, Mattingly, Lee e Schmitt, em 2006) ao passo que o prazer vívido e a euforia poderiam ser o resultado da liberação de opioides provocada pelo medo.

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Q uanto às alucinações visuais ou outras t ambém frequentemente presentes nas experiências, Mobbs e Watt (2011) explicam que estas também ocorrem em pessoas acometidas por doenças neurodegenerativas do sistema nervoso, tais como, Alzheimer e Parkinson. Assim, as visões de entidades e pessoas falecidas poderiam indicar uma anormalidade pontual nas mesmas áreas acometidas nestas doenças. Em se tratando da visão de luzes brilhantes e de túnel, especulam que estas poderiam ser o resultado de um colapso periférico à fóvea do sistema visual por meio da privação de oxigênio. Esse estudo foi, contudo, criticado pelo grupo do Dr. Bruce Greyson (Greyson, Holden, & Lommel, 2012), pois ao afirmarem que “todos” os aspectos das EQM poderiam ser explicados, os autores ignoraram muitos aspectos que não poderiam explicar, negligenciando um corpo substancial de pesquisa empírica sobre o Assunto. Não considerando indícios de possíveis características não explicáveis pelas ciências naturais nas EQMs, a alegação de que não

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há nada paranormal nestes fenômenos não pode ser considerada como baseada em evidências. Em relação à intrusão do sono REM, não haveria condições para tal, pois nas condições onde as experiências são geralmente vivenciadas, este estaria na verdade totalmente inibido. Além disso, a oferta de oxigênio ao encéfalo está igual ou até maior e as alucinações associadas a doenças degenerativas do encéfalo geralmente são associadas a sentimentos de medo, sem apresentar a riqueza de sensações e interatividade das observadas nas EQM, que além de vistas podem também ser ouvidas, cheiradas e tocadas, sendo na maior parte dos casos muito bem-vindas. Há também que se ponderar a existência de relatos de EQMs nos quais pacientes relataram visões de pessoas falecidas, mas cuja morte não tinham conhecimento, que faleceram momentos antes ou no exato momento em que ocorria a EQM, ou mesmo pessoas falecidas que nunca conheceram, desafiando, portanto, a interpretação dessas visões como meras alucinações (Greyson, 2010). Parece, portanto, indiscutível que as EQMs não podem ser simplesmente reduzidas à imaginação, medo da morte, alucinação, psicose, uso de drogas ou deficiência de oxigênio (Lommel, 2011). Na tentativa de explicar o que, ao menos aparentemente, não apresenta explicação, Blanke, Faivre e Diegues (2016) propõem que os estudos futuros sobre EQMs possam ser concentrados mais nos mecanismos funcionais e neurais dos fenômenos, tanto em populações de pacientes quanto indivíduos saudáveis. Agindo desta maneira, a ciência poderia ajudar a desvendar, ao menos parcialmente, os mecanismos neurofisiológicos de aspectos ainda não compreendidos das EQMs que tanto intrigam cientistas, estudiosos e leigos.

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Sem dúvida é um desafio científico considerável discutir novas hipóteses que possam explicar a possibilidade de uma consciência clara e aprimorada, abrangendo memórias, identidade própria, cognição e emoções durante um período de aparente coma. Talvez, a mera visão materialista da relação entre consciência e cérebro, como defendida pela maioria dos médicos, filósofos e psicólogos, seja muito restrita para uma compreensão adequada desse fenômeno que, apesar de poder durar apenas alguns minutos, pode acarretar mudanças profundas em quem o vivenciou (Lommel, 2011).

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Para finalmente ratificar as mudanças no modus vivendi extensivamente relatadas, convém citar o estudo em formato de testemunho de Woollacott e Peyton (2020), baseado em um estudo de caso detalhado, extensivamente verificado e documentado de uma médica (e autora do estudo) que sofreu uma EQM durante o nascimento de seu terceiro filho, aos 32 anos de idade. Com os olhos fechados com uma fita, ela referiu seis percepções durante a parada cardíaca que foram verificadas pelos funcionários do hospital. Sem possibilidade de explicação pela perspectiva fisiológica, o caso obteve uma pontuação pela escala de Greyson igual a 23, caracterizando uma EQM profunda. As autoras sugerem que tais experiências abrem uma porta para uma consciência mais alta ou expandida, associada à tranquilização da atividade cerebral. Os dados mostram que essa experiência inicial tem um efeito imediato; é “plantada uma sem*nte” que transforma a compreensão do indivíduo sobre a natureza da consciência. Além disso, serve como um gatilho para um processo de transformação espiritual de longo prazo, incluindo a busca para encontrar um caminho de volta para essa experiência, que, no caso citado, levou a um estudo aprofundado da meditação e espiritualidade e uma transformação na sua abordagem como médica aos cuidados paliativos voltados ao paciente no final da vida.

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De fato, experiências espiritualmente transformadoras, espontâneas ou procuradas de maneira intencional levam as pessoas a perceber a si mesmas e ao mundo de maneiras profundamente diferentes, expandindo sua identidade, aumentando suas sensibilidades e alterando seus valores, prioridades, senso de significado e propósito na vida (Greison, 2014).

Considerações Finais Embora a plena compreensão de como o cérebro cria a consciência e a experiência do self ainda esteja muito longe de ser alcançada, a evolução das neurociências nas últimas décadas permitiu um aumento exponencial do conhecimento sobre suas funções e conexões. Tal evolução propiciou melhora substancial no tratamento, prognóstico e qualidade de vida de milhões de pessoas

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que sofrem de distúrbios neurológicos e psiquiátricos. Porém, mesmo com tudo o que já se pesquisou e descobriu desde a denominada “década do cérebro” nos anos 90 até os dias atuais, o cérebro ainda é capaz de surpreender e maravilhar quem dedica a vida a estudá-lo. Sabe-se, por exemplo, que determinados fenômenos, considerados por muitos como “paranormais” e aparentemente inexplicáveis pelas ciências naturais, como o déjà vu e os fenômenos autoscópicos (experiência extra-corpórea e outros), apresentam explicação científica convincente, podendo, inclusive, serem reproduzidos de maneira experimental. Não existe, contudo, um único “módulo especializado” no cérebro que tenha como função a criação de crenças e experiências sobrenaturais, embora algumas áreas parecem ter uma importância especial na criação de alguns desses fenômenos, como a junção temporoparietal em experiências autoscópicas e o córtex rinal na experiência do déja vú. Outros fenômenos relativamente comuns na população, como certos aspectos das “experiências de quase morte” (EQM), também apresentam teorias que podem explicar parcialmente sua origem, seja por anomalias momentâneas ou disfunções de determinadas áreas encefálicas. Entretanto, muitos destes aspectos apresentam lacunas do ponto de vista científico, ao passo que outros ainda são uma completa incógnita. Isso não significa, obviamente, que não poderão ser explicados no futuro, por mais estranhas e “reais” que sejam as sensações referidas por quem já passou pela experiência.

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Porém, mesmo que num futuro mais ou menos distante possamos compreender todos os aspectos da consciência e comprovar que todos os fenômenos vivenciados por quem passou pela EQM podem ser inequivocamente atribuídos à atividade encefálica, ainda não será possível nem haverá motivo para simplesmente descartar a possibilidade de existência de algo que transcenda o aspecto físico e que sobreviva à morte do corpo. Embora desde o início da história da humanidade até o momento em que este texto é escrito, a alma ou espírito de quem quer que seja que tenha passado pela morte definitiva jamais tenha comprovadamente retornado para relatar a respeito, não é possível descartar tal possibilidade simplesmente porque não há prova cabal de que após a morte não há nada além da “não-existência”.

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Muitos pacientes em estado grave, sem possibilidade de cura e pouco tempo de vida, ainda apresentam a esperança de que espiritualmente continuarão a existir, simplesmente considerando que a “não-existência” não lhes é mentalmente concebível. Se apenas a crença, sem prova alguma, de que a morte não é o final de tudo, de que há possibilidade de reencontrar pessoas amadas que faleceram e de que em breve não mais existirá dor ou tristeza num paraíso perfeito, puder elevar a qualidade do tempo de vida que resta ao paciente, já seria motivo mais do que suficiente para incentivá-la. Sem dúvida alguma, médicos e outros profissionais da saúde devem ter um comprometimento ético com a ciência e com a divulgação científica, procurando evitar arquétipos relacionados a crendices infundadas. Mas, destruir, em nome da ciência, a fé que pode ser a única coisa que resta aquele que sofre, não parece ser muito ético ou profissional. Concordando com Kyriacou (2018), nós seres humanos fomos abençoados com um corpo e uma mente e não honraríamos a fé negligenciando a ciência. Pelo contrário, entendemos que a fé começa onde a ciência termina, sem perder de vista os limites do que nos é possível saber. Mas, também se faz necessária suficiente humildade para não refutar, em nome da ciência, o que para muitos pode ser tudo o que resta, a realidade da fé.

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Temas em Neurociências

SEÇÃO

II

PROCESSOS BÁSICOS EM NEUROCIÊNCIAS

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Bases Neurobiológicas da Dependência Química

6 André Demambre Bacchi*

Introdução O uso de substancias psicoativas tem feito parte da vida do ser humano há milênios (Austin, 1978). Enquanto aproximadamente metade da população mundial utiliza ao menos uma substância psicoativa, o consumo de álcool, tabaco e outras drogas figuram entre as principais causas de morte evitáveis no planeta (World Health Organization, 2004).

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Autor para correspondência: [emailprotected] Professor de Farmacologia do Curso de Medicina da Universidade Federal de Rondonópolis. Instituto de Ciências Exatas e Naturais. Avenida dos Estudantes, 5055 - Cidade Universitária, Rondonópolis - MT, CEP 78735-901.

Segundo a quinta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais - DSM-V, os transtornos relacionados ao uso de substâncias abrangem classes distintas de drogas, como álcool, cafeína, cannabis, alucinógenos, inalantes, opióides, hipnosedativos, ansiolíticos, estimulantes, tabaco, entre outras substâncias. De modo geral, é possível afirmar que a maioria das drogas que provocam dependência possuem em comum a ativação do sistema de recompensa cerebral, que está envolvido no reforço de comportamentos e na produção de memórias (American Psychiatric Association, 2013). A ativação desse sistema pelo uso de determinadas substâncias pode ser intensa a ponto de “sequestrar” os circuitos cerebrais envolvidos na aquisição de recompensas naturais, relevantes à sobrevivência enquanto indivíduo (como a busca por alimentos) ou enquanto espécie (oportunidades de acasalamento) (Hyman, 2005). Os mecanismos de ação farmacológicos pelos quais cada droga produz recompensa diferem entre si, mas geralmente acabam levando à ativação desse sistema, produzindo sensação de prazer, frequentemente denominada de “barato” (do inglês hight) ou “viagem” (do inglês trip). Além disso, deficiências em mecanismos cerebrais inibitórios e determinados contextos sociais podem fazer com

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que certos indivíduos sejam particularmente mais vulneráveis ao desenvolvimento de transtornos por uso de substâncias (American Psychiatric Association, 2013). Contudo, mesmo constituindo um problema de saúde pública, há escassez de tratamentos para esses transtornos, se comparados a outros como depressão e ansiedade. Essa falta de tratamentos psicofarmacológicos efetivos pode ter provocado certo grau de omissão terapêutica quanto à abordagem medicamentosa para o manejo da dependência. Infelizmente parece haver certo ceticismo quando se fala em desenvolvimento de fármacos para o tratamento do abuso de substâncias. Esse raciocínio pode ter diversas origens, entre elas o fato de que há um grande número de usuários que não conseguem atingir a abstinência total e/ou que sofrem frequentes recaídas. Além disso, há também o estigma, com consequente preconceito por parte de cientistas e profissionais de saúde, que leva à crença equivocada de que, ao contrário de outras doenças ou transtornos, “o dependente químico se coloca voluntariamente nessa situação” e, por esse motivo, deve ter menor prioridade em relação aos demais pacientes (Stahl, 2013).

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Nesse contexto, um dos pontos de partida para se discutir a eficácia e o desenvolvimento de tratamentos efetivos para os transtornos por uso de substância é o conhecimento da base neurocientífica dos circuitos de recompensa. Assim, o objetivo deste capítulo é municiar o leitor com a base biológica que possibilitará a compreensão de como o abuso de drogas é capaz de promover neuroadaptações disfuncionais no dependente químico, tornando-o “refém de si mesmo”.

A Dependência Química como Fenômeno Multidimensional Sem uma droga de abuso ou sem um circuito cerebral de recompensa, não haveria dependência química. Contudo, embora esses sejam os elementos-chave desse transtorno, esse fenômeno sofre influência de muitos outros fatores. Afinal, nem todas as pessoas que fazem uso de uma droga tornam-se dependentes dela.

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A Figura 1 mostra que, além dos aspectos neurobiológicos, os aspectos comportamentais, genéticos e ambientais são cruciais para o desenvolvimento da dependência química. Neurobiologia

Comportamento

Genética

Ambiente

Figura 1. Dependência química como fenômeno multidimensional. Embora as características farmacológicas de cada droga de abuso e as neuroadaptações dos neurocircuitos sejam aspectos fundamentais envolvidos na dependência química, os fatores genéticos, ambientais e comportamentais são capazes de modificar e interferir significativamente nesse processo.

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Por um lado, algumas substâncias parecem ser intrinsecamente mais aditivas do que outras. Por outro, algumas pessoas podem ser mais impulsivas ou podem apresentar um sistema de recompensa geneticamente disfuncional. Em outras palavras, traços impulsivos e disfunções no sistema de recompensa podem facilitar o uso abusivo de substâncias e alguns indivíduos podem ser naturalmente mais vulneráveis a se tornarem compulsivos com o uso frequente (Ersche, Turton, Pradhan, Bullmore, & Robbins, 2010).

Impulsividade e Compulsividade na Dependência Química A dependência pode ser descrita, neuroquimicamente, como uma transição de ações compulsivas para ações compulsivas

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(Volkow, Wang, Fowler, Tomasi, & Telang, 2011). No transtorno por uso de substâncias está presente um conjunto de sintomas cognitivos, comportamentais e fisiológicos, caracterizados pela incapacidade em adiar recompensas (impulsividade) e pelo uso contínuo da droga, apesar das consequências significativamente negativas (compulsividade). De maneira simplificada podemos afirmar que impulsividade e compulsividade são sintomas que derivam da dificuldade do cérebro em “dizer não”. (Everitt et al., 2008; Moeller, Barratt, Dougherty, Schmitz, & Swann, 2017). De modo mais preciso, impulsividade pode ser definida como uma ação sem reflexão prévia, ou ausência de reflexão sobre as consequências de determinado comportamento. Há, portanto, grande dificuldade em se adiar recompensas, com predileção a uma recompensa imediata em detrimento à outra potencialmente mais benéfica, porém, tardia. Seria o que, na linguagem coloquial, chamaríamos de “falta de força de vontade para resistir a tentações” (Moeller et al., 2017). Por outro lado, a compulsividade é caracterizada por presença de ações inapropriadas a certa situação, mas que persistem, mesmo produzindo consequências nocivas (Everitt et al., 2008).

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Embora relacionadas com áreas ligeiramente distintas no cérebro, tanto impulsividade como compulsividade podem ser consideradas como impulsos neurobiológicos “de baixo para cima” (por exemplo, da área tegmental ventral para o núcleo accumbens) que podem sofrer supressão por estímulos “de cima para baixo” (oriundos do córtex pré-frontal). Nesse contexto, impulsividade e compulsividade seriam resultado da falha na resposta dos sistemas de inibição “de cima pra baixo” ou da ativação excessiva “de baixo pra cima” (Goldstein & Volkow, 2002). Diversos estudos de neuroimagem têm dado suporte a esse modelo (Limbrick-Oldfield, Van Holst, & Clark, 2013) e essas alterações parecem ser a fonte das constantes recaídas do usuário de drogas que caracterizam a dependência química (Koob, 2013). Podemos considerar que o uso inicial de uma droga é, em geral, voluntário e está ligado ao traço de impulsividade. Esse contato inicial com a substância provoca uma sensação de prazer e satisfação. Se isso ocorre com pouca frequência e intensidade, a busca e o consumo podem permanecer sob controle, caracterizando

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um usuário “ocasional”. Contudo, as primeiras doses costumam ser as mais reforçadoras, pois são praticamente isentas de penalidades. Isso pode facilitar que o uso se torne frequente, evoluindo para o uso compulsivo, caracterizado pela necessidade de maiores doses para a obtenção do efeito desejado (tolerância) e a necessidade de utilização para reduzir os sintomas incômodos de abstinência na ausência da droga (Clark, Robbins, Ersche, & Sahakian, 2006). O fenômeno de tolerância ocorre com frequência para drogas de abuso e diversas formas de tolerância podem ocorrer durante o consumo crônico de uma droga. A tolerância varia de acordo com a genética individual, bem como com o grau de exposição à substância. Um dos tipos de tolerância que pode ocorrer é a tolerância farmacocinética. Nesse caso, a tolerância resulta de maior eliminação da substância pelo organismo. Esse tipo de tolerância está associada ao fenômeno de indução de enzimas hepáticas após o uso repetitivo da droga. Quanto maior atividade biotransformadora enzimática, maior é a eliminação da substância e maior dose é necessária para obter o mesmo efeito de antes. >

Outros tipos de tolerância, como a tolerância farmacodinâmica (relacionada aos receptores nos quais a substância atua) e tolerância funcional (quando o organismo compensa certos efeitos por meio de uma desregulação endógena) podem também participar dos mecanismos de tolerância às drogas. Porém, independentemente do tipo, o fenômeno de tolerância é um processo reversível. Ou seja, após um período de abstinência, a tolerância pode ser revertida, podendo levar a overdoses acidentais. (Golan, Tashjian Jr, Armstrong, & Armstrong, 2012). Para ilustrar esse processo, podemos utilizar como exemplo o caso da cantora Amy Winehouse. Amy utilizou grandes quantidades de etanol de forma crônica durante sua vida, desenvolvendo tolerância à bebida. Por esse motivo, conseguia (e sentia necessidade de) consumir uma grande quantia de álcool diariamente. Contudo, após cessar o uso da droga por algumas semanas em uma tentativa de se manter “livre do vício”, seu organismo foi capaz de retornar ao estado basal. Assim, sua tolerância ao álcool diminuiu drasticamente. Porém, em um episódio de recaída, consumiu a mesma quantidade que estava habituada anteriormente. Sem estar tolerante ao etanol,

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Amy acabou sofrendo uma superdosagem alcoólica que culminou em seu óbito (Bacchi, 2020).

James Olds, Peter Milner e a Descoberta do “Centro de Recompensa Cerebral” As bases neurobiológicas da dependência química têm sido alvo de crescente interesse, uma vez que o melhor entendimento dos mecanismos cerebrais ligados ao comportamento de dependência têm permitido a busca de tratamentos medicamentosos mais eficazes para o comportamento repetitivo da busca pelas substâncias, assim como para a síndrome de abstinência (Figlie, Bordin, & Laranjeira, 2014). Na metade do século XIX, algumas teorias sobre motivação afirmavam que o “comportamento dependente” resultava de instintos subconscientes. Essas teorias eram pouco claras e não demonstravam de maneira satisfatória quais elementos materiais estariam envolvidos na dependência química. No início da década de 40, contudo, uma nova explicação surgiu, abrangendo conceitos de psicologia e psiquiatria. Essa teoria, chamada de teoria do reforço, teve como pioneiro o trabalho realizado por Spragg (1940), no qual, após receberem repetidamente drogas opioides, chimpanzés trabalhavam voluntariamente para ter acesso a estas substâncias, contrariando o esperado de seus comportamentos inatos.

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Essas pesquisas despertaram o interesse da comunidade científica pelo tema e, em 1954, os pesquisadores James Olds e Peter Milner observaram que ratos com eletrodos introduzidos em regiões específicas do cérebro pressionavam uma barra para receber estímulos elétricos nessas regiões. Esse comportamento de autoestimulação chegava a ser tão intenso a ponto de os animais deixarem de se alimentar ou dormir para continuar pressionando a barra. Essas e outras observações levaram à descoberta de que as regiões cerebrais relacionadas ao comportamento de autoestimulação eram as mesmas regiões responsáveis pelo consumo de água e comida e estariam, portanto, relacionadas com recompensa e motivação (Olds & Milner, 1954). Portanto, as vias dopaminérgicas mesolímbica e mesocortical estariam envolvidas com a recompensa e seriam provavelmente estimuladas pelas

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drogas de abuso. Assim, acredita-se que o sistema dopaminérgico mesocorticolímbico desempenhe um papel central nas síndromes de dependência (Volkow & Fowler, 2000; Volkow, Fowler, & Wang, 2003).

Dopamina e a Neurobiologia da Recompensa Cada droga de abuso possui seu próprio mecanismo de ação, mas geralmente atuam, direta ou indiretamente, ativando um mesmo circuito cerebral: o sistema dopaminérgico de recompensa, a via final comum de reforço e recompensa no cérebro. A via dopaminérgica mesolímbica parte da área tegmental ventral e projeta-se ao núcleo accumbens, um dos principais componentes do estriado que tem sido considerado estrutura fundamental na mediação de processos motivacionais, emocionais e nos efeitos de certas drogas psicoativas. Alguns autores consideram, portanto, que este seja o “centro do prazer” do cérebro (Nestler, 2005). Por conta disso, a dopamina frequentemente é descrita popularmente como sendo “o neurotransmissor do prazer”, uma definição reducionista e imprecisa. É mais adequado, conforme visto até aqui, considerar que a dopamina possui um papel de destaque na recompensa e na motivação.

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Há diversas maneiras de desencadear “naturalmente” a liberação de dopamina na via mesolímbica. Realizar com sucesso tarefas intelectuais ou atléticas, degustar uma boa refeição, atingir o org*smo, apaixonar-se ou até mesmo ouvir suas músicas favoritas podem ser alguns desses exemplos. As substâncias que provocam dependência também seguem essa lógica neurobiológica. Contudo, elas produzem um grau de disparo dopaminérgico muito mais intenso do que aquele gerado por substâncias ou comportamentos mais elementares, relativos à sobrevivência. Esse estímulo mais acentuado, provocado por algumas drogas, pode levar a alterações no circuito de recompensa, conduzindo a um ciclo de busca pela substância, fissura, dependência e abstinência na retirada da droga (Hyman, Malenka, & Nestler, 2006). Ademais, a gratificação experimentada inicialmente quando a droga é consumida, tende a diminuir com o decorrer do tempo (por mecanismos de tolerâncias farmacocinética e farmacodinâmica), podendo exigir aumento da dose para obtenção do mesmo efeito e

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intensificando o processo de dependência química (Kalivas & Volkow, 2005). Coloquialmente poderíamos dizer que o cérebro “percebe” que não é necessário ganhar essa recompensa naturalmente, uma vez que é possível consegui-la de maneira mais intensa e com menor esforço pelo uso de uma substância química. Não apenas drogas, mas comportamentos potencialmente desadaptativos como jogo patológico, uso intenso de internet, compras compulsivas, entre outros, podem também levar à liberação de dopamina na via mesolímbica de maneira semelhante (Balodis et al., 2012). Com o passar do tempo, não apenas a recompensa, mas também a antecipação da recompensa associa-se à busca da droga ou de situações envolvidas nos transtornos impulsivos-compulsivos. Ou seja, os neurônios dopaminérgicos deixam de responder apenas ao reforçador inicial (como a droga de abuso) e passam a responder ao estímulo condicionado (ver a droga ou as pessoas ou locais que se relacionam ao seu consumo). Isso corresponde, neurobiologicamente, à migração do aumento de dopamina do núcleo accumbens para o estriado dorsal, caracterizando a transição da impulsividade para a compulsividade (Dalley, Everitt, & Robbins, 2011; Everitt & Robbins, 2013).

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A dopamina está, portanto, associada à motivação para a busca e consumo de drogas, características centrais do dependente químico. Assim, o indivíduo apresenta foco e motivação quando busca obter a droga, porém demonstra apatia quando envolvido em atividades que não se relacionam com ela. A dissonância entre expectativa dos efeitos da droga e os efeitos cada vez mais atenuados da dopamina mantém o uso compulsivo da substância como uma tentativa de conquista da recompensa esperada (Melis, Spiga, & Diana, 2005).

A Forma de Utilização e o Risco de Dependência A velocidade com a qual uma droga atinge seu sítio de ação pode determinar a intensidade dos efeitos e o grau da experiência subjetiva do indivíduo e, portanto, também contribui para aumentar ou reduzir as chances de uma pessoa se tornar dependente. É por isso que muitas das drogas de abuso são injetadas ou inaladas,

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sendo consideravelmente mais reforçadoras assim do que se fossem utilizadas por outras vias, como a via oral. Sendo assim, a maneira mais rápida e potente de fazer com que uma substância alcance o sistema nervoso central, de maneira simples e não invasiva, é fumando aquelas que são compatíveis com essa via. Por isso, o cigarro de tabaco, maconha, crack, metanfetamina, entre outras, costumam ser utilizadas por essa via, levando a descargas fásicas (e em grande quantidade) de dopamina (Ferris et al., 2012). Desse modo, os efeitos reforçadores da droga dependem não apenas da presença de dopamina no circuito de recompensa cerebral, mas também da intensidade da sua liberação. Essa intensidade, por sua vez, depende intrinsecamente do mecanismo de ação de cada droga e também é determinada pela via de administração adotada. Um aumento abrupto e pronunciado de dopamina mimetiza a liberação dopaminérgica fásica associada à recompensa e motivação, favorecendo a dependência (Lodge & Grace, 2006). Por outro lado, alguns fármacos que também provocam essa liberação de dopamina, quando administradas por via oral e em baixas doses, atuam pouco como reforçadores e podem ser utilizados no tratamento de alguns transtornos. Esse é o exemplo do uso da Ritalina® (metilfenidato) para o tratamento do transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Isso não extingue a possibilidade de o metilfenidato provocar dependência, mas certamente confere a esse fármaco um efeito menos reforçador que a cocaína ou metanfetamina, por exemplo (Volkow, 2006; Volkow, Fowler, Wang, Ding, & Gatley, 2002).

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Nem só de Dopamina Vive um Cérebro “Dependente” Até aqui afirmamos que a dopamina é o principal neurotransmissor envolvido na motivação e recompensa. Entretanto, se diferentes classes de drogas de abuso possuem mecanismos de ação distintos, podendo provocar diversos tipos de efeitos, como todas elas, de alguma forma, aumentam dopamina? Ainda que o sistema dopaminérgico mesocorticolímbico represente o sistema de recompensa cerebral, neurotransmissores

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como serotonina, noradrenalina, acetilcolina, glutamato e o ácido gama-aminobutírico (GABA) são também responsáveis pela modulação dos neurônios dopaminérgicos da via mesolímbica e estão envolvidos nesse sistema. Endorfinas e opioides endógenos, bem como endocanabinóides (como anandamida) também influenciam esse circuito, favorecendo atividade dopaminérgica (Koob & Volkow, 2010). Sendo assim, diversas substâncias psicotrópicas de uso abusivo possuem a capacidade de mimetizar esses sinalizadores endógenos, atuando como agonistas de receptores cerebrais no sistema de recompensa, tendo como efeito final a liberação “artificial” de dopamina. Assim, o álcool (que reforça os efeitos do GABA e opioides), os próprios opioides exógenos (como a morfina), os estimulantes (que aumentam a liberação e inibem recaptação da própria dopamina), a maconha (que estimula receptores canabinóides), os benzodiazepínicos (que reforçam ação do GABA), os alucinógenos (que estimulam receptores serotoninérgicos) e a nicotina (que mimetiza a ação da acetilcolina) são capazes de afetar e desregular o sistema dopaminérgico mesolímbico, favorecendo a dependência (Stahl, 2013).

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A Figura 2 resume essa complexa relação. Neurônios dopaminérgicos projetam-se da área tegmental ventral para o núcleo accumbens. Conforme mencionamos anteriormente, o aumento da liberação de dopamina nessa área está associado à recompensa e motivação. Esses neurônios dopaminérgicos sofrem regulações negativas e positivas por diversos outros neurônios (não mostrados na figura) e seus neurotransmissores. Fármacos estimulantes, cocaína, metanfetamina aumentam diretamente a disponibilidade sináptica de dopamina. Opioides e drogas sedativas inibem interneurônios inibitórios, o que leva a uma desinibição dos neurônios dopaminérgicos, enquanto o cigarro e drogas alucinógenas estimulam esses neurônios. Porém, independente do mecanismo de ação, o resultado final é o aumento de dopamina no núcleo accumbens.

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Nucleo Accumbens DOPAMINA (recompensa)

– Fármacos Estimulantes – Cocaína

– Opioides endógenos e exógenos – GABA (e Hipnosedativos) – Álcool

Área Tegmental Ventral

– Acetilcolina (e Nicotina) – Serotonina (e Alucinógenos)

Interneurônio gabaérgico

Figura 2. A “farmácia” cerebral no circuito da recompensa. A via dopaminérgica mesolímbica é regulada por diversos neurotransmissores. As drogas de abuso mimetizam e potencializam a ação dessas moléculas, favorecendo direta ou indiretamente o aumento de dopamina no núcleo accumbens.

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Aspectos Comportamentais e Ambientais da Dependência Resumidamente, um comportamento ou resposta tem maior probabilidade de voltar a ocorrer por meio de um processo comportamental chamado reforço. Isso acontece tanto quando há a inserção de uma estimulação apetitiva para o sujeito (reforço positivo), que pode vir acompanhada de uma sensação de prazer, ou quando há a retirada de uma estimulação aversiva (reforço negativo) que gera uma sensação de alívio (Baron & Galizio, 2005). Um jeito simples de entender esses conceitos é imaginar um alimento. Por exemplo: para uma pessoa que goste muito de chocolate, buscar sempre esse alimento, que traz para ela uma sensação prazerosa até mesmo quando ela não está com fome, mostra que o doce está atuando como reforço positivo. Por outro lado, podemos comer uma comida que nem gostamos porque estamos com muita

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fome e este é o único recurso disponível. Nesse caso a comida está aliviando um desconforto (fome) e atuando como reforço negativo. De modo semelhante, sabemos que as drogas de abuso aumentam a liberação de dopamina no núcleo accumbens. Dessa forma, as pessoas podem utilizar as drogas em busca de uma sensação de bem-estar e euforia (reforço positivo) ou podem usar drogas para aliviar sensações ruins como ansiedade, depressão, estados de tristeza ou mesmo para aliviar a síndrome de abstinência (reforço negativo). Isso certamente aumenta a chance de a droga ser utilizada novamente. Nos estados de abstinência, em geral, a pessoa apresenta sintomas opostos aos observados quando está sob o efeito agudo da droga abusada. Por exemplo, na ausência de benzodiazepínicos - drogas que induzem o sono - o indivíduo pode experienciar um quadro de insônia intensa. Esses sintomas são acompanhados pela depleção dos níveis de dopamina no núcleo accumbens, que está relacionada com o forte desejo de utilizar a droga novamente (fissura) (Schulteis, Stinus, Risbrough, & Koob, 1998). >

Fissura - ou craving - é definida como um sentimento de desejo urgente e “incontrolável” de usar a substância, com pensamentos intrusivos que alteram o humor do usuário e provocam sensações físicas e alterações de seu comportamento. Estudos apontam que a fissura está relacionada tanto a desencadeadores externos (por exemplo a própria droga) quanto internos (como ansiedade) (Tiffany, Carter, & Singleton, 2000). Quando falamos em abuso e dependência, há vários indícios que estímulos ambientais possam influenciar no risco de utilizar droga (condicionamento ao ambiente). Um animal de estimação que ouça ou veja seu dono pegando a vasilha da ração costuma se agitar e correr em direção ao local, antecipando a recompensa. Podemos considerar que com as drogas de abuso algo semelhante aconteça: a visão do local no qual o usuário costumava utilizar a droga, por exemplo, pode ser suficiente para desencadear a vontade de usá-la novamente, uma vez que ocorre a associação entre o ambiente e o efeito da droga (Rehman, Mahabadi, & Rehman, 2019). Há relatos, por exemplo, de que a cantora e compositora Janis Joplin estava há algum tempo sem consumir heroína, buscando a

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Temas em Neurociências

abstinência completa, quando reencontrou uma amiga com a qual utilizava a droga no passado, juntamente com seu antigo fornecedor. Isso foi suficiente para que ela tivesse uma recaída, que a levou a uma overdose fatal (Bacchi, 2020). O papel do estresse na dependência também demonstra a importância do ambiente para o abuso de drogas. Não é raro observarmos o comportamento de pessoas abusando de bebidas alcoólicas para relaxar e aliviar o estresse. Certamente parte desse comportamento é socialmente aprendido, enquanto outra parte se relaciona com as propriedades ansiolíticas do álcool. Contudo, é necessário frisar que nem sempre as condições ambientais favorecem o consumo de drogas. Viver em um ambiente rico em estímulos positivos, com maior interação social, com acesso a mais recursos e/ou com estresse diminuído, pode, na verdade, reduzir a autoadministração de drogas (Alexander, Beyerstein, Hadaway, & Coambs, 1981).

Genética e Dependência Química

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É certo que fatores genéticos desempenham importante papel na dependência química. Estudos epidemiológicos mostram que a dependência ao álcool, por exemplo, possui um forte componente familiar, com parte dessa influência relacionada a características herdadas por meio de genes. Essa maior vulnerabilidade genética não implica necessariamente em uma dependência futura, mas sim no aumento do risco para dependência, somado aos outros fatores abordados neste capítulo. Nesse contexto, estima-se que fatores genéticos possam contribuir com, em média, 40% dos transtornos por abuso de substâncias, variando valores de acordo com o sexo e com a substância utilizada. (Swendsen & Le Moal, 2011). Existem genes identificados que potencializam alterações metabólicas em resposta a substâncias específicas (facilitando ou dificultando sua tolerância, por exemplo) e genes que influenciam diretamente a função do sistema de recompensa cerebral (Agrawal et al., 2012). Sobre estes últimos, indivíduos podem apresentar predisposições genéticas que aumentem a chance de provocar um mau funcionamento da via mesolímbica de recompensa - por

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redução na expressão de receptores de dopamina - resultando em um estado “hipodopaminérgico” que facilita a dependência, compulsão e impulsividade. Assim, pesquisadores cunharam o termo “Síndrome da deficiência de recompensa” para representar esse desbalanço neuroquímico genético (Blum et al., 1990; Blum et al., 2012). Contudo, esse tipo de influência genética provavelmente não se restringe apenas a genes específicos do circuito de recompensa, mas também se estende interações entre múltiplos genes e em diferentes vias biológicas (Lobo & Kennedy, 2006). Sendo assim, a personalização de intervenções terapêuticas com base na genética individual tem deixado de ser algo “futurista” para se tornar realidade em diversas especialidades médicas e isso não exclui os tratamentos na área de saúde mental (Malhotra, Zhang, & Lencz, 2012).

Bases do Tratamento da Dependência Química O tratamento da dependência é algo ainda muito incipiente, considerando que foi só a partir do século XXI que começamos a ter um entendimento mais sólido sobre a neurobiologia da dependência (Oliveira, Schwartz, & Stahl, 2015).

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Tendo em vista o que foi exposto neste capítulo, seria razoável imaginar que pacientes que sofram de dependência química possam se beneficiar de intervenções farmacológicas e psicoterápicas. Contudo, tratamentos baseados em evidências com esse objetivo ainda estão começando a surgir. O tratamento da dependência química se divide atualmente entre as abordagens farmacológicas e as psicossociais. A maior parte dos autores e dos estudos sugere que a administração isolada de fármacos não deve ser o tratamento definitivo nos casos de dependência, sendo geralmente recomendada em conjunto com as abordagens psicossociais (Oliveira et al., 2015). Dentre as abordagens farmacológicas temos a divisão entre terapias de substituição e as terapias de não substituição. A terapia de substituição envolve o uso de um medicamento da mesma classe/ mecanismo da droga que era utilizada, em sua substituição. Por exemplo: é possível substituir a heroína (uma droga opioide injetável

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de meia-vida curta) pela metadona (um medicamento opioide via oral com longa meia-vida). Essa troca auxilia a aliviar os sintomas de abstinência e promove redução de danos, pois o paciente não utilizará a via injetável (com o risco de contaminação por compartilhamento de seringas), nem estará exposto a picos plasmáticos muito intensos e de curta duração que favorecem o consumo compulsivo da heroína. Posteriormente trabalha-se a substituição da metadona por um opioide de ação parcial, como buprenorfina e, por fim, a abstinência. O uso de adesivos ou gomas de nicotina no tratamento do tabagismo segue uma lógica semelhante. Já as terapias de não substituição envolvem o tratamento dos sintomas de abstinência. No mesmo exemplo da dependência por heroína: pode-se usar clonidina para controlar o aumento da pressão arterial, benzodiazepínicos para reduzir ansiedade e insônia, analgésicos para dor etc (Golan et al., 2012). A dependência por cada droga específica terá um conjunto de ferramentas farmacológicas mais indicado para ser utilizado. Contudo, além da dependência por heroína, citada anteriormente, os tratamentos farmacológicos mais bem estabelecidos e com base em evidência se restringem à dependência por etanol e nicotina.

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Na dependência por álcool utiliza-se, além do tratamento sintomático, principalmente: • Dissulfiram: um fármaco que impede que um produto tóxico da biotransformação do etanol (o acetaldeído) seja corretamente eliminado, fazendo com o que o paciente sinta náusea e outros sintomas desconfortáveis durante o consumo de álcool; • Naltrexona: antagonista opioide utilizado para evitar recaída por dependentes de heroína ou álcool já desintoxicados; • Acamprosato: um fármaco com ação semelhante ao álcool nos receptores de GABA e glutamato. Funciona como um “álcool falso” que visa aliviar os sintomas de abstinência.

Assim como nas demais dependências, os tratamentos farmacológicos na dependência do etanol são mais efetivos quando integrados com a psicoterapia. (Anton et al., 2006; De Witte, Littleton, Parot, & Koob, 2005; Roozen et al., 2006). O tratamento da dependência por nicotina também é complexo, em especial pelo seu alto poder de adicção. Mesmo interrompido o uso do cigarro, a duração da “necessidade/vontade de fumar”

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pode ser muito longa, chegando a durar anos. Os tratamentos farmacológicos específicos aprovados no contexto da dependência à nicotina envolvem: • Nicotina na forma de adesivos, gomas ou pastilhas: substituição da nicotina fumada pelo cigarro, de maneira mais controlada, de modo a tentar reduzir a fissura e abstinência (Stahl, 2013); • Bupropiona: fármaco antidepressivo que aumenta levemente a biodisponibilidade de dopamina, “suprindo” parcialmente a necessidade dopaminérgica do circuito de recompensa que está hipoativo após a cessação do tabagismo (Culbertson et al., 2011); • Vareniclina: substitui parcialmente a ação da nicotina, ao mesmo tempo estimulando de modo mais brando o circuito de recompensa (aliviando a fissura) e impedindo a ação da nicotina fumada (reduzindo o reforço associado ao uso da droga) (Crunelle, Miller, Booij, & van den Brink, 2010).

Para drogas estimulantes, como cocaína, crack e metanfetamina, não há tratamento farmacológico específico aprovado. Por um raciocínio biológico e análogo ao dos tratamentos citados anteriormente, substituição por bupropiona, d-anfetamina e modafinil foram cogitadas, sem conclusões significativas (Castells et al., 2010). Antidepressivos também foram estudados, com melhor resposta para os antidepressivos tricíclicos (Pani, Trogu, Vecchi, & Amato, 2011). Uma vez que os estudos conduzidos até agora não são suficientes para apoiar o uso desses fármacos enquanto protocolo oficial, o tratamento farmacológico das dependências por drogas estimulantes se restringe ao controle dos sintomas de abstinência.

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Os tratamentos psicossociais constituem parte importantíssima no manejo dos transtornos por uso de substâncias psicoativas. Há diversas abordagens possíveis que podem ter melhor desempenho, dependendo da substância e das necessidades particulares do paciente e podem ser aplicadas tanto no contexto individual quanto em grupo. A Terapia Cognitivo-Comportamental e a Análise do Comportamento parecem ser abordagens funcionais para a grande maioria dos transtornos por abuso de substância, enquanto a Entrevista Motivacional tem demonstrado eficácia para dependência ao álcool, nicotina e THC (Cannabis). O programa de 12 passos tem sido tradicionalmente utilizado com maior sucesso nas dependências de álcool, opioides e drogas estimulantes, enquanto a terapia familiar parece exercer um impacto significativo na adesão ao tratamento farmacológico nas dependências por álcool e opioides (Stahl & Grady, 2016).

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Temas em Neurociências

Em linhas, nota-se que frequentemente o melhor tratamento psicoterápico para as dependências depende mais do psicoterapeuta em si do que da abordagem ou técnica específica adotada. Talvez isso ajude a explicar o motivo de os “Programas de 12 passos” serem tão populares enquanto modalidade de tratamento das dependências, uma vez que são administrados, muitas vezes, por pessoas que se recuperaram e que de fato se importam com essa experiência, em contraste com o julgamento e preconceito que ainda podem permear a prática de alguns profissionais.

Considerações Finais O conhecimento sólido sobre as bases neurobiológicas envolvidas na dependência, bem como sua integração com aspectos psicológicos, comportamentais e genéticos, é de fundamental importância para o desenvolvimento e adoção de estratégias preventivas e terapêuticas para os transtornos relacionados ao uso de substâncias.

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A maioria dos aspectos neurobiológicos das dependências podem resultar da desregulação de mecanismos moleculares relacionados à recompensa, motivação e memória e, nesse contexto, alguns fármacos têm sido utilizados para auxiliar a “corrigir” esse desbalanço e aliviar crises de abstinência. Já os comportamentos relacionados a essa desregulação podem ser suprimidos por mecanismos de controle que requerem a ação do córtex pré-frontal e que podem ser exercitados, treinados e desenvolvidos por meio de técnicas de tratamento psicoterápico (Anton et al., 2006). Todavia, mesmo com o uso dessas ferramentas, recaídas ocorrem. Portanto, além dos avanços na área psicofarmacológica e psicoterápica, é provável que o maior esclarecimento do papel da expressão gênica na dependência química possa trazer novas abordagens, como avanços na farmacogenética, para o tratamento e prevenção desse complexo fenômeno (Maze & Nestler, 2011).

Referências

Bases Neurobiológicas da Dependência Química

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Dor Aguda e Dor Crônica

Mauro Leonelli* Universidade Estadual de Londrina

Introdução A dor é uma das queixas mais comuns entre os pacientes que buscam atendimento médico. O sofrimento que a dor causa ao paciente pode levar a alterações do comportamento, do humor, e da regulação de funções dos sistemas cardíaco, circulatório e endócrino, entre outros. A dor também tem potencial de gerar alterações na maneira que o indivíduo cuida de si próprio, como ele se relaciona com outras pessoas e também na sua capacidade de trabalho. Nesse sentido, a dor é uma das principais causas de afastamento do trabalho, além de gerar gastos consideráveis para o seu controle. Neste capítulo, nossos objetivos incluem: • A compreensão da dor e dos processos que podem levar a sua cronificação; • Os mecanismos básicos para o desenvolvimento das dores agudas e crônicas; • As áreas do encéfalo que são importantes para a percepção da dor; • A importância que a dor pode ter quando ocorre em concordância com algum estímulo lesivo ou potencialmente lesivo.

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Autor para correspondência: mauroleonelli@ uel.br Departamento de Ciências Fisiológicas. Rodovia Celso Garcia Cid/Pr 445 Km 380 Caixa Postal: 10.011 CEP: 86057-970Londrina-PR

Desenvolvimento O que é a Dor e Por Que a Sentimos? A dor é um dos tópicos da fisiologia do sistema nervoso que mais desperta interesse das pessoas ao longo dos séculos, uma vez que é a modalidade sensorial que tem inerentemente grande capacidade de direcionar a atenção do indivíduo para ela própria.

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Uma busca simples pelo termo “pain” em uma ferramenta online como o pubmed.gov identifica quase oitocentos mil artigos científicos catalogados naquela base de dados (acesso em 12 agosto de 2019), o que indica o enorme esforço científico despendido para seu estudo. Resumidamente, a dor surge como expressão da atividade neuronal que informa ao nosso cérebro que algo está errado em nosso corpo, seja uma lesão verdadeira ou mesmo alguma alteração da atividade neuronal que interfere na sinalização das vias sensoriais da dor. A dor é, portanto, muito mais do que apenas um sinal sensorial que gera uma percepção definida e analisável de forma objetiva. Ao se expressar como percepção, gera também alterações emocionais e neurovegetativas (Craig, 2003), de forma que nosso sistema nervoso seja capaz de identificar o possível local de origem do estímulo doloroso e, paralelamente, iniciar a atividade de outras regiões do encéfalo que permitem: o alerta, por ativar circuitos que aumentam a atividade neuronal basal de áreas essenciais do sistema nervoso, de forma que nossos outros sentidos também fiquem mais sensíveis a estímulos e nossas respostas motoras mais rápidas e vigorosas; a programação motora, para proteger a área supostamente lesionada; a aversão, um estado emocional subjetivo que nos informa de que algo está errado com o nosso organismo; as respostas neurovegetativas, que incluem a modulação do sistema nervoso simpático e liberação de hormônios ligados a situações de estresse, como aqueles estimulados pelo eixo hipotalâmico-hipofisário-adrenal; e o aprendizado, seja para evitar no futuro o que causou a dor ou para amplificar ou controlar as outras respostas geradas pela dor.

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Definições de Dor Definir a dor não é algo trivial. Sabemos que se perguntarmos a uma pessoa sobre um som puro ela dará informações como a intensidade, se é agudo ou grave, e talvez sobre o timbre. Se o som for muito grave, provavelmente vai dizer que o som é soturno ou triste, e se for muito agudo, sentirá incômodo e se queixará que o som é irritante. Se perguntarmos sobre a cor azul, talvez usará o frio como referência para expor a emoção que a lembrança da percepção daquela cor gera. Assim, os diversos sentidos podem gerar

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percepções bem definidas e de relativa facilidade de se reproduzir em outros indivíduos (um objeto com temperatura a zero grau Celsius será sentido como frio pela grande maioria das pessoas, se não por todas), mas podem gerar também respostas mais complexas, que dependem do momento em que o estímulo está sendo realizado, do grau de alerta do indivíduo, do seu estado emocional e das memórias e associações que obteve com suas experiências de vida. A dor também envolve desde respostas relativamente simples, como reflexos motores, a outras muito elaboradas, como identificação do local do estímulo, intensidade, duração e grau de sofrimento que gera, além de alterações comportamentais e neurovegetativas que podem ser severas, dentre outras características, e assim carece de definição ampla. Segundo a Associação Internacional para o Estudo da Dor (IASP - International association for the study of pain), a dor pode ser definida como “uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a lesão tecidual verdadeira ou potencial, ou descrita com os mesmos termos de tal lesão”a (Bonica, 1979). Por essa definição, nota-se que é esperado que a dor, por si, inclua a alteração emocional do paciente e, como tal, tem alto potencial de gerar alterações neurovegetativas, mesmo que o paciente as negue ou mesmo que mascare as alterações comportamentais que seriam esperadas pelo quadro. Assim, mesmo que o paciente não se queixe da dor que sente, é de se esperar que seu estado emocional e, consequentemente, suas funções neurovegetativas sejam condizentes com uma situação de estresse, seja ele agudo ou crônico (exemplos em Nordin, & fa*gius, 1995; Hannibal, & Bishop, 2014). Pela mesma definição, o estabelecimento da dor e de suas respostas precede em importância a sua causa por um aspecto: a necessidade primordial de se reconhecer a dor.

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A dor pode estar associada a lesão de tecidos do organismo ou mesmo a situações de lesão potencial, como por exemplo quando comprimimos a mão com força e temos dor enquanto a compressão permanece, mas cessa assim que a compressão também é reduzida. Adicionalmente, um paciente pode ter dor mesmo na ausência de a. Tradução livre da definição da IASP para dor, “an unpleasant sensory and emotional experience associated with actual or potential tissue damage, or described in terms of such damage”, Disponível em: https://www.iasp-pain.org. Acesso em: 1 ago. 2019.

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causas mais comuns que causariam a dor, como é observado nas dores neuropáticas. Nesse caso, a dor é gerada por mecanismos que afetam o funcionamento das vias de transmissão e processamento da dor, como regiões de nervos ou locais de transmissão entre neurônios de núcleos cerebrais de controle da dor, e dessa forma o paciente se queixa da dor, mesmo que uma lesão não exista, ou seja, o paciente descreve a dor e tem a sensação de que uma lesão existe, mas aparentemente é o sistema nervoso do paciente que interpreta de forma atípica os sinais que recebe. De qualquer forma, a pessoa sente a dor e sofre com ela, devendo ter acesso a tratamento adequado, assim como a pessoa que tem uma lesão verdadeira e a dor resultante dela. Dessa forma, fica claro que a definição da dor inclui fatores objetivos e outros subjetivos, e ambos são essenciais para que não haja exclusão de casos em que a expressão dor seja encontrada em um paciente que a expresse de forma atípica. Outros autores tentam estabelecer definições mais abrangentes para a dor. Por exemplo, segundo Cohen et al. (2018), “a dor é uma experiência somática mutuamente reconhecível que reflete a apreensão de uma pessoa de ameaça à sua integridade física ou existencial”b. Por essa definição, o caráter emocional da dor é ainda mais valorizado, bem como a capacidade que a dor tem de funcionar como linguagem. Pelos sinais que gera em um indivíduo, a dor pode ser reconhecida entre membros da mesma espécie ou mesmo de espécies diferentes, e assim pode ser capaz de alterar o comportamento não só daquele indivíduo que a sofre, como de algum observador, gerando respostas sociais adaptativas.

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Essas respostas sociais causadas pela dor incluem aquilo que chamamos de empatia, que é a resposta que um indivíduo pode ter ao observar, nesse caso, o sofrimento do outro. Essas respostas são comuns em humanos, mesmo naqueles que nascem sem a capacidade para sentir dor. Aparentemente, a incapacidade de sentir dor não impede que a pessoa entenda o sofrimento (Danzigeretal., 2009), que faz parte das alterações causadas pela dor, mas não é exclusiva a ela (Chen, 2018). Já foi demonstrado, inclusive, que animais expressam empatia pelo sofrimento de outros da mesma

b. Tradução livre de “Pain is a mutually recognizable somatic experience that reflects a person’s apprehension of threat to their bodily or existential integrity” (Cohenetal., 2018).

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espécie, dessa forma reagindo ao perceber que um semelhante está em sofrimento e mesmo libertando-o de situações estressantes (Ben-Ami Bartaletal., 2011). Quando comparamos a dor com outras modalidades sensoriais percebemos enormes diferenças com relação às respostas que os estímulos de dor podem gerar nas pessoas. Possivelmente, se um colega tocar na palma da sua mão com uma bola de algodão você perceberá o estímulo localizado, sua textura e força de compressão sobre a mão. Caso quem te faça o estímulo seja uma pessoa que você não tem ligação afetiva, possivelmente nenhuma emoção te ocorrerá durante o estímulo. Se esse estímulo ocorrer de forma constante, provavelmente você não o perceberá após alguns segundos pois, por vários mecanismos moleculares locais ou mesmo por outros mais complexos processados pelo seu sistema nervoso central, ele perde sua relevância ao não variar com o tempo. Já um estímulo doloroso pode ativar maior número de áreas do seu sistema nervoso central e assim, geralmente, é um estímulo de maior relevância funcional para seu encéfalo. A dor, pelos circuitos que ativa em uma resposta padrão a uma lesão, tem maior capacidade de gerar respostas mais abrangentes, intensas e de difícil adaptação.

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Parte dos circuitos neuronais envolvidos na percepção da dor são organizados de forma que sua atividade também é capaz de gerar as respostas a dor ou de recrutar outras áreas do encéfalo para tanto, sendo que grande parte dessas respostas são essenciais para a proteção do organismo exatamente contra as possíveis causas da dor. Por exemplo, as estruturas encefálicas responsáveis pela cognição, ou seja, pela aquisição, processamento, estoque e geração de respostas pelo sistema nervoso central em parte também são utilizadas pelos sistemas que permitem a percepção e resposta à dor (Lawlor, 2002). A dor em si é um processo cognitivo, uma vez que é utilizada como forma de avaliação das condições do organismo. Diversas regiões encefálicas que sabidamente são importantes para a percepção possuem outras funções em outros processos cognitivos, assim, tanto a dor é capaz de alterar as funções cognitivas do indivíduo, como também o próprio indivíduo e seu estado mental em determinado momento tem a possibilidade de modular a percepção da dor conscientemente (Moriartyetal., 2011). Esses conceitos são coerentes com a visão atual de que a dor, assim como outros sistemas, não

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depende exclusivamente de uma área encefálica para sua expressão, embora várias sejam essenciais para que a dor se expresse de forma completa em um indivíduo. Assim, o funcionamento coordenado de diversas regiões encefálicas, inicialmente codificados geneticamente e posteriormente adaptados pelas experiências do indivíduo (Melzack, 1990), parece ser o substrato de toda a plêiade de respostas observadas pela dor, ao contrário da visão mais clássica de circuitos bem isolados para cada sistema.

A memória da Dor não é Apenas Dor Com as décadas e o avanço dos estudos sobre dor, fica cada vez mais difícil de ela ser comparada diretamente com outros sistemas sensoriais. Para exemplificar a evocação da memória da dor, vamos utilizar como exemplos estímulos no sistema auditivo e nos sistemas da olfação e paladar. Se lembrarmos de uma música que nos cause emoção, podemos lembrar-nos dos acordes, da letra, e podemos nos emocionar inclusive, como se a estivéssemos ouvindo no momento. Podemos lembrar-nos da casa da nossa mãe, que possuía um cheiro característico do ambiente, daquele prato preferido que você devorava há anos, o que poderá despertar, inclusive, alterações emocionais, incluindo as parassimpáticas, se for o caso. Mas você não se lembrará do sabor de forma exata, e terá de provar novamente para ter a mesma sensação, o que provavelmente será muito mais intenso que a simples evocação da memória.

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As respostas emocionais e neurovegetativas da recordação da dor não necessariamente terão valência negativa apenas por estarem associadas à dor. Em tragédias, acidentes, tratamentos médicos não-eletivos e outras situações claramente negativas, a memória da dor resultará em uma recordação negativa pelo paciente (Williams e Baird, 2016). Por outro lado, é sugerido que a experiência da dor em mulheres durante o parto, por exemplo, uma situação associada à maternidade e a todos os valores positivos que esse momento pode ser capaz de gerar, pode alterar o modo como a experiência da dor é memorizada, de forma que parece haver redução da valência negativa da experiência da dor nesse processo (Babeletal., 2015).

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A pessoa, ao recordar a dor, não se lembra apenas dos seus aspectos físicos, mas dos psicológicos e daqueles referentes ao local, condição e fatores que a levaram a sentir dor, de forma que esses fatores em conjunto, e não a percepção dolorosa isolada, é que levam à recriação do contexto e da recordação do sofrimento. Isso ocorre pois o que uma pessoa sente quando está com alguma dor não é reflexo da ativação de uma região do cérebro apenas, mas da ativação de uma sequência coordenada de regiões do encéfalo que acabam por gerar a percepção da dor e de seus contextos cognitivos, emocionais e neurovegetativos ao mesmo tempo, e grande parte da interpretação ocorre de forma paralela e interdependente (Beckeretal., 2019). Em consequência, para as situações mais amenas a que estamos expostos na vida e mesmo para as mais graves, porém evitáveis pela volição, a memória associada a um evento doloroso pode ser fisiologicamente didática na medida em que pode gerar mudanças de comportamentos por meio do aprendizado, a fim de que o indivíduo não se exponha a situações que causem dor no futuro. Adicionalmente, esses fatores aumentam o leque de possibilidades para a terapêutica aplicada à analgesia, uma vez que, se mais regiões estão envolvidas na geração dos aspectos negativos da dor, maior número de mecanismos moleculares pode se tornar alvos farmacológicos para seu tratamento direto e de suas consequências sobre o comportamento do indivíduo com dor (Alvaradoetal., 2015).

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O Processamento da Dor se Inicia como a Detecção de Padrões Potencialmente Associados a Lesões Como todo sistema sensorial, a dor é organizada de forma que o estímulo inicial é inicialmente detectado por células especializadas e há a propagação da informação sensorial detectada por neurônios, que projetam para outros neurônios de regiões específicas do sistema nervoso central, que vão gerar a percepção e respostas associadas ao estímulo. Os receptores que detectam a dor são chamados de nociceptores. São neurônios especializados em detectar estímulos potencialmente nocivos. As fibras dessas células não formam órgãos especializados, e assim as terminações nervosas livres desses

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neurônios se localizam na pele e em tecidos profundos do organismo. Interessantemente, o sistema nervoso central é desprovido de nociceptores. Qualquer dor associada aos processos inflamatórios, infecciosos, traumáticos ou de tumores no sistema nervoso central se dá pela ativação de nociceptores nas membranas que revestem esse tecido, nos vasos sanguíneos ou por lesões causadas em núcleos de processamento da dor. Nociceptores são associados a dois tipos de fibras nervosas. Os nociceptores que possuem mielina são células mais rápidas, chamadas de fibras A-delta, enquanto as fibras mais lentas, que não possuem mielina, são as fibras do tipo C. Essas fibras respondem a diferentes estímulos e são classificadas de acordo com os estímulos que as ativam. Os nociceptores do tipo A-delta ativados por temperatura acima de 43ºC e abaixo de 5ºC são os nociceptores térmicos, enquanto os nociceptores mecânicos são aqueles ativados por estímulos mecânicos, como a pressão intensa. Os receptores polimodais são fibras do tipo C ativadas por fortes estímulos mecânicos, pelo frio e calor intensos ou por estímulos químicos, como a queda do pH extracelular. O quarto tipo são os nociceptores silenciosos, que são encontrados em vísceras e não são normalmente ativados. Sua ativação é mais proeminente quando há um processo inflamatório ou liberação de agentes químicos (Bell, 2018). A dor que temos quando um nociceptor é ativado por um estímulo como os citados anteriormente é chamada de dor nociceptiva, pois necessariamente há a ativação de fibras nervosas periféricas para a sua deflagração. Esse tipo de dor geralmente perdura enquanto o estímulo inicial continua ativando o nociceptor e cessa assim que o estímulo for removido. Quando um nociceptor térmico é exposto a uma temperatura acima de 43ºC, por exemplo, quando você aquece demais a água do chuveiro e verifica com a mão se está quente demais, uma classe de moléculas da superfície dessa fibra é ativada. São proteínas que formam canais que permitem a passagem de cátions pela membrana celular, os canais do tipo TRPV1. Essas proteínas são ativadas por temperatura alta (>43º), e sua ativação excita os nociceptores, que disparam potenciais elétricos que percorrem toda a fibra sensorial em direção ao sistema nervoso central. Os canais TRPV1 também podem ser ativados pelo pH ácido, típico de tecidos inflamados (Caterinaetal., 1997). Assim, cada molécula desencadeadora de estímulos nos nociceptores

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funciona como batedores que são capazes de gerar a ativação dos nociceptores a diversos estímulos associados a lesão celular real ou potencial. A importância dessas proteínas é tão grande que mutações em uma delas, um canal para sódio chamado Nav1.7, pode fazer com que os nociceptores simplesmente não respondam a estímulos e que o indivíduo não sinta dor (Cox et al., 2006). O potássio extracelular elevado pode levar a ativação dos dois tipos de nociceptores. A lógica por trás desse processo é que o aumento de potássio extracelular ocasionado, por exemplo, pela lesão e morte de células, altera a dinâmica do fluxo de íons através da membrana dos nociceptores, reduzindo o escape natural de potássio que ocorreria nos nociceptores, dessa forma, ativando essa célula mais facilmente. O processo inflamatório também produz substâncias que podem ativar e amplificar a resposta dos nociceptores, o que chamamos de dor inflamatória, ou dor com componente inflamatório. Nesse caso, a intensidade de ativação do nociceptor será maior mesmo para um estímulo que anteriormente era inócuo. Por exemplo, se sairmos pela manhã com um sapato novo provavelmente ele não incomodará muito, mas se com o passar do dia for gerada uma inflamação no calcanhar, o mesmo toque do sapato, que antes não causara nenhuma sensação ruim, agora causará dor pois o tecido está inflamado. Essa condição é chamada de hiperalgesia. O processo inflamatório recruta células que produzem localmente substâncias como prostaglandinas, leucotrienos, ATP, bradicinina, serotonina, histamina entre outras, que aumentam a sensibilidade dos nociceptores ao atuar direta ou indiretamente em canais iônicos, como o TRPV1, e outras moléculas de sinalização celular. Várias dessas moléculas são derivadas do ácido araquidônico e tem a sua produção reduzida por anti-inflamatórios, o que justifica sua utilização no tratamento desse tipo de dor. A ativação repetida dos nociceptores também acarreta uma maior eficiência na sinapse entre nociceptores e neurônios de segunda ordem, de forma que esse evento plástico também resulta em aumento da sensibilidade das vias de transmissão da dor (Costiganetal., 2009).

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Circuitos Neuronais para a Dor As vias de transmissão de dor em direção ao encéfalo são rotas formadas por neurônios que levam informação da medula espinhal

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em direção a centros de processamento da informação. Uma dessas vias é o trato espinotalâmico, cujas fibras de neurônios de segunda ordem chegam ao tálamo, fazendo nova sinapse com neurônios que irão projetar para regiões do córtex cerebral. A ativação desse trato naturalmente ou experimentalmente pode levar o paciente a sentir dor. Ainda, em alguns casos de dor crônica, esse trato pode ser excisado cirurgicamente na tentativa de redução do quadro algésico (Romanellietal., 2004). Outras vias levam informação para outras áreas essenciais para as respostas fisiológicas da dor. O trato espinoreticular atinge a formação reticular do bulbo e algumas de suas fibras fazem sinapse com neurônios de terceira ordem que atingem o tálamo, onde nova sinapse com neurônios de quarta ordem vão atingir regiões do córtex cerebral. O trato espinomesencefálico é composto por fibras que projetam para a formação reticular do mesencéfalo, substância cinzenta periaqueductal e núcleo parabraquial, onde fazem sinapse com neurônios que projetam para as amígdalas, de forma que participam nas respostas afetivas e emocionais da dor. O trato espino-hipotalâmico possui axônios que projetam para o hipotálamo, uma região diencefálica essencial para a regulação neurovegetativa do organismo, regulando a função autonômica, hormonal e alguns comportamentos básicos e essenciais ligados à sobrevivência do indivíduo e da espécie.

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Quais Regiões do Encéfalo são Ativadas pelos Estímulos Dolorosos? O processo de detecção da dor de forma consciente é muito complexo e envolve a ativação de diversas regiões em níveis diferentes do SNC. O processo inicial, de ativação dos nociceptores e ativação inicial das vias de projeção a áreas mais superioras do SNC é chamada de nocicepção, que é a detecção e processamento inicial do estímulo doloroso. Embora essencial para vários mecanismos de controle comportamental e neurovegetativo, essa fase inicial ainda não implica que a pessoa percebe conscientemente o estímulo. Para que haja percepção consciente de um estímulo doloroso, é necessária que haja a ativação de vias que levam a informação para tálamo e regiões específicas do córtex cerebral. Somente com a

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ativação dessas regiões é que o indivíduo é capaz de reportar que sente dor e assim pode reagir a ela. As regiões talâmicas que processam a informação de dor são essenciais para a percepção consciente da dor. Um tipo de dor que pode ser desenvolvida é a dor central, causada por lesões talâmicas ou de suas projeções para o córtex. As projeções talâmicas atingem várias regiões corticais direta e indiretamente (Garcia-Larrea, & Bastuji, 2018). As regiões de córtex somatossensorial primário e secundário são aquelas mais envolvidas com as funções de localização do estímulo da dor. Áreas corticais motoras também são ativadas, e refletem a complexidade que a percepção dolorosa pode gerar, uma vez que essas regiões, quando ativadas, estão potencialmente relacionadas com a programação motora que pode fazer com que o indivíduo se proteja da dor. O córtex cingulado anterior participa da adequação das respostas emocionais à dor. A remoção cirúrgica dessa região límbica reduz a percepção dolorosa (Sharim, & Pouratian, 2016). Outra região ativada por estímulos dolorosos é o córtex insular. Essa região é essencial para a percepção consciente da dor. Pacientes com lesões nessa região são capazes de perceber e de relatar a dor, mas apresentam severo déficit na geração de respostas emocionais à dor, estado conhecido como assimbolia para a dor (Berthieretal., 1988).

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Por Que a Intensidade de uma Dor Varia no Dia? A percepção da dor varia muito entre pessoas e também para a mesma pessoa, na dependência do contexto na qual ela está exposta como a hora do dia, se ela está em uma situação de estresse, se ela está motivada, se está com alguma outra doença sistêmica, dentre várias outras situações. Os mecanismos que podem estar por trás disso são vários. Um deles é um sistema neuronal que parte do tronco encefálico em direção a diversos níveis medulares, onde modula a capacidade de transmissão de informação na primeira sinapse das aferências sensoriais relacionadas à dor. O sistema de controle endógeno da dor inclui a substância cinzenta periaqueductal (PAG), uma região mesencefálica que, quando estimulada, pode gerar intensa analgesia. A PAG se conecta com outros núcleos do tronco

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encefálico, incluindo vias noradrenérgicas que partem do locus ceruleus, e serotoninérgicas, que partem dos núcleos da rafe. Esses núcleos participam de grande número de funções no sistema nervoso central, além do controle da dor. Fibras descendentes partindo desses núcleos se encaminham ao corno dorsal da medula espinhal, onde agem direta e indiretamente nas sinapses entre os nociceptores e os neurônios de segunda ordem das vias nociceptivas. A ação pode ser predominantemente inibitória, no caso da noradrenalina, ou, no caso da serotonina, na dependência do tipo de receptor onde age, pode ser de ação inibitória ou excitatória (Bannister, & Dickenson, 2017). As fibras descendentes também fazem sinapses com interneurônios inibitórios localizados no corno dorsal da medula. Esses interneurônios produzem opioides endógenos, principalmente encefalinas e dinorfinas. Usadas como neurotransmissores, essas moléculas ativam receptores acoplados a proteínas G do tipo inibitórias (proteínas Gi), cuja ativação acaba por inibir a liberação do neurotransmissor excitatório glutamato, utilizado na sinapse entre os nociceptores e os neurônios de segunda ordem das vias de dor. A ativação de receptores para opioides na pré-sinapse ativa canais para potássio, o que faz com que o terminal pré-sináptico tenda a não despolarizar, e ainda bloqueia canais para cálcio dependentes de voltagem, o que reduz a liberação de glutamato. A ativação desse receptor na pós-sinapse leva a eventos similares, mas culmina na geração de potenciais inibitórios pós-sinápticos, o que pode reduzir a excitabilidade dos neurônios de segunda ordem. A ativação desse mesmo sistema por opioides exógenos é muito potente no controle da dor, e até mesmo soldados do exército de alguns países são treinados para se auto aplicar medicamentos opioides, o mais comum sendo a morfina, no caso de lesões em campo de batalha para o controle da dor (Williams, & Baird, 2016).

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Situações relacionadas ao aumento da motivação podem fazer com que os núcleos onde se situam os neurônios noradrenérgicos e serotoninérgicos tenham sua atividade modulada, assim resultando em alteração da excitabilidade da primeira sinapse das vias nociceptivas, como por exemplo durante o exercício (Lima et al., 2017). A ativação das vias descendentes do controle de dor também pode ser ocasionada por situações de estresse muito intenso. Lesões extensas normalmente causariam dor muito intensa em qualquer

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indivíduo, mas o estresse e a motivação podem levar à ativação dos mesmos núcleos, fazendo com que a percepção da dor seja em muito atenuada (Butler, & Finn, 2009). Em proporções menores, o mesmo sistema de controle endógeno da dor nos permite suportar a dor mesmo conscientemente, por exemplo, quando seguramos algum objeto que nos é precioso e ele está muito quente. Nosso movimento estereotipado seria o de largar o objeto para reduzir a percepção de dor, mas podemos conscientemente garantir a atividade de núcleos motores que determinam que continuemos a segurar o objeto e outros, os sistemas descendentes, que atenuam em parte a sensação dolorosa enquanto segurarmos o objeto que está causando dor. Isso ocorre, pois, as vias que geram a percepção da dor, bem como os mecanismos inerentes de controle da dor são muito conectados a outras áreas funcionais do sistema nervoso, que podem assim influenciar na percepção dolorosa.

A Dor Referida >

Ao nos chocarmos contra um pé de mesa, por exemplo, a primeira resposta que temos é um reflexo natural, o reflexo de retirada, que faz com que nossa perna que sofreu o choque flexione, enquanto que a perna contralateral irá estender, mantendo nossa postura ao mesmo tempo em que afasta o pé da fonte de lesão. Paralelamente, são ativadas vias que levam a informação ao nosso córtex somatossensorial, de forma que possamos localizar a dor com maior precisão. Na superfície do corpo em locais muito específicos, como na cavidade oral, possuímos um número grande de nociceptores. Ocorre que também possuímos nociceptores profundos, em vísceras, e eles também projetam para neurônios de segunda ordem. Porém, grande parte dos nociceptores que projetam a partir de vísceras e cavidades do nosso corpo compartilham os neurônios secundários dos nociceptores da superfície do corpo, de forma que se temos uma lesão interna, os nociceptores ativados irão recrutar na medula espinhal os neurônios de segunda ordem, que informarão sobre a superfície do corpo. Assim, uma lesão no coração, causada por exemplo for um infarto do miocárdio, ativará neurônios de segunda ordem que mapeiam a superfície cutânea da

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região da clavícula e braço esquerdo, gerando o que é chamado de dor referida. Uma lesão em ureter causada pela passagem de um cálculo provavelmente gerará dor que pode se estender desde o final do gradil costal da região lombar do paciente, se encaminhando para a região anterior e descendo até a região genital, dependendo da localização do cálculo.

Dor Adaptativa e Dor não Adaptativa A dor, sendo um possível sinal de lesão ao organismo, organiza respostas comportamentais e neurovegetativas que tendem a proteger o indivíduo contra a suposta agressão. Se pisamos em um caco de vidro, a dor gerada nos fará proteger o pé lesionado nos próximos passos. Quando a resposta à dor é coerente com a lesão, temos um exemplo do que é chamado de dor adaptativa. A dor adaptativa é aquela que tem início com um estímulo nociceptivo verdadeiro, podendo ou não ser potencializada por algum processo inflamatório, mas que cessa assim que o estímulo ou a inflamação tecidual tiver a sua resolução. Dessa forma, ela funciona como um aviso real ao organismo, não apenas informando que algo não está bem mas, principalmente, podendo organizar respostas do organismo que tendem à proteção, ao reparo do dano e às mudanças comportamentais e neurovegetativas necessárias para essas respostas serem possíveis. As dores do tipo adaptativas estão geralmente associadas, mecanisticamente, à dor nociceptiva e dor inflamatória, ambas já discutidas.

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Em outras situações, um paciente pode se queixar que sente dor, mas essa não informa adequadamente sobre a origem da suposta lesão e muito menos é capaz de servir como substrato para a organização de uma resposta que possibilite a resolução dessa dor. Esse é o caso da dor não-adaptativa. Esse tipo de dor está geralmente associado ao aumento da atividade neuronal das vias nociceptivas e que, por muitas vezes, não apresentam correlação direta com a atividade dos nociceptores em si. São ocasionadas por mecanismos plásticos das vias de dor que aumentam a excitabilidade neuronal dessas vias, o que pode ocorrer em diversos níveis do sistema nervoso. Assim, mesmo na ausência de um estímulo que

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possa causar dor, as vias nociceptivas podem ser ativadas, levando à percepção de dor pelo indivíduo. Mais do que isso, a percepção de dor nesse caso também gerará alteração comportamental e neurovegetativa no paciente, mas que não resultará em benefício para a resolução da dor. Um exemplo clássico é a lesão de nervos periféricos, que pode ocasionar dor intensa mesmo depois de a lesão ter sua resolução. A dor desenvolvida, nesse caso, é percebida pelo paciente e sua origem se dá pelo aumento da excitabilidade de neurônios das vias nociceptivas. Por mais que o paciente proteja o membro e que haja alteração neurovegetativa condizente com o grau da dor, nenhuma dessas respostas será capaz de reduzir a percepção da dor ou de reduzir a excitabilidade dessas vias. O gasto energético ocasionado com as mudanças comportamentais e neurovegetativas ocasionados pelas respostas geradas pela dor, nesse caso, será muito alto comparado com algum possível benefício que o paciente poderia ter dessa situação. Além disso, essas alterações podem gerar também redução da qualidade de vida do paciente, como padrão de sono, capacidade de concentração, entre outras respostas que afetam de forma direta o seu desempenho no trabalho, seu prazer nas atividades diárias e sua capacidade de se relacionar com outros indivíduos, afetando negativamente a qualidade de vida. As dores não-adaptativas podem estar associadas a mecanismos plásticos que ocorrem por toda a via nociceptiva, como por exemplo na dor neuropática, ou ainda por ativação de mesma via por mecanismos desconhecidos, como na dor disfuncional (Costiganetal., 2009).

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Classificação da Dor Segundo os Mecanismos que a Causam Qualquer dos tipos de dor mencionados anteriormente podem ou não gerar dor crônica. É fácil imaginar que os tipos de dor nociceptiva e dor inflamatória são os que possuem menor probabilidade de se cronificarem, uma vez que a resolução do processo que iniciou a dor ou a inflamação irá cessar o estímulo dos nociceptores. Por outro lado, em alguns casos, como na artrite reumatoide, o processo inflamatório pode perdurar e, dessa forma, o paciente irá continuar com dor, havendo sua cronificação.

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As dores do tipo neuropática e as dores disfuncionais possuem como característica a cronificação. Os mecanismos associados à ativação das vias sensoriais da dor parecem, nesse caso, serem intensos e de mais difícil resolução natural. A dor neuropática é definida como sendo a dor que resulta inicialmente da lesão de vias nociceptivas periféricas e centrais e de consequentes mecanismos plásticos subjacentes, de forma que essas vias ficam ativas ou podem ser ativadas por estímulos muito mais fracos ou mesmo na ausência de estímulos, ou seja, espontânea. Nesse caso, a doença de base é a própria alteração da organização e funcionamento do sistema nociceptivo (Colloca et al., 2017). Algumas doenças ou situações que podem levar à dor neuropática são aquelas que causam, por conseguinte, lesões no sistema nociceptivo, como a neuropatia diabética, a infecção pelo HIV, hanseníase, a neuralgia pós-herpética, as radiculopatias, amputações e lesões nervosas periféricas, entre outras. Além disso, os mecanismos plásticos que ocorrem podem levar a alodinia, uma situação em que estímulos inofensivos, como toque leve, temperaturas amenas e outros, podem levar a ativação de vias nociceptivas e percepção de dor pelo paciente (Jensen, & Finnerup, 2014).

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Ainda, uma quarta classificação inclui a dor não adaptativa chamada dor disfuncional. Nela não são observados sinais de inflamação periféricos ou alguma modificação plástica, molecular ou estrutural dos circuitos centrais que controlam a dor. Exemplos de dores disfuncionais incluem a cistite intersticial e a fibromialgia. Nesses casos, as teorias mais aceitas indicam que a dor surge devido à amplificação de sinais nociceptivos em circuitos centrais e alteração do padrão natural de processamento sensorial (Costiganetal., 2009). Tanto as dores neuropáticas quanto as dores disfuncionais possuem em comum algumas características como o aumento da intensidade à dor para estímulos repetidos, a redução dos limiares para a dor e o espalhamento da dor para áreas mais abrangentes (Von Hehnetal., 2012). Em diversas situações, a dor pode apresentar um padrão misto. Por exemplo, no decorrer da instalação de tumores malignos, o tecido em crescimento pode acarretar lesão em nervos periféricos ao mesmo tempo em que ativa nociceptores, dessa forma apresentando tanto o componente neuropático quanto o nociceptivo.

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Cronificação da Dor Por muito tempo se imaginou que a dor deveria ser considerada como crônica caso ela perdurasse além do tempo esperado para a resolução do quadro primário que a causou, ou ainda seria considerada crônica no caso de uma dor que não tem a função de alertar para uma possível lesão. Esse conceito foi aos poucos sendo substituído por definições mais abrangentes por causa de diversos fatores. Por exemplo, o tempo para que haja a resolução de um quadro de dor em um paciente que realizou uma cirurgia simples pode ser razoavelmente predito, muito embora ele varie dadas as respostas inerentes do indivíduo, como a capacidade de cicatrização do seu organismo e por fatores ambientais outros como a volta ao trabalho. Em outras situações, como em um paciente que sofreu fratura óssea e lesões de nervos em acidente automobilístico, o tempo de recuperação e a cessação da dor não pode ser predito, e o desenvolvimento de processos complicadores para a dor, como a dor neuropática, podem ser causas de permanência da dor por períodos longos ou mesmo por toda a vida. Por essas razões, os critérios usados para que a dor seja considerada crônica independem da causa da dor, de forma que se a dor é recorrente ou permanece por mais de 90 dias, já é considerada crônica, inclusive dentro das definições da classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-11; Treede et al., 2019). O protocolo clínico e diretrizes terapêuticas para dor crônica (PCDT) publicado pelo Ministério da Saúde de 2012 indica que a dor passa a ser considerada crônica quando prevalece por mais de 30 dias (Portaria SAS/MS nº 1083, de 02 de outubro de 2012, retificada em 27 de novembro de 2015).

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Como visto anteriormente, as causas de cronificação da dor são várias e podem se sobrepor. Por essas razões, muitos foram os esforços dos últimos anos para a adequação de critérios para a classificação da dor crônica (Treedeetal., 2019). A versão atualizada da classificação estatística internacional de doenças e problemas relacionados à saúde, o CID-11, que será colocada em prática a partir de janeiro de 2022 pela Organização Mundial da Saúde, dispõe de um código apenas para a dor crônica (MG.30) e para as doenças mais comuns desse grupo, dessa forma incluindo a dor crônica primária e

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as síndromes de dor crônica secundária, ou seja, aquelas associadas a outras doenças como sua causa primária, sendo elas a dor crônica relacionada ao câncer, a dor crônica pós-cirúrgica ou pós-traumática, a dor crônica neuropática, a dor crônica secundária à enxaqueca ou orofacial, a dor crônica visceral secundária e a dor crônica secundária musculoesquelética. A dor crônica tem consequências mais amplas e severas para o paciente. Além das respostas comportamentais, incluindo as respostas emocionais e neurovegetativas discutidas anteriormente, os quadros de dor crônica frequentemente causam interferência na vida diária e na saúde geral do paciente, ocasionando incapacidades e distresse. O distresse é, por definição, a resposta de estresse que tem reflexos negativos para o paciente. Uma vez que a causa inicial do distresse permanece, essas respostas podem adicionar ao quadro inicial do paciente outras comorbidades que agravam ainda mais a sua saúde geral e reduzem a capacidade de melhora do quadro (Carstens, & Moberg, 2000). Nem sempre as alterações que a dor crônica traz à vida de uma pessoa são notadas por seus próximos ou mesmo pela própria pessoa. A cronificação da dor e a necessidade que a pessoa tem de continuar vivendo, tendo sua rotina e trabalho, propiciam que o paciente crie mecanismos para poder lidar com a sua condição e, enquanto esses mecanismos se desenvolvem paralelamente aos processos normais da vida do indivíduo, os sintomas da dor crônica podem passar despercebidos por quem observa o paciente em algumas situações. Mesmo se o paciente não se queixe mais da dor, ela ainda o pode influenciar psicologicamente, alterando seus processos cognitivos, levando a preocupações e catastrofização, a alterações comportamentais e emocionais, como medo e raiva, com seus reflexos sociais, como mudanças nos padrões de relacionamento com outras pessoas (Turketal., 2016).

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As formas que o paciente encontra para aprender a lidar com a dor crônica e a alteração decorrente no comportamento do paciente podem fazer com que a dor não seja notada pelas pessoas mais próximas do paciente como causa dessas próprias alterações comportamentais. Principalmente em idosos com perda cognitiva, mesmo as pessoas mais próximas podem ter dificuldade em acessar se o paciente está com dor (Cravelloetal., 2019). Essa

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mesma dificuldade de associação da dor crônica com alteração de comportamento também já foi reportada para animais de companhia, e parece que sua causa é o desconhecimento do repertório de respostas naturais a dor que outras espécies têm em comparação aos humanos, o que dificulta a interpretação dos sinais da dor pelo cuidador (Merola, & Mills, 2015).

Seria Bom Então não Sentir Dor... (! ou ?) Se a dor gera respostas aparentemente negativas, é um tanto quanto justo se perguntar se não seria mais interessante então não a sentir. E a resposta é direta: não. Uma vez que a dor avisa o sistema nervoso que algo está possivelmente ocorrendo de forma errada no organismo ou que ele está sendo lesionado por um agente externo, a dor é essencial para que possamos nos afastar de estímulos nocivos, para nossa proteção física, e por informar inclusive que algo está errado com um órgão interno. Pessoas que nascem sem poder sentir dor não possuem uma vantagem sobre a maioria dos indivíduos que sentem dor quando, por exemplo, acertamos a ponta de um dedo de um pé contra uma parede. Indivíduos que não sentem dor podem se desenvolver, desde o nascimento, com sérios prejuízos exatamente pela falta das correções de comportamento, incluindo as correções posturais que a dor nos exige. Se você ficar com a coluna vertebral inclinada para um lado provavelmente sentirá dor já nos primeiros minutos. A pessoa que não sente dor não corrigirá sua postura, e isso traz sérias consequências com os anos, e ainda mais sérias por ocorrer desde a infância. Quando mastigamos o alimento, evitamos certos movimentos pois sabemos que morder a língua causa dor intensa e que perdura por dias. Isso não ocorre em quem não sente dor. Uma cólica, uma lesão maior interna, um incômodo esofágico causado por refluxo, uma simples ‘assadura’ de pele em um bebê não gera reclamações na criança que nasce sem sentir dor. Todas essas situações obrigam os pais dessas crianças a desenvolver métodos de vigilância muito mais intensos, pois o sistema de dor, o alarme natural que a criança teria, não cumpre a sua função (Coxetal., 2006; Mannes, & Iadarola, 2007).

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Considerações Finais Alguns dos principais pontos hoje que permeiam os estudos sobre a dor abordam: mecanismos moleculares envolvidos na dor e estudo de alvos potenciais farmacológicos; mecanismos neuroplásticos responsáveis pelo desenvolvimento da cronificação da dor e possíveis manobras moleculares para reverter ou atenuar seu processo de desenvolvimento; expressão de genes nas mais diversas condições de desenvolvimento da dor, nos diversos níveis do sistema nervoso periférico e central; envolvimento de regiões específicas do sistema nervoso central na geração dos padrões de comportamento associados à dor; e a influência de comorbidades no desenvolvimento e manutenção da dor, como distúrbios metabólicos, sepse, depressão, entre outros. Por parte da clínica, muito é estudado também a respeito da prevenção da dor e dos processos plásticos que podem levar a alterações moleculares e morfológicas de difícil reparo, o que pode reduzir as chances de cronificação em algumas situações. Inúmeras outras frentes de estudo sobre os mecanismos envolvidos na dor e sobre o seu tratamento são realizadas diariamente. Esses estudos são realizados em culturas celulares, em animais de laboratórios, em animais silvestres e domesticados, em humanos e mesmo em modelos computacionais.

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Enquanto não forem exauridas as possibilidades de estudo e de descobertas na área, é justificado por nossa capacidade de empatia que grandes esforços sejam realizados no sentido de amenizar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida dos pacientes e, consequentemente, de seus mais próximos, também reduzindo seus gastos pessoais com tratamentos médicos e o custo social que essa demanda gera.

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Dor Aguda e Dor Crônica

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Dênis Augusto Santana Reis*

Criminologia A palavra criminologia remonta da palavra latina crimino (crime) e da palavra grega logos (estudo, tratado), significando o “estudo do crime”. O termo “criminologia” foi usado por Garófalo para designar “ciência do crime”, após vieram outros estudiosos que aprimoraram o significado do termo criminologia1. No ponto de vista de Shecaira (2012), a criminologia pode ser conceituada como: Estudo e a explicação da infração legal; os meios formais e informais de que a sociedade se utiliza para lidar com o crime e com os atos desviantes; a natureza das posturas com que as vítimas desses crimes são atendidas pela sociedade; e, por derradeiro, o enfoque sobre o autor desses fatos desviantes (Shecaira, 2012, p.35).

Desse modo, a criminologia pode ser conceituada como uma ciência empírica e interdisciplinar, que tem por objeto o estudo do delito, em todas as suas circunstâncias, tais como a análise do delito, da personalidade do ofensor, do comportamento delitivo, da vítima e o controle social das condutas tidas como criminosas. A interdisciplinaridade da criminologia decorre da sua própria consolidação histórica, uma vez que recebeu influência de outras ciências, tais como a sociologia, a psicologia, o direito, a medicina legal, dentre outras.

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Autor para correspondência: denisaugusto.sr@ gmail.com

1. GAROFALO, R. Criminologia: estudo sobre o direito e a repressão penal seguido de apêndice sobre os termos do problema penal. Ed. Pétrias. Campinas, 1997.

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Feitos tais esclarecimentos, é importante salientar que a criminologia possui os seguintes objetos de estudo: o delito, delinquente a vítima e o controle social. Por outro lado, enquanto o direito penal é uma ciência normativa, que tem por objeto o delito como regra anormal de conduta, que deve ser sancionada. A criminologia é uma ciência causal-explicativa que tem por objeto estudar o delito, o delinquente e montar esquemas de combate da criminalidade, desenvolver meios preventivos e métodos que impeçam a reincidência do delinquente2, bem como desenvolvendo pesquisas teóricas acerca da etiologia do delito. No que tange o conceito legal de crime, o art. 1º, da Lei de Introdução ao Código Penal3, dispõe que o crime é a infração penal punida com pena de reclusão ou detenção, contrapondo-se à contravenção penal que, por sua vez, é a infração penal para a qual a lei comina pena de prisão simples. Ressalte-se que o conceito de crime para a criminologia não é o mesmo do direito penal, enquanto para segundo o crime em sentido analítico seria uma ação ou omissão típica ilícita e culpável, merecedora de punição, para a primeira, o crime seria um fenômeno comunitário e um problema social.

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Em relação ao delinquente, Schecaria (2012) ensina que é um ser histórico, real e complexo, um ser normal e que está sujeito às influências do meio, descartando qualquer determinismo4 , seja ele social ou biológico.

Cesare Lombroso – O Nascimento da Teoria Biológica da Criminalidade O fundador da criminologia moderna foi Cesare Lombroso, com a publicação, em 1876, de seu livro “O homem delinquente”. 2. Fernandes, Valter. Criminologia Integrada. 4ª Edição. São Paulo. Revistas dos Tribunais. 2012. p. 30. 3. Art. 1º Considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente. 4. Schecaria, Sérgio Salomão. Criminologia. 4ª. ed. rev e atual. Ed. Revista dos tribunais. São Paulo, 2012, p. 46.

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Nessa obra e em outras que a sucederam, Lombroso (2010) através do método empírico indutivo, sistematizou e reuniu de forma articulada, uma série de conhecimentos que estavam esparsos, e, por isso é considerado o pai e maior expoente da Antropologia Criminal, conforme assevera Antônio Garcia Pablo Molina: A contribuição principal de Lombroso para a Criminologia não reside tanto em sua famosa tipologia (onde destaca a categoria do “delinquente nato”) ou em sua teoria criminológica, senão no método que utilizou em suas investigações: o método empírico. Sua teoria do “delinquente nato” foi formulada com base nos resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinquentes e seis mil análises de delinquentes vivos, e o atavismo que, conforme seu ponto de vista caracteriza o tipo criminoso – ao que parece – contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões europeias. (Molina, 2002, p. 191)

De acordo com Viana (2018), o sistema lombrosiano possui três pontos centrais: • O criminoso diferencia-se dos não criminosos por meio de inúmeros sinais físicos e psíquicos;

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• O criminoso é uma variante da espécie humana, um ser atávico; • O atavismo pode ser transmitido ao longo das gerações (Viana, 2018, p. 57).

Em suma, Lombroso (2010) não refutava os fatores exógenos da gênese criminal ambientais e sociais (o clima, o abuso de álcool, a educação, o trabalho e etc), mas defendia enfaticamente que eram os fatores endógenos, os biológicos, que levavam os indivíduos a cometerem delitos, ao passo que os exógenos apenas desencadeariam a propulsão interna para o delito, pois o criminoso já nasce criminoso (determinismo biológico).

A Criminologia Moderna Segundo Molina (2002), a evolução da criminologia culminou no surgimento de três orientações teóricas, as psicológicas, as sociológicas e as biológicas. A teórica psicológica busca a explicação para o comportamento delitivo na mente do indivíduo, nos processos psíquicos anormais

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(psicopatologia) ou nas vivências subconscientes que têm origem no passado remoto do indivíduo. A teoria sociológica entende o delito como um fenômeno social, aplicando em sua análise diversos marcos teóricos, como o ecológico, estrutural funcionalista, subcultural, conflitual, internacionalista e etc; A teoria biológica5 busca localizar e identificar em alguma parte do corpo ou no funcionamento do sistema nervoso, a existência de algum fator diferencial que explique a conduta delitiva, supondo, sempre, que o delito seja resultado de alguma patologia, disfunção ou transtorno orgânico. Frisa-se que o presente ater-se-á a última orientação, uma vez que tem como norte, a investigação dos aspectos neurobiológicos da criminalidade, com ênfase nos estudos de neurociências, mas antes, é importante demonstrar de forma sucinta como as teorias biológicas da criminalidade se desenvolveram. Os primeiros estudos criminológicos de cunho biológico foram desenvolvidos pelo frenologista Franz Joseph Gall, seguido por Cesare Lombroso, a partir da análise morfológica de delinquentes. Frisa-se que esses estudos serviram de base para a antropometria, que estudava a criminalidade analisando as medidas e proporções do corpo humano para fins de estatística e comparação.

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Esses estudos serviram de substrato para o desenvolvimento da fase pós-lombrosiana da criminologia, materializada pelos estudos biotipológicos, endocrinológicos e psicopatológicos, relacionados com a criminologia clínica. Entretanto, apesar de todo esforço e rigor científico desses estudos, os mesmos mostraram-se insuficientes para explicar a causalidade criminal, sobretudo, porque tinham forte tendência discriminatória, haja vista que esses estudos relacionavam a existência

5. As causas biológicas sempre serão referidas como neurobiológicas ou neurocientíficas ao longo desse trabalho, por uma questão de singularidade do toma, que versa o estudo da influência do substrato cerebral com a criminologia

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de certas características corporais com a propensão em cometer crimes6, Em síntese, essas teorias biológicas da criminalidade defendiam que existem indivíduos predispostos para o crime, cuja propensão depende de sua formação orgânica e que o criminoso é diferente de um cidadão normal, não criminoso, bem como desconsiderava os demais fatores que comprovadamente estão relacionados com a criminalidade, como os sociais7. As teorias acima citadas culminaram nos modernos estudos criminológicos desenvolvidos pela neurociência, envolvendo aspectos genéticos, neurofisiológicos, bioquímicos, moleculares, visando entender o funcionamento do cérebro dos criminosos e os motivos que os levam a cometer crimes.

Neurociência e Criminologia Por muito tempo, a pobreza, a desigualdade social, a baixa escolaridade e as más companhias foram considerados os principais fatores criminógenos.

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Atualmente, sabe-se que esses fatores desempenhem um papel relevante, nada obstante, tem-se reconhecido que fatores neurobiológicos também são importantes na modelagem do comportamento criminoso, por conseguinte, no cometimento de crimes. De acordo com Vold (1998), a variável biológica da criminalidade pode ser definida como:

6. Kretschmer (2015) diferenciou quatro tipos de constituição corporal: 1. Leptossômicos: alta estatura, tórax largo, peito fundo, cabeça pequena, pés e mãos curtos, cabelos crespos (propensão ao furto e estelionato); 2. Atléticos: estatura média, tórax largo, musculoso, forte estrutura óssea, rosto uniforme, pés e mãos grandes, cabelos fortes (crimes violentos); 3. Pícnicos: tórax pequeno, fundo, curvado, formas arredondadas e femininas, pescoço curto, cabeça grande e redonda, rosto largo e pés, mãos e cabelos curtos (menor propensão ao crime); 4. Displásicos: pessoas com corpo desproporcional, com crescimento anormal (crimes sexuais) (Penteado Filho, Nestor Sampaio. Manual de Criminologia. 3ª.ed. Saraiva. São Paulo, 2013. p. 102). 7. Farias Júnior, João. Manual de criminologia. 3. ed. Juruá. Curitiba, 2006. p. 58.

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Algumas dessas características biológicas são genéticas e herdadas (...). Outras resultam de mutações genéticas que ocorrem no momento da concepção ou se desenvolvem enquanto o feto está no útero. Essas características biológicas são genéticas, mas não herdadas. Finalmente, outras podem se desenvolver como resultado do ambiente das pessoas, que vai desde lesões a uma dieta inadequada. Essas características biológicas não são genéticas nem herdadas” (Vold, 1998, p. 68).

Apesar dos estudos dos caracteres biológicos da criminalidade terem entrado em crise, Serrano Maíllo assegura que há uns anos– dez ou quinze aproximadamente – vem sendo levado à sério as variáveis de caráter biológico em criminalidade (Serrano, 2016). Serrano (2016) também aponta que uma das razões para o renascimento das variáveis biológicas da criminalidade pode ser o fato de que até o momento houve o predomínio das teorias de orientação sociológica8, porém as explicações do fenômeno delitivo dada por elas não são consideradas integralmente satisfatórias, ou seja, essas teorias não têm sido capazes de explicar satisfatoriamente importantes diferenças individuais no âmbito da criminalidade.

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As teorias de orientação sociológica não conseguem explicar como indivíduos exposto a ambientes semelhantes se comportem de maneira tão diferente, e que sujeitos que crescem/desenvolvem-se em ambientes criminógenos não delinquam, ao passo que outros que vivem em ambientes com riscos ambientais mínimos, cometam delitos.

8. Teoria da Desorganização Social entende que o crime é fruto da ruptura e má estruturação das unidades familiares, que controlariam o crime. A desorganização social causa uma perturbação da cultura existente por mudança social, evidenciada por falha dos controlos sociais tradicionais, morais conflitantes e no declínio da confiança dessas instituições; Teoria da Subcultura Delinquente: prega a existência de uma subcultura da violência, o que leva algumas sociedades a aceitar a violência como uma maneira normal de resolver conflitos sociais e também sustenta que alguns grupos até valorizam a violência; Teoria da Anomia: sustenta que o crime é um fenômeno normal e intrínseco da estrutura social, considerando que até um certo ponto, o crime é tido como necessário e útil para o equilíbrio social. A anomia é caracterizada por uma situação social onde falta coesão e ordem, especialmente no tocante a normas e valores.

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Nesse liame, foi natural o ressurgimento de pesquisas envolvendo neurociências e criminologia, merecendo destaque os estudos desenvolvidos por Adrian Raine9. Tal ressurgimento pode ser constatado pelo levantamento realizado pela MacArthur Foundation Research Network on Law and Neuroscience, da Vanderbilt University, que mostra o aumento no número de publicações envolvendo direito e neurociências entre os anos de 1984-201710. Segundo Ventura (2010), a neurociência compreende o estudo do sistema nervoso e suas ligações com toda a fisiologia do organismo, incluindo a relação entre cérebro e comportamento. O controle neural das funções vegetativas11, das funções sensoriais e motoras, da locomoção, reprodução, alimentação e ingestão de água, os mecanismos da atenção e memória, aprendizagem, emoção, linguagem e comunicação, são temas de estudo da neurociência. Robert Lent (2010) assevera que “o que chamamos simplificadamente como neurociência é na verdade neurociências”, em virtude da interdisciplinaridade que envolve o estudo do cérebro e de modo esquemático essa área do conhecimento pode ser dividida em cinco grandes disciplinas neurocientíficas, a saber: neurociência molecular, neurociência celular, neurociência sistêmica, neurociência comportamental e neurociência cognitiva12.

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Apesar do termo mais adequado ser neurociências, doravante apenas nomearemos essa ciência no singular, ou seja, como neurociência. 9. Disponível em: . Acesso em 21 jan. 2019. 10 Evolução das publicações envolvendo direito e neurociências entre os anos de 1984 a 2017. Disponível em: http://www.lawneuro.org/bibliography.php. Acesso em: 22 jan. 2019. 11 Digestão, circulação, respiração, homeostase, temperatura. 12 Grossi (2014), explica que a neurociência pode ser compreendida por meio de cinco abordagens: 1. Neurociência Molecular: investiga a química e a física envolvidas na função neural. Estuda as diversas moléculas de importância funcional no sistema nervoso. 2. Neurociência Celular: investiga os tipos celulares sistema nervoso e o funcionamento de cada um. 3. Neurociência Sistêmica: estuda as regiões do sistema nervoso, dos processos como a percepção, o discernimento, a atenção e o pensamento. 4. Neurociência Comportamental: estuda a interação entre os sistemas que influenciam o comportamento, explica as capacidades mentais que produzem comportamentos como o sono, emoções, sensações visuais, dentre outros. 5. Neurociência Cognitiva: estuda as capacidades mentais mais complexas como aprendizagem, linguagem, memória e planejamento.

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Sobre esse tema, Fernandes (2010) ensina que a aplicação da neurociência ao direito possibilitará o entendimento da conduta humana de maneira ímpar: Neurociências e Direito constituem, sem dúvida, um tema novo. Um tema com implicações sociais, ontológicas e metodológicas de uma dimensão não comparável com nenhum outro, pois se refere especificamente à relação entre os mecanismos que geram a conduta humana, o cérebro, e as consequências, em sociedade, dessa conduta. (...) E ainda quando a Neurociências e o Direito parecem ter distintos objetivos e interesses, no sentido de que a primeira busca entender a conduta humana (pensamento, emoção, etc.) e o segundo julgá-la (intencionalidade, culpabilidade, responsabilidade, etc.), resulta evidente que ambas as disciplinas também podem ajudar-se mutuamente. Apesar de que entender e julgar são atividades diferentes, os esforços por entender o comportamento humano, suas causas, motivações, limites e fatores condicionantes, podem ser de grande apoio, não somente nos juízos sobre culpabilidade ou inocência, senão também no próprio processo de realização prático-concreta (interpretação, justificação e aplicação) do Direito (Fernandes, 2010)13.

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Atualmente, com o advento das tecnologias de imagens cerebrais, aliada a todo conhecimento acerca do funcionamento cerebral da neurociência e áreas correlatas, tem-se um instrumento muito sensível para investigar a anatomia cerebral da violência. Segundo Daile Valančienė (2013), os métodos e técnicas de imageamento cerebral podem ser divididos em técnicas de imagens funcionais que determinam funções fisiológicas e que utilizam de tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SCPECT), tomografia por emissão de pósitrons (PET scan), ressonância magnética funcional (fMRI), eletroencefalografia (EEG), magnetoencefalografia (MEG) e tomografia por impedância elétrica (EIT); e técnicas de imagens estruturais que procuram identificar informações anatômicas, feitas por

13 Fernandes, Atahualpa, Os labirintos neuronais do Direito: livre-arbítrio, responsabilidade, racionalidade. Disponível em: https://www.researchgate.net/profile/Atahualpa_ Fernandez2/publication/237065374_os_labirintos_neuronais_do_direito_livrearbitrio_ responsabilidade_racionalidade/links/00b7d51b1f54f5ff6b000000/os-labirintosneuronais-do-direito-livre-arbitrio-responsabilidade-racionalidade?origin=publication_ detail. Acesso em: 23 mar. 2019.

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radiografia, tomografia computadorizada (CT), ressonância magnética (MRI) e ultrassonografia (US). A tomografia por emissão de pósitrons (PET scan), destaca-se, uma vez que permite medir simultaneamente a atividade metabólica de diversas regiões do cérebro14 , sendo possível investigar se há alterações no funcionamento cerebral, especialmente em regiões envolvidas com inibição, modulação comportamental, como o córtex pré-frontal e a amigdala. Com efeito, a utilização de utilização de técnicas de imageamento cerebral tem permitido compreensão delinquente, bem como tem possibilitado a aplicação adequada da sanção, pois conforme veremos a seguir, o indivíduo pode cometer crimes bárbaros influenciados por alguma disfunção cerebral, e não muitas vezes, sequer consegue se controlar ou entende o caráter ilícito da sua contduta. Nessa perspectiva, Adrian Raine (2015) sugere “(...) devemos ser cautelosos. A violência é extremamente complexa (...)”, de modo que disfunções de uma determinada região cerebral pode ajudar a > 14 PET scan é a sigla em inglês para a tomografia por emissão de pósitrons (Positron Emission Tomography) e é uma modalidade de diagnóstico por imagem que permite o mapeamento de diferentes substâncias químicas radioativas no organismo. Esse exame foi desenvolvido na Universidade de Washington, em 1973, pelos médicos Edward Hoffman e Michael E. Phelps. A PET Scan é um exame que une os recursos da medicina nuclear e da radiologia, uma vez que sobrepõe imagens metabólicas às imagens anatômicas, produzindo assim um terceiro tipo de imagem. A PET Scan mede a atividade metabólica celular de qualquer região do corpo, demonstrando assim o de atividade delas, podendo mostrar a presença de alterações funcionais antes mesmo das morfológicas, permitindo um diagnóstico ainda mais precoce de doenças ou disfunções. Na preparação para o exame, é necessário jejum de quatro a seis horas, bem como uma alimentação pobre em carboidratos na noite que o antecede. Antecedendo o exame, o paciente deve receber uma injeção de glicose ligada a um elemento radioativo (quase sempre flúor radioativo) e cerca de sessenta minutos depois deve submeter-se a uma tomografia computadorizada. A PET Scan capta os sinais de radiação emitidos pelo elemento radioativo, transformando-os em imagens e determinando assim os locais onde há presença deste açúcar, demonstrando que neste local há um metabolismo acentuado. Então, as regiões que metabolizam essa glicose em excesso, regiões do cérebro em intensa atividade e o coração aparecerão em vermelho numa imagem criada por computador. Ao passo que regiões pouco ativas apresentarão colorações frias, azul, verde. (Adaptado de ABC MED, Disponível em: . Acesso em: 20 jan. 2019.

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entender um tipo de crime, mas a mesma explicação não pode ser estendida aos demais. Conforme também veremos a seguir, os estudos em que cérebros de criminosos foram submetidos a exames com PET scan em sua maioria não demonstram causalidade, apenas associações entre a disfunção de determinada área cerebral e o cometimento de algum delito.

Plea Bargain – Resultados de Exames de Imagens Cerebrais Possibilitaram a Realização de um Acordo na Fase de Pré-Julgamento De acordo com a matéria publicada no jornal New York Times (200715 ) e com a análise do caso People v. Weinstein (Supreme Court, New York County, 1992)16, Herbert Weinstein, 65 anos, era um executivo de sucesso na área de publicidade. Em 07/01/1991, envolveu-se em uma discussão com sua esposa, mas no meio da discussão decidiu parar de discutir e afastar-se, porém, a cônjuge foi atrás do mesmo e arranhando a sua face. O mencionado golpe foi decisivo para que Weinstein estrangulasse a esposa e a jogasse pela janela do apartamento que ficava no 12º andar.

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Ao analisarem o caso, os advogados de defesa ficaram intrigados pelo fato de Weinstein não possuir qualquer histórico de violência, o que foi motivo suficiente para submetê-lo a um exame de ressonância magnética cerebral e PET scan.

15 Disponível em: https://www.nytimes.com/2007/03/11/magazine/11Neurolaw.t.html. Acesso em: 23 mar. 2019. 16 156 Misc.2d 34, People v. Weinstein, Supreme Court, New York County,1992. Disponível em: . Acesso em: 10 jan. 2019.

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O resultado foi estarrecedor, o executivo, ora criminoso, possuía um cisto aracnoide17 no lobo frontal esquerdo e que comprimia o córtex frontal e temporal. Os resultados foram apresentados numa audiência prévia e analisados pelo neurologista Antonio Damásio, que foi contundente ao defender que o Réu tinha uma redução na capacidade de regular suas emoções e tomar decisões racionais. Após o parecer do expert, e acusação que pleiteava nada menos do que 25 anos de prisão, concordou com a tese da defesa de homicídio culposo, impondo-lhe uma pena de 7 anos de prisão. Essa foi a primeira vez acusação e defesa, por meio do plea bargain, negociaram a redução da pena e a reclassificação do crime cometido diante das provas obtidas através de exames de imagens cerebrais e analisadas a luz da neurociência. Esclarece Adrian Raine (2015) que: O caso de Herbert Weinstein destaca mais uma vez a importância do cérebro na predisposição à violência. Mais especificamente, o caso sugere que déficit estrutural do córtex pré-frontal esquerdo resulta em uma anormalidade do órgão, que, por sua vez, resulta em violência. A causa dos cistos como o de Weinstein é desconhecida, e eles podem crescer durante um longo período de tempo. Também podem benignos, mas especialistas no caso testemunharam que o cisto resultou em uma disfunção cerebral que afetou de modo substancial a capacidade de Weinstein de pensar racionalmente. Isso reforçou a credibilidade de sua defesa, que alegava insanidade (Raine, 2015, p. 133).

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Analisando o caso e as características biológicas de Weinstein, fica evidente que o episódio de violência que culminou na morte de sua esposa, deu-se pela falta do controle do córtex pré-frontal sobre as regiões límbicas do cérebro, as quais são sabidamente envolvidas

17 Os cistos aracnóides são coleções intraracnóides de líquido céfalo raquiano (LCR). São de natureza congênita e se formam graças a defeito valvular das membranas aracnóides que facilita a passagem do LCR para o interior do cisto e dificulta a saída1. Embora muitos podem constituir achados incidentais, outros podem causar sintomas por compressão do parênquima cerebral ou aumento da pressão intracraniana. (Castro, Samuel Caputo de. Cistos aracnóides intracranianos: tratamento pela neuroendoscopia. Arq. Neuro-Psiquiatr., São Paulo, v. 57, n. 1, p. 63-67, mar. 1999).

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com o processamento das emoções, que por sua vez, são moduladas e processadas pelo córtex pré-frontal. Logo, a anormalidade estrutural e funcional do cérebro de Weinstein não permitiria que ele esboçasse respostas não violentas, a anormalidade foi determinante para o cometimento do crime.

A Classificação de Criminosos sob Prisma da Atividade do Córtex Pré-Frontal – Criminosos Reativos e Proativos Atualmente, os criminosos podem ser classificados em proativos ou reativos, a depender do modo como cometem crimes e do perfil de funcionamento do córtex pré-frontal (Raine, 2006; Dodge, 1991; Meloy, 1988). Criminosos proativamente agressivos conseguem planejar suas ações, são equilibrados, controlados, movidos por recompensas externas (materiais) ou internas (psicológicas), tem sangue frio e não possuem compaixão alguma, sendo essas características encontradas em assassinos em série18. Os agressivos reativos possuem sangue quente, não conseguem apresentar respostas controladas e racionais quando se deparam a ocasiões estressantes ou até mesmo quando são repreendidos.

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Com base nessa classificação, Raine et al. (1998; 2006) conseguiram classificar criminosos reativos e proativos de acordo com a atividade do córtex pré-frontal, em um estudo intitulado Reduced prefrontal and increased subcortical brain functioning assessed using positron emission tomography in predatory and affective murderers. Nesse trabalho, a pesquisa foi iniciada com 41 criminosos e para classificá-los em reativos/proativos, foram analisadas as fichas criminais, registros advocatícios, depoimentos perante as autoridades policiais e nos tribunais, reportagens, relatos de psicólogos, psiquiatras e assistentes sociais. Ao final, dos 41, 24 foram classificados como 18 “Um monte de assassinos em série se ajusta a isso – como Harold Shipman, na Inglaterra, que matou um número de 284 pessoas, a maior parte delas mulheres idosas; Ted Kaczynski, o Unabomber, cuja campanha de terror foi realizada por meio de bombas enviadas pelo correio; Peter Sutcliffe, que eliminou 13 mulheres no norte da Inglaterra; e Ted Bundy que cuidadosamente matou cerca de 35 mulheres jovens, muitas delas estudantes universitárias” (Raine, 2015, p. 75).

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criminosos reativos e 15 como criminosos proativos, alguns possuíam ambas as características e foram excluídos do estudo. Também foi constatado que o criminoso reativo possui baixo funcionamento da região ventral do córtex pré-frontal, em contraste com o proativo que possui uma ativação expressiva na referida região, o que explicaria, porque apenas os últimos conseguem planejar o crime e ainda obtém certa satisfação psicológica ao obterem êxito. Adrian Raine sugere que as características dos criminosos proativos podem ter relação com as condutas dos terroristas que reagem a um insulto sociopolítico ideológico, planejando cuidadosamente um contra-ataque (Raine, 2015). É importante esclarecer que o córtex pré-frontal está envolvido nas funções executivas, as quais estão relacionadas com as habilidades para diferenciar pensamentos conflitantes, tomada de decisões, previsão de fatos, expectativas baseadas em ações e controle social, de modo que déficits no córtex pré-frontal conduzem a uma maior impulsividade, agressividade e inadequação social, em outras palavras, é responsável pelo surgimento de um fator criminológico de muita relevância e até então, desconhecido (Rolls, 2004; Holbrooketal., 2015).

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Além disso, esses achados também sugerem que o córtex pré-frontal age controlando as emoções desenfreadas geradas por estruturas límbicas, no caso dos criminosos reativos, bem como também é responsável pela sofisticação e planejamento dos crimes cometidos pelos proativos, os quais são guiados por uma satisfação abstrata. Assim, as descobertas dos estudos de neuroimagem são corroboradas pelos resultados em neurociências, demonstram a existência de uma base neurobiológica para criminalidade e o córtex pré-frontal está envolvido.

Pedofilia: o Elo entre o Desenvolvimento de um Tumor no Cérebro e o Cometimento de Crimes Burns & Swerdlow (2003) relatam a história de Michael, professor infantil, casado, tinha uma enteada de 12 anos, sem antecedentes psiquiátricos ou de qualquer comportamento desviante, era um típico cidadão estadunidense.

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Por volta dos 40 anos de idade, o comportamento de Michael começou a mudar, interessando-se por p*rnografia infantil e culminando no abuso sexual da enteada. Após, foi diagnosticado como pedófilo e condenado pela agressão sexual, podendo optar por submeter-se a um tratamento para pedófilos ou cumprir uma pena em regime fechado. Michael optou pelo tratamento, mas não demorou para ser expulso do programa, uma vez que as tentativas de satisfazer os seus desejos sexuais eram constantes. Um dia antes de iniciar o cumprimento da pena, procurou um hospital, queixando-se de dor de cabeça. Após ser atendido e quando estava prestes a ser liberado, alegou que acaso fosse liberado, estupraria a dona do local onde estava morando. O que forçou a equipe médica a interná-lo na ala psiquiátrica. O neurologista Russell Swerdlow percebeu problemas na marcha e que Michael urinava sobre si mesmo, sem qualquer preocupação, sintomas que o levaram a fazer um exame de Ressonância Magnética do cérebro do paciente.

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O exame mostrou que Michael tinha um tumor crescendo na base do córtex orbitofrontal (sub-região do córtex pré-frontal) e comprimindo a região pré-frontal direita, conforme observa-se a seguir:

Figura 1 – Imagem de ressonância magnética do cérebro do Sr. Oft. Presença de um tumor na região do córtex orbitofrontal (dentro do círculo vermelho). A, B e C referem-se aos diversos planos do exame. Fonte: Adaptado - Disponível em: https://dx.doi.org/10.1001/archneur.60.3.437. Acesso em: 26 jan. 2019.

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Após a retirada do tumor pelos neurocirurgiões, a emoção, a cognição e a atividade sexual de Michael voltaram ao normal, e a culpa pelo que havia feito com a enteada vieram à tona19. Michael recebeu alta médica, concluiu o programa de tratamento de pedófilos e após alguns meses voltou a residir com a esposa e a enteada. Entretanto, após certo tempo, o comportamento de Michael retornou a mesma situação de antes da retirada do tumor, após exames, a mesma equipe médica constatou a recidiva do tumor. Após a nova cirurgia para retirada o tumor, o comportamento voltou a melhorar, dessa vez a recuperação foi completa. O córtex orbitofrontal é uma sub-região do córtex pré-frontal envolvida com a regulação do controle social. Lesões nessa região comprometem o desenvolvimento do senso/julgamento social e moral, resultando no empobrecimento nas tomadas de decisões, impulsividade e sociopatia. Também é de conhecimento que o córtex orbitofrontal é uma das estruturas responsáveis pela inibição dos impulsos sexuais (Eslinger e Damasio, 1985; Beauregardetal., 2001).

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Nesse liame, assevera Priscilla Placha Sá que a pedofilia enseja um julgamento bastante severo em face de quem o pratica, no caso em comento para que o juízo de reprovabilidade é menor pelo fato de que há uma “explicação” neurobiológica bastante razoável e que não está no domínio do sujeito; o tumor é o responsável pela libido pervertida do sujeito e a doença é o mal, ou seja, o conhecimento do fator criminógeno neurobiológico, o tumor, torna desnecessária a imposição de qualquer pena, mas impõe o tratamento adequado, caso exista. Assim, tem-se que o surgimento de diferentes paradigmas clínicos da neurociência está convergindo para a mesma conclusão de que há uma significativa base neurobiológica para a criminalidade.

19 O caso descrito foi publicado no artigo científico intitulado “Right Orbitofrontal Tumor With Pedophilia Symptom and Constructional Apraxia Sign” publicado na revista Archives of Neurology, em 2003.

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Relação Temporal entre Lesões Cerebrais e o Cometimento de Crimes Com o intuito de demonstrar que disfunções no funcionamento cerebral podem ter um papel relevante para o cometimento de crimes, pode-se observar na Tabela 1 alguns casos de correlação entre a ocorrência de lesões cerebrais e o aparecimento do comportamento desviante/cometimento de crimes. Tabela 1 - Relação entre cometimento de crimes após a lesão de determinadas regiões cerebrais (continua). Caso

Comportamento

Etiologia

Ressecção Raiva, agressão e incêndio de abscesso criminoso cerebral Raiva, agressão e Trauma destruição de propriedade Raiva, agressão e Desconhecido destruição de propriedade Agressão verbal/física, mentira, roubo, falta de empatia, culpa, remorso Trauma e comportamento sexual de risco Agressão verbal/física, mentira, roubo, falta de empatia, culpa, remorso Tumor e comportamento sexual de risco Mentira, roubo, fraude e Tumor crimes financeiros

7

Mentira, decisões financeiras ilegais

8

Roubo, agressão e violência

1 2 >

3

4

5

6

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Referência Tonkonogy, 1991

16

48

23

42

21

42

1.5

3

Anderson etal., 1999

1

9

Anderson etal., 1999

33

33

Tumor

35

35

Tumor

56

56

Fonte: Adaptado de Darby, 2018, p. 601-606.

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Lesão Crime (idade) (idade)

Tonkonogy, 1991 Tonkonogy, 1991

Meyers etal., 1992 Eslinger e Damasio, 1985 Blair e Cipolotti, 2000

Tabela 1 - Relação entre cometimento de crimes após a lesão de determinadas regiões cerebrais (conclusão). Caso

Comportamento

9

Decisões financeiras ilegais e desonestidade

10

Decisões financeiras ilegais e desonestidade

11

Etiologia Trauma

Acidente vascular encefálico Agressão, violência, roubo Hemorragia e suicídio sub-aracnóide

Lesão Crime (idade) (idade)

Referência

54

54

Traneletal., 2002

32

32

Tranel etal., 2002

5

14

Nakaji etal., 2003 Nakaji etal., 2004 Mitchell etal., 2006 Mitchell etal., 2006 Mitchell, 2006

12

Violência e agressão

Tumor

4

6

13

Estupro (3 vezes)

Tumor

26

n/a

14

Homicídio e estupro

Trauma

32

32

Tumor

14

18

Lesão cirúrgica

40

62

Orellana etal., 2013

Trauma

7

34

Sener etal., 2015

15 16 17

Homicídio e estupro (2 vezes) Homicídio da mãe, após tentar o mesmo crime 2 anos antes Homicídio

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Fonte: Adaptado de Darby, 2018, p. 601-606.

Analisando-se a tabela acima, é possível constatar a existência do nexo de causalidade entre o aparecimento de tumores, traumas, lesões cirúrgicas, acidentes vasculares encefálicos, hemorragias sub-aracnóide, ressecção de abscesso cerebral com significativas mudanças comportamentais e com o cometimento de crimes

A Influência da Neurociência nas Decisões da Suprema Corte dos EUA – Decisões Acerca da Culpabilidade Criminal de Adolescentes A Suprema Corte dos EUA, ao longo dos últimos anos, ao julgar casos envolvendo a culpabilidade criminal de jovens, fundamentou

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suas decisões em estudos de neurociências 20 : Thompson v.\ Oklahoma, 487 U.S. 815 (1988)21; Roper v. Simmons, 543 U.S. 551 (2005)22; Graham v. Florida, 560 U.S. 48 (2010)23. No caso mais recente (2010), a Corte decidiu que as decisões condenavam adolescentes a prisão sem a possibilidade de liberdade condicional são inconstitucionais. Neste caso, a decisão da Suprema Corte foi baseada em estudos científicos que demonstram que os cérebros de adolescentes ainda não estão totalmente desenvolvidos, são imaturos no aspecto psicológico e neurobiológico, não sendo, portanto, plenamente responsáveis ​​pelo seu comportamento como os adultos. Frisa-se que os crimes cometidos por adolescentes normalmente decorrem de decisões impulsivas, seja porque seus córtex préfrontais ainda não estão totalmente desenvolvidos, seja porque o corpo estriado ventral é mais responsivo a recompensas ou estímulos emocionais, os levando a assumirem mais riscos24. Já foi constatado que o estriado ventral e o córtex ventromedial estão mais ativados durante a adolescência em relação a infância ou a vida adulta. Considerando que essas regiões são relevantes no processamento das emoções, avaliação das recompensas, e punições, tudo indica que não é plausível impor uma pena tão severa para um agente que ainda não possui o desenvolvimento mental completo (Hareetal., 2008).

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Desse modo, a neurociência não apenas auxilia a compreender os motivos que levaram o indivíduo a cometer determinado crime, podendo também ser uma ferramenta de grande valia para aplicar adequadamente as punições àqueles que violam as leis.

20 Steinberg, L. The influence of neuroscience on US Supreme Court decisions about adolescents' criminal culpability. Nature Reviews Neuroscience, v. 14, p. 513, 06/12/online 2013. 21 Disponível em: < https://supreme.justia.com/cases/federal/us/487/815/>. Acesso em: 7 abr. 2019. 22 Disponível em: < https://supreme.justia.com/cases/federal/us/543/551/>. Acesso em: 7 abr. 2019. 23 Disponível em: < https://supreme.justia.com/cases/federal/us/560/48/>. Acesso em: 7 abr. 2019. 24 Steinberg, L. Should the science of adolescent brain development inform public policy? American Psychologist, US, v. 64, n. 8, p. 739-750, 2009. ISSN 1935-990X.

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A influência da Neurociência no Direito Penal Primeiramente é importante que nas palavras do professor Luiz Regis Prado (2013), “o delito, analiticamente, é a ação ou omissão típica, ilícita e culpável”, ou seja, possuem três elementos essenciais e necessários. Tais elementos podem ser melhor compreendidos com a lição de Rogério Greco que discorre o seguinte: A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são três elementos que convertem uma ação em um delito. A culpabilidade – a responsabilidade pessoal por um fato antijurídico – pressupõe a antijuridicidade do fato, do mesmo modo que a antijuridicidade, por sua vez, tem de estar concretizada em tipos legais. A tipicidade, a antijuridicidade, por sua vez, tem de estarem concretizadas em tipos legais. A tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade estão relacionadas logicamente de tal modo que cada elemento posterior do delito pressupõe o anterior (Greco apud Hans Welzel, 2012, p. 29).

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Nesse liame, ressalta-se que esse tópico ater-se-á ao último elemento acima mencionado, a culpabilidade. Ao longo dos anos, a doutrina tem estudado e formulado diversas teorias sobre acerca da culpabilidade, culminando na criação a teoria limitada da culpabilidade, que considera que a culpabilidade é composta pelos elementos imputabilidade, potencial consciência da ilicitude e exigibilidade de conduta diversa25 (Masson, 2016). Masson (2016), esclarece a partir da análise do tratamento do erro (arts. 19 e 21, do CP) e do item 19 da Exposição de motivos da Nova Parte Geral do Código Penal, é possível constatar que a legislação Pátria acolheu a teoria limitada da culpabilidade: Repete o Projeto as normas do Código de 1940, pertinentes às denominadas “descriminantes putativas”. Ajusta-se, assim, o Projeto à teoria limitada pela culpabilidade, que distingue o erro incidente sobre os pressupostos fáticos de uma causa de justificação do que incide sobre a norma permissiva. Tal como no

25 Analisando as circunstâncias judiciais do art. 59, caput, do Código Penal, conclui-se que a culpabilidade, que “se determina pela imputabilidade, exigibilidade de conduta diversa e possibilidade do conhecimento do injusto” (STF - HC 73097 / MS).

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Código vigente, admite-se nesta área a figura culposa (artigo 17, § 1º)26.

De acordo com a doutrina de Miguel Reale Júnior (2000) que “culpabilidade é a reprovação por ter o agente agido antijuridicamente, optando, assim, por um desvalor quando podia abster -se de fazê-lo, já que lhe era facultado motivar-se pelo valor imposto pela norma e pelo valor da norma como dever”. Assim, pode-se conceituar a culpabilidade como sendo o juízo de censura, o juízo de reprovabilidade, que incide sobre a formação e exteriorização da vontade do responsável por um fato típico e ilícito, com o propósito de aferir a necessidade de pena, de modo a culpabilidade também é o fundamento e limite da pena. Quanto ao elemento imputabilidade, conforme assevera Nucci (2016), corresponde ao conjunto de condições pessoais, envolvendo a inteligência e vontade, que permite ao agente ter entendimento do caráter ilícito do fato, comportando-se de acordo com esse conhecimento, possuindo como binômio necessário para a formação das condições pessoais do imputável a sanidade mental e maturidade.

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Nucci (2016) também ensina que o inimputável (doente mental ou imaturo, que o menor) não comete crime, mas pode ser sancionado penalmente, aplicando sê-lhe medida de segurança27, que se baseia no juízo de periculosidade, diverso, portanto, da culpabilidade, nos termos do arts. 96 e seguintes do Código Penal. Caso o agente não tenha as condições acima mencionadas, será considerado inimputável, por faltar-lhe a culpabilidade. Por outro lado, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento, será considerado

26 Disponível em: . Acesso em: 1 maio 2019. 27 Medida de segurança: é uma espécie de sanção penal destinada aos inimputáveis e, excepcionalmente, aos semi-imputáveis, autores de fato típico e antijurídico, embora não possam ser considerados criminosos, por não sofrerem o juízo de culpabilidade, mas, sim, de periculosidade, devendo ser submetidos a internação ou a tratamento ambulatorial, pelo mínimo de um a três anos, sem prazo máximo definido.

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Temas em Neurociências

semi-imputável, podendo a pena ser reduzida de um a dois terços (art. 26, parágrafo único, CP)28. Como demonstrado anteriormente, muitos indivíduos não conseguem entender ou se controlar em situações estressantes, não conseguindo exprimir resposta que não seja violenta, explosiva e sem qualquer valoração entre certo/errado, ou melhor, não conseguem pautar-se por tal compreensão ou sendo ela incompleta/parcial, e muitas vezes, acabam praticando fato típico e antijurídico, mas não culpável, sendo o agente considerado inimputável ou semi-imputável, a depender da analise concreta Desse modo, um indivíduo que comete um fato típico e antijurídico, sem a plena compreensão do que fazia, não merece ser considerado criminoso, mas deve ser submetido a medida de segurança. Nesse liame, Nucci (2016) esclarece que a medida de segurança não é pena, mas não deixa de ser uma espécie de sanção penal, aplicável aos inimputáveis ou semi-imputáveis, que praticam fatos típicos e ilícitos (injustos) e precisam ser internados ou submetidos a tratamento, tratando-se, pois, de medida de defesa social.

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É de suma importância a análise das condições pessoais do agente, maturidade (18 anos ou mais) e higidez biopsíquica, compreendida pela saúde mental e capacidade de apreciar a criminalidade do fato, para compreender-se adequadamente a culpabilidade. No caso em comento, para se averiguar a imputabilidade, ou melhor a inimputabilidade ou a semi-imputabilidade de algum acusado face alguma evidência neurocientífica, faz-se necessário compreender melhor a higidez mental que pode ser avaliada com o auxílio dos seguintes critérios:

28 Art. 26 - É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Redução de pena Parágrafo único - A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento.

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• Biológico: leva-se em conta exclusivamente a saúde mental do agente, isto é, se o agente é, ou não, doente mental ou possui, ou não, um desenvolvimento mental incompleto ou retardado. A adoção restrita desse critério faz com que o juiz fique absolutamente dependente do laudo pericial; • Psicológico: leva-se me consideração unicamente a capacidade que o agente possui para apreciar o caráter ilícito do fato ou de comportar-se de acordo com esse entendimento. Acolhido esse critério de maneira exclusiva, torna-se o juiz a figura de destaque nesse contexto, podendo apreciar a imputabilidade com imenso arbítrio; • Biopsicológico: leva-se em conta os dois critérios anteriores, ou seja, verifica-se se o agente é mentalmente são e se possui capacidade de entender a ilicitude do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento. É o princípio adotado pelo Código Penal, como se pode vislumbrar no art. 26. (...) Logo, não é suficiente que haja algum tipo de enfermidade mental, mas que exista prova de que esse transtorno afetou, realmente, a capacidade de compreensão do ilícito, ou de determinação segundo esse conhecimento (Nucci, 2016, p. 269).

No Brasil, os juristas ainda são muito resilientes diante da possibilidade de levar situações baseadas na neurociência aos tribunais, possivelmente por desconhecimento da infinidade de oportunidades dessa ciência, especialmente por permitir o melhor entendimento do crime e do criminoso.

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A oportunidade de utilizar a neurociência na prática forense pauta-se no critério biopsicológico da inimputabilidade (art. 26, do CP) e do instrumento processual para dirimir tal controversa, corresponde ao incidente da insanidade mental (art. 149 e seguintes, do CPP), mas acredito que o último ainda não é utilizado em sua plenitude, pois as modernas técnicas de neuroimagens ainda não são utilizadas. Como demonstramos e defendemos que os crimes podem ter uma origem neurobiológica que decorre de algum defeito congênito, genético ou traumático que altera o funcionamento cerebral. É fato que essas sutis alterações no padrão de funcionamento do cérebro só podem ser identificadas ao utilizar-se a metodologia adequada, como exames de imagens cerebrais, de modo que questionamentos ou testes realizados por médicos forenses são incapazes de identificar tais alterações. É importante ressaltar que nesse liame, objetivo dos advogados deve ser o de diminuir a responsabilidade legal dos criminosos,

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Temas em Neurociências

alegando e provando que as anormalidades neurobiológicas afetam o comportamento e a tomada de decisões, ou seja, demonstrando que é inimputável ou semi-imputável, sendo vedada a arguição genérica, sob pena de banalizar-se esse instituto e cair em descrédito perante os operadores do direito. Por outro lado, promotores de justiça podem utilizar a neurociência para demonstrar a periculosidade futura dos criminosos, uma vez que a causa biológica que contribuiu para o cometimento do crime sempre estará presente no indivíduo, não restaurando-se com o cumprimento de pena restritiva de liberdade ou tampouco com após a aplicação de uma pena alternativa/medida de segurança. Assim, caberá ao juiz ou ao corpo de jurados, dependendo do tipo de crime, avaliar todas peculiaridades do crime, do criminoso e as informações obtidas através de exames de imagens, em outras palavras, o sucesso da defesa estará pautada na escolha do exame de imagem adequado, desafiando a área afetada, com o intuito de mostrar a contribuição da sua disfunção com o cometimento do delito, bem como toda a fundamentação/argumentação neurobiológica a convencer o juiz ou os jurados.

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No que tange a prova no processo penal, assevera Lima (2015) que a confiabilidade é o ponto crucial para as provas periciais nos tribunais. Em casos que envolvem transtornos mentais, os juízes geralmente apoiam as decisões em opiniões e depoimentos de testemunhas ou de profissionais especializados no cruzamento da saúde mental com a lei. Além disso, Nucci (2016) ensina que lei penal adotou o critério misto (biopsicológico), sendo indispensável a existência de laudo médico para comprovar a doença mental ou mesmo o desenvolvimento mental incompleto ou retardado (é a parte biológica), situação não passível de verificação direta pelo juiz. Nada obstante, ainda remanesce o lado psicológico, que consiste na capacidade de se conduzir de acordo com tal entendimento, compreendendo o caráter ilícito do fato. Cabendo a análise desse critério ao magistrado, analisando as provas colhidas ao longo da instrução, não ficando adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitálo, no todo ou em parte (art. 182, do CPP) ou até mesmo substituir o expert.

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A relevância dos exames de imagens e da neurociência na prática forense está justamente em se observar a criminalidade, isto é, observar o substrato neural responsável pelo delinquente cometer determinado delito, observar o que há de errado, se há soluções, não havendo, aplicar-lhe a medida de segurança adequada. Ainda de acordo com Lima (2013) os indivíduos que estudados até o momento podem ser tratados como biodelinquentes, que são distinguidos do demais por cometerem a prática delituosa alheios à própria volição e que agem pressionados por transtornos neurológicos originários de doenças pré-existentes, adquiridas ou traumatizantes da caixa craniana, não alcançáveis ou não, pelas técnicas de neuroimagem atuais. Esses biodelinquentes, ou apenas, criminosos, não possuem desenvolvimento mental incompleto ou retardado, muitas vezes não sendo abobalhados ou expressando qualquer exteriorização dessa disfunção, mas conforme ensina Nucci (2016), esses criminosos possuem uma diminuta capacidade de compreensão do ilícito ou falta de condições de se autodeterminar, conforme o precário entendimento, tendo em vista ainda não ter o agente atingido a sua maturidade intelectual e física, seja por conta da idade, seja porque apresenta alguma característica particular, como o silvícola não civilizado ou o surdo-mudo sem capacidade de comunicação.

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Ainda sobre a ótica da imputabilidade, Eagleman (2012) defende que os criminosos que possuem alguma disfunção cerebral deveriam sempre serrem tratados como incapazes de ter atuado de outra maneira, de modo que a atividade criminosa deve ser compreendida como produto de uma anormalidade cerebral. Eduardo Demetrio Crespo e Manuel Moroto Calatayud fazem o seguinte alerta: No caso em que novos conhecimentos empíricos obtidos, por exemplo, através das modernas técnicas de neuroimagem, demonstrem que se vinha imponde penas a suspeitos, cuja conduta delitiva, agora sabemos, se devia a déficits cerebrais, isso deve ser levado em conta a favor do autor. Em particular, é muito provável que os novos conhecimentos deem lugar a uma ampliação dos casos de inimputabilidade e semiimputabilidade (Crespo & Calatayud, 2013, p. 39).

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Arremata Placha Sá dizendo que muitos sujeitos foram tratados como cruéis e malvados sem na verdade o serem, pois não se conhecia/não se aplicava a neurociência na prática forense, como no caso do homem que começou a se comportar como um pedófilo, quando na verdade era um tumor cerebral que pressionava uma área responsável pela libido, ou seja, o criminoso era o tumor e não o agente: Nessa linha de raciocínio é que a neurociência por ser tida como uma veia libertadora: ao se constatar que a causa do (f)ato é uma doença que pode ser extirpada e que pode ser tratada, libera-se o sujeito de sua responsabilidade por que não haveria necessidade de imposição de qualquer imposição de qualquer consequência jurídico-penal por algo que é eventual e fora do domínio e do controle de sua vontade. Parece que essa possibilidade poderia ser compreendida a parir de uma leitura ampliada do que descrito nos art. 26, caput e 28, §1º, do Código Penal, em que a questão do fortuito e da força maior que toma o livre-arbítrio do sujeito excluem sua responsabilidade penal. É possível notar que para alguns há certo pesar pelo fato de esse conhecimento neurocientíficos ter sido descoberto só mais recentemente, o que faria pensar que muitos sujeitos foram tratados como cruéis e malvados sem na verdade o serem (Placha Sá, 2014, p. 221).

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Em decisão que limitou o prazo máximo de cumprimento de medida de segurança, também é importante ressaltar que pelo fato das disfunções neurobiológicas, em via de regra, serem permanentes, mesmo após o cumprimento integral da medida de segurança imposta, o agente continuará a ter a disfunção neurobiológica que foi responsável pelo crime anteriormente cometido. Apesar do agente submetido a excepcional medida de segurança não ter cura ou não se regenerar com os passar os anos, veda-se a sua internação ou enclausuramento por tempo indeterminado, nos termos do art. 5º, XLVII, da Constituição da República, garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas. Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento de que a medida de segurança tem natureza punitiva, razão pela qual a ela se aplicam o instituto da prescrição e o tempo máximo de duração de 30 anos, esse último decorrente da vedação constitucional às penas perpétuas (HC 98.360, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, Dje 23.10.2009).

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Feitos tais esclarecimentos, pode-se concluir que a neurociência precisa ser inserida na prática forense brasileira, a exemplo dos Estados Unidos. Não obstante, é fato que a utilização da neurociência na prática forense depende da participação e interesse dos seus principais operadores (peritos, assistentes técnicos, advogados, promotores e juízes) possibilitara a evolução da justiça criminal brasileira, elevando-a para um novo patamar, permitindo a melhor compreensão dos crimes e dos criminosos, e por conseguinte, lhes será imposta a sanção correta, seja ela uma pena, seja ela uma medida de segurança. Portanto, propiciará o alcance da justiça criminal.

Considerações Finais A utilização da neurociência na prática forense tem o potencial de melhorar a precisão das decisões judiciais, diminuindo os erros e permitindo a aplicação sanção adequada e justa aos criminosos, bem como possibilita entender as possíveis causas neurobiológicas que levaram criminosos a delinquir.

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Nada obstante, é importante ressaltar que que a neurociência será uma relevante ferramenta a serviço da justiça, ao passo que advogados poderão utilizá-la para diminuir a pena e atenuar a responsabilidade dos réus, alegando e provando que as anormalidades neurobiológicas afetaram o comportamento e a tomada de decisões dos acusados. Os promotores poderão demonstrar a periculosidade futura dos acusados, uma vez que a causa neurobiológica que contribuiu para o cometimento do crime, sempre estará presente no indivíduo, não restaurando-se com o cumprimento de qualquer tipo de sanção. Portanto, a aplicação da neurociência a prática forense brasileira será de grnde valia, pois aumentará a profundidade das decisões judiciais, cabendo ao julgador, avaliar todas as suas peculiaridades, analisar robustos exames de imagens cerebrais e as possíveis influências neurobiológicas, bem como sopesar os argumentos e provas produzidas por advogados e promotores ao longo dos processos criminais, tudo, a fim de se atingir a justiça criminal.

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Temas em Neurociências

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Transtorno Obsessivo-Compulsivo: Integração entre Perspectiva Evolucionista e Dados Neurobiológicos1

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Celio Roberto Estanislau* Universidade Estadual de Londrina

Thiago Soares Campoli Universidade Estadual de Londrina

Rodrigo Moreno Klein Universidade Estadual de Londrina

Acauã Galdino Vieira Silva Universidade Estadual de Londrina

Isis Amanda Andrade Amadeu Universidade Estadual de Londrina

*

Guilherme Machado Borges

Autor para correspondência: celio.estanislau@ gmail.com 1. Durante a elaboração do capítulo nosso grupo contou com apoio de Fundação Araucária (prot. 38.134) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (proc. 471214/2014‑0). C.E. recebeu bolsa de pesquisa do CNPq (proc. 307388/2015-8), I.A.A.A. recebeu bolsa de iniciação científica da Fundação Araucária.

Universidade Estadual de Londrina

Introdução O transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) é caracterizado por obsessões e compulsões. As obsessões são compostas por conteúdos intrusivos tais como pensamentos, imagens etc. As compulsões assumem a forma de atos que podem ser repetitivos, estereotipados e perseverantes. As compulsões constituem tentativas de alívio, ainda que temporário, da ansiedade induzida pelas obsessões. A conexão entre elas é, no entanto, muitas vezes pobre e pouco razoável (American Psychiatric Association, 2013). A visão tradicional apresenta o TOC como uma doença mental. Essa concepção deriva da observação de que pessoas que preenchem os critérios diagnósticos para o transtorno apresentam disfunção psicológica, sofrimento e resposta culturalmente atípica (Barlow & Durand, 2008).

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Com prevalência ao longo da vida de 1,2 % (Kessler et al., 2005) e taxas crescentes entre parentes de primeiro grau, gêmeos dizigóticos e monozigóticos, respectivamente, o TOC seguramente sofre importantes influências de fatores genéticos (American Psychiatric Association, 2013). De forma geral, caracteres que são transmitidos geneticamente estão por certo sujeitos aos efeitos da seleção com o passar das gerações. Ou seja, o TOC pode evidenciar algum mecanismo que é produto da seleção natural. Pode o TOC ter raízes em mecanismos originalmente benéficos? A resposta a essa pergunta passa por algumas pistas. Uma delas é a de que é notável a quantidade de pessoas que, sem preencher plenamente os critérios para o diagnóstico de TOC, ainda assim apresentam alguns sintomas “subclínicos” do transtorno (Ruscio, Stein, Chiu, & Kessler, 2010). Outra pista decorre de observações de que na infância é comum se observar algumas manifestações que se assemelham a sintomas de TOC. Essas manifestações, além de envolverem temáticas como segurança, limpeza e acumulação, podem também envolver algo que é na literatura em inglês referenciado como um senso de “ just right”, ou seja, uma aparente necessidade que a criança pode apresentar de que determinados objetos sejam posicionados de formas específicas, do contrário há manifestações de desconforto (Evans & Leckman, 2006). Essas informações oriundas de populações não-clínicas de adultos e de crianças sugerem que o TOC pode consistir de um mau funcionamento de algum mecanismo que está presente nas pessoas em geral.

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Objetivo Tendo em conta suas características e o papel de fatores genéticos no TOC, o objetivo deste capítulo é apresentar uma leitura evolucionista do transtorno baseada num modelo em que convergem modelos funcionais, dados neurobiológicos e explicações evolucionistas.

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Um Olhar Evolucionista sobre o TOC É possível que os comportamentos presentes no TOC tenham efetivamente sido conservados durante a evolução (Stein, 2000). De modo geral, pode-se ter como hipótese de trabalho que a forma que características psicológicas assumem atualmente decorre de as mesmas terem sido boas soluções para problemas de sobrevivência ou reprodução no passado (Goldfinch, 2015). Assim, comportamento de limpeza e acumulação, por exemplo, teriam trazido algumas vantagens de sobrevivência e, portanto, foram selecionados. No TOC, porém, são observadas manifestações disfuncionais dos mesmos. É muito conhecida a frase segundo a qual “nada na Biologia faz sentido exceto à luz da evolução” (Dobzhansky, 1973). A perspectiva evolucionista, além de, como veremos, originar teorias e concepções sobre os transtornos, cumpre um importante papel de princípio integrador. Ou seja, mesmo teorias que não se originam diretamente dessa perspectiva, se tornam mais sólidas se sobrevivem ao crivo do olhar evolucionista.

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Os defensores de um olhar evolucionista apresentam um leque de possíveis explicações para os transtornos (Glass, 2012). Um transtorno pode, por exemplo, representar uma combinação desastrosa de características que individualmente são, cada uma, adaptativa; ou, pode constituir um extremo populacional de uma característica que na maior parte da população é vantajosa; ou ainda, o que aparece como transtorno em ambiente urbano no século XXI é constituído por respostas que seriam adaptativas em ambiente ancestral. Isso são apenas exemplos de explicações evolucionistas possíveis. As pressões seletivas podem assumir diferentes formas. Os seres vivos encaram diversos desafios que podem acarretar danos para sua vida e de seus coespecíficos. Predadores, contaminações, quedas, hierarquia social e outras situações podem diminuir a chance de sucesso reprodutivo. Alguns desses riscos podem ser ao mesmo tempo extremamente danosos e improváveis, de forma que podem nem mesmo ocorrer no período de vida da maioria dos indivíduos. Por outro lado, a capacidade de antecipar e evitar riscos, mesmo que pouco prováveis, tem óbvia vantagem evolutiva. Considerando que o

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TOC é uma patologia que envolve obsessões e compulsões muitas vezes relacionadas à segurança do indivíduo e de pessoas próximas a ele, pode ser produtivo examiná-lo enquanto funcionamento anormal de um sistema psicológico selecionado para evitar riscos futuros em potencial. Tal mecanismo estaria presente nas pessoas em geral. O fenômeno clínico das obsessões apresenta grande semelhança com algo experimentado por grande parte da população, os pensamentos intrusivos. No estudo de Rachman & De Silva (1978), aproximadamente 80% da amostra de indivíduos não-psiquiátricos reportaram em um questionário ter experimentado pensamentos intrusivos. O achado foi replicado (Salkovskis & Harrison, 1984) e teve importante impacto na área (Rassin & Muris, 2007). Na esteira dos achados de Rachman e De Silva (1978), Muris (1997) estudou se também alguns comportamentos ritualísticos, semelhantes às compulsões de pacientes com TOC, estariam presentes em indivíduos não-psiquiátricos. O autor encontrou que 54,7% dos entrevistados relataram ter comportamentos ritualísticos como checagem, limpeza repetida ou, ainda, comportamentos de proteção “mágica” (tocar um objeto de sorte, dizer algum número em particular ou contar números). Adicionalmente, Freeston, Ladouceur, Thibodeau e Gagnon (1991) relataram que 92% dos estudantes universitários entrevistados em seu estudo disseram ter desenvolvido alguma atividade sistemática em resposta a pensamentos intrusivos experimentados. Comportamentos ritualísticos como os descritos nesses estudos apresentam semelhanças com as compulsões apresentadas por indivíduos com TOC.

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Conjuntamente, essas observações apontam para um continuum entre a população clínica e indivíduos sem qualquer transtorno psiquiátrico no que se refere às obsessões e compulsões. Além disso, tais observações se alinham à noção de que essas características foram favorecidas ao longo da evolução humana. Um curioso aspecto do TOC que merece apreciação a partir da perspectiva evolucionista são as diferenças de gênero. Nesse sentido, diferenças entre homens e mulheres quanto ao conteúdo e forma de obsessões e compulsões podem estar relacionados com diferenças quanto ao que cada sexo teria enquanto desafios para a promoção de aptidão inclusiva (ou seja, a promoção da

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multiplicação e sobrevivência de cópias de seus genes). Dessa forma, desafios relacionados à formação de casal e ao cuidado da cria poderiam explicar pelo menos parte das diferenças sexuais. A perspectiva evolucionista pode ser aplicada ainda a variações em um dos gêneros, por exemplo ao abordar alterações na intensidade das obsessões de contaminação ao longo do ciclo menstrual de uma mulher. Assim, a perspectiva evolucionista é capaz de gerar hipóteses sobre diferenças de gênero que talvez jamais se originariam a partir apenas de investigação de mecanismos proximais (Saad, 2006). O TOC é bastante heterogêneo, de forma que há diversas manifestações de obsessões e compulsões. Assim, curiosamente, duas pessoas diagnosticadas com TOC podem apresentar sintomas que não coincidem. Em um estudo epidemiológico dos sintomas obsessivo-compulsivos realizado na National Comorbidity Survey Replication, foram entrevistados face a face 9282 indivíduos com idade de 18 anos ou mais, sendo que 22 % responderam já terem apresentado algum sintoma obsessivo-compulsivo em algum momento da vida, e reportaram a seguinte incidência: checagem (79,3%), acumulação (62,3%), ordenação (57%), questões morais (43%), questões sexuais/religiosas (30.2%), contaminação (25,7%), preocupações com doenças (14.3%) e outros (19%); com 81% dos participantes apresentando sintomas de múltiplos tipos (Ruscio etal., 2010).

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Os Sintomas de TOC se Agrupam em Torno de Determinados temas A Yale-Brown Obsessive Compulsive Disorder Symptom Checklist (Y-BOCS) é uma lista que abrange 50 tipos de obsessões e compulsões que representam a maior parte dos sintomas obsessivoscompulsivos observados clinicamente (Goodman etal., 1989). Após seu desenvolvimento, houve algumas tentativas de classificar empiricamente os sintomas listados. A primeira tentativa ocorreu com Baer (1994), que, por meio de análise fatorial, identificou três fatores: simetria/acumulação, contaminação/checagem e obsessões puras. A categoria de obsessões puras incluiu obsessões relacionadas à

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religião, sexualidade e/ou agressividade em contextos onde suas compulsões não fossem prontamente identificáveis. Leckman & cols. (1997) fizeram outra análise das categorias listadas na Y-BOCS e descrevem um modelo de quatro fatores que envolvem agrupamentos de sintomas obsessivo-compulsivos. Esses fatores constituem o que é conhecido como as dimensões de sintomas do TOC. O primeiro agrupamento de sintomas indica associação entre obsessões relacionadas a comportamentos agressivos dirigidos a si e aos outros, bem como obsessões sexuais e morais ou religiosas. Essas obsessões são acompanhadas por compulsões de checagem. O segundo grupo inclui obsessões relacionadas à simetria, exatidão, repetição e compulsões de contagem e de ordem. O terceiro grupo envolve obsessões de contaminação e compulsões de lavagem ou de limpeza. O quarto grupo é composto pelas obsessões e compulsões de acumulação. Se são produto da seleção natural, será que esses temas das dimensões de sintomas correspondem a possíveis ameaças que poderiam ser prevenidas antecipadamente? Glass (2012) faz algumas intrigantes especulações a respeito. Em alguns casos é mais fácil aplicar esse raciocínio. Por exemplo, é plausível conceber que pressões seletivas relacionadas à contaminação possam ter favorecido traços que levam a compulsões de limpeza. Da mesma forma, a sazonalidade de determinados recursos, ou seja, o fato de que em determinadas épocas se tornavam escassos, pode ter representado uma pressão para um traço que no extremo leva a compulsões de acumulação. Talvez o raciocínio de que dimensões de sintomas refletem o efeito de uma pressão seletiva deva ir um pouco além. Nesse sentido, obsessões relacionadas com pensamentos ‘proibidos’ de conteúdo moral, sexual ou religioso e compulsões de checagem que muitas vezes as acompanham talvez reflitam o funcionamento de um mecanismo que resultou de pressões por um cérebro que escrutina relações causais e que antecipa possíveis ameaças. De forma aproximadamente similar, obsessões e compulsões de repetição, contagem, ordem e simetria, podem refletir pressões seletivas que favoreceram cérebros que buscavam padrões, regularidades etc.

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Aspectos Neurobiológicos do TOC Se é verdade que no TOC ocorre hiper ou mau funcionamento de alguns mecanismos que em sua essência são adaptativos, informações provenientes da neurobiologia e da neuropsicologia são pertinentes para a compreensão desses mecanismos em seu funcionamento normal e patológico. Com efeito, diversos circuitos e estruturas estão envolvidos no TOC. Uma infinidade de estudos implicam o córtex orbitofrontal no TOC. Essa área está associada à função de planejamento e raciocínio, além de comportamentos socialmente aceitáveis, de forma que sua hipoatividade está relacionada a condutas inapropriadas, falhas no planejamento, rigidez e inflexibilidade do aprendizado. A hiperatividade do córtex orbitofrontal, por sua vez, teria a capacidade de propiciar sintomas como preocupação social excessiva, meticulosidade, evitação e hábitos escrupulosos, características muitas vezes associadas ao TOC (Bruno, Basabilbaso, & Cursack, 2013). Além disso, a hiperatividade dessa região foi vinculada a alguns sintomas característicos do TOC, como a aparição de sequências repetitivas observáveis nos rituais compulsivos, a rigidez cognitiva, o aumento da preocupação, e os sentimentos de culpa que acompanham as obsessões (Bruno etal., 2013).

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O circuito orbitofrontal-estriatal-talâmico-orbitofrontal é relacionado a funções executivas, as quais são responsáveis por modular processos mentais de alto nível, sendo eles sensoriais, motores, cognitivos, mnemônicos e afetivos. Por meio das funções executivas é possível o indivíduo executar tarefas de planejamento, monitorar o próprio comportamento e alterar respostas frente a mudanças ambientais. A tomada de decisões vantajosas exige que essas funções trabalhem adequadamente em articulação com a memória e a atenção (Cavedini, Gorini, & Bellodi, 2006). Os núcleos da base cumprem papel chave nos sintomas de TOC, pois participam de um repertório de padrões fixos, relacionando-se com funções especificamente adaptativas. Além disso, organizam-se em um sistema que integra aferências sensoriais (Bruno etal., 2013). A amígdala atua na expressão de respostas de medo, de forma que a hiperativação da amígdala pode causar manifestações

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excessivas dessa emoção, mantendo relação com os transtornos de ansiedade e com o TOC. Entretanto, enquanto em transtornos de ansiedade os pacientes apresentam conectividade reduzida entre amígdala e córtex pré-frontal, pacientes com TOC possuem esta conectividade aumentada. O hipocampo, por sua vez, participa da modulação das respostas da amígdala, proporcionando informações contextuais acerca da situação de medo (Diniz etal., 2012). Investigações neuropsicológicas indicam que pacientes com TOC podem apresentar déficits cognitivos em funções executivas, especialmente quanto ao controle inibitório e à flexibilidade cognitiva (Diniz etal., 2012). Em um teste cujo objetivo era avaliar as estratégias utilizadas na tomada de decisão, pessoas com TOC tiveram tendência por tomar decisões desvantajosas encorajados por possíveis ganhos imediatos, enquanto o grupo controle foi hábil em selecionar decisões vantajosas e evitar as desvantajosas (Cavedini etal., 2006). Em comparação com pacientes portadores de transtorno do pânico, os pacientes com TOC também apresentaram déficits significativos quanto às funções executivas, além de déficits quanto a habilidades motoras (Diniz etal., 2012). Outros estudos apontam que a ativação dos núcleos da base estaria comprometida devido a alterações no fluxo sanguíneo cerebral de pacientes com TOC. Além disso, foi reportado um decréscimo na resposta fronto-estriatal de pacientes com TOC durante atividades de planejamento (Cavedini etal., 2006).

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Como se pode ver a partir desses exemplos de áreas cerebrais e funções que podem estar alteradas no TOC, esse é um transtorno complexo, resultante de diferentes tipos de disfunções. A fim de buscar explicar os principais elementos do mau funcionamento observado no TOC, modelos explicativos são desenvolvidos. A seguir trataremos de um modelo que tem ganhado destaque.

Modelos Explicativos do TOC: o Sistema Motivacional de Segurança Vimos que o TOC pode ser expressão de algo moldado pela seleção, que crianças e a população em geral apresentam por vezes comportamentos semelhantes a sintomas de TOC, que esses sintomas podem ser vistos a partir de quatro agrupamentos principais

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(as dimensões de sintomas) e vimos que determinadas estruturas encefálicas estão diretamente relacionadas com o transtorno. Agora nos direcionaremos para o sistema que teria um mau funcionamento no TOC. Se os sintomas do transtorno estão relacionados com prevenção de alguma adversidade, há de haver um sistema responsável pela identificação desse tipo de cenário. Ao executar essa tarefa, o sistema poderia cometer o erro de deixar de identificar uma ameaça que de fato irá se concretizar ou o erro de identificar como perigoso algo que na verdade é inofensivo. Dado que o prejuízo no primeiro tipo de erro é bem maior que o desperdício de energia no segundo tipo, é razoável que a seleção tenha favorecido um sistema inclinado a apresentar alarmes falsos. Existem diferentes sistemas relacionados à defesa e autopreservação. Um cuidado importante ao se descrever a relevância de aspectos emocionais relacionados ao TOC é o de diferenciá-lo dos transtornos de ansiedade e do próprio medo. Por mais que os sintomas se entrelacem, o TOC pode ser apresentado como um subproduto do medo, tal como a ansiedade. Pois, sob o ponto de vista das teorias das emoções, o medo pode ser considerado uma emoção simples e discreta, mesmo que seja fundamental, e pode aparecer em qualquer sujeito a qualquer fase da vida. Já a ansiedade se trata de uma mistura de emoções, na qual o medo se torna algo predominante (Baptista, Carvalho, & Lory, 2005; Plutchik, 2003).

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A hipótese de que a evolução selecionou um sistema psicológico dedicado a detecção e prevenção de riscos não é nova. Abed, Pauw e Karel (1999) chamaram de Sistema Involuntário Gerador de Cenários de Risco o mecanismo que produziria aprendizagem de esquiva de situações potencialmente danosas ou fatais a partir de cenários imaginados gerados involuntariamente. Esse sistema permitiria que uma pessoa aprendesse a evitar situações de risco potencial sem nunca estar efetivamente na presença de tal perigo. De acordo com os autores, a excessiva ativação desse sistema seria o responsável pelas obsessões e compulsões no TOC. De forma semelhante, Szechtman e Woody (2004) propuseram o sistema motivacional de segurança (SMS), o qual seria dedicado à detecção e avaliação de perigos potenciais, além da geração de

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respostas a esses. De acordo com essa proposta, o sistema possui três módulos: o de avaliação de riscos potenciais, o de motivação de segurança e o de programação relacionada a segurança, atividade dos quais pode culminar na execução de respostas viscerais e motoras (Figura 1). Assim, inicialmente, pistas ambientais, mesmo que extremamente sutis, são detectadas e avaliadas. Se detectadas ameaças para si ou para outros, o módulo de motivação de segurança é ativado. Ele é prontamente ativado e muito lentamente desativado, produzindo um sustentado estado emocional de ansiedade e alerta. Esse estado emocional estimula a alça de avaliação de riscos potenciais a continuar buscando pistas ambientais que sinalizam perigo. Por fim, o subsistema de motivação de segurança ativa o de programação relacionada a segurança que contém a programação espécie-específica para proteção do indivíduo e de outros. Respostas de precaução adequadas aos perigos potenciais são apresentadas. A desativação do sistema ocorreria de duas formas: por meio de sinais de segurança produzidos pelas respostas de precaução ou por meio de algo equivalente a um senso de “objetivo cumprido” provocado pela própria emissão dessas respostas.

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Senso de “objetivo cumprido”

Sinais do ambiente

Avaliação de riscos potenciais

Motivação de segurança

Programação relacionada à segurança

Respostas viscerais e motoras

Figura 1. Visão esquemática do sistema motivacional de segurança. Baseado em Szechtman e Woody (2004). Para Szechtman e Woody (2004), problemas no SMS poderiam explicar tanto a sintomatologia do TOC quanto a de transtornos de ansiedade, em especial a do de ansiedade generalizada. Em relação ao TOC, os autores salientam que as compulsões seriam consequência de uma inefetiva desativação do sistema devido à ausência do senso de “objetivo cumprido” acima mencionado.

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Sem a desativação produzida por esse sinal, comportamentos de prevenção de possíveis riscos seriam continuamente apresentados. Já o transtorno de ansiedade generalizada ocorreria pela excessiva ativação do primeiro módulo, o de avaliação de riscos potenciais, mas com efetiva desativação por emissão de comportamentos de proteção. O SMS, portanto, participaria da avaliação e gerenciamento de risco potencial, sendo útil para a compreensão dos sintomas do TOC, os quais muitas vezes estão relacionados com proteção e avaliação de risco, como quando assumem a forma de pensamentos recorrentes e persistentes ou comportamentos repetitivos e rituais. Com isso, o TOC aparenta decorrer de disfunção nesse sistema. Essa disfunção pode decorrer de problemas de iniciação dos comportamentos relacionados à segurança (haveria excitação do sistema em intensidade patológica) ou de problemas de interrupção dos mesmos (por falha no processo normal de finalização) (Szechtman & Woody, 2004). O TOC seria, assim, produto da falha de um mecanismo de “saciedade” para comportamentos relacionados à prevenção de ameaças.

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A esse sistema correspondem circuitos neurobiológicos (Woody & Szechtman, 2011) que se baseiam em alças envolvendo conexões córtico-estriado-pálido-tálamo-corticais, em interação com o tronco encefálico. Dessa forma, existe a alça de avaliação de riscos potenciais, que processa diversos inputs sensoriais e emocionais, e, por isso, deve receber inputs de regiões corticais e límbicas. Comporiam essa alça o hipocampo, a amígdala e o núcleo leito da estria terminal. Passando para a segunda, a alça de afeto e motivação de segurança, a qual seria composta por um circuito núcleos da basetálamo-cortical. Esse circuito envolveria uma parte límbica do estriado. Essa alça teria a capacidade de prolongar e sustentar a ativação, uma propriedade fundamental da motivação. A reverberação dessa alça ativaria a terceira alça. A alça de programação relacionada à segurança implementaria seus programas por meio de outro circuito núcleos da base-tálamo-cortical. Esse circuito envolveria uma parte motora do estriado. Por fim há a rede de outputs do tronco. Núcleos do tronco encefálico servem de mediadores entre programas motores relacionados à segurança e respostas comportamentais. Além disso, outputs do tronco atingem a parte límbica do estriado, bem como as

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regiões medial e orbital do córtex pré-frontal. Dessa forma, o tronco teria um papel importante na produção de retroalimentação negativa para a motivação de segurança, o que é experimentado como o senso de objetivo cumprido. O funcionamento do SMS se desdobraria ainda em respostas fisiológicas, em termos de atividade endócrina e autonômica. Pelo fato do sistema ser ativado por ameaças potenciais e estar voltado para a ação, são necessários recursos energéticos para o trabalho físico e que potencializem os mecanismos psicológicos de detecção de ameaças (Woody & Szechtman, 2011). Portanto, de acordo com essa perspectiva, o TOC seria uma disfunção do SMS, a qual resultaria de uma ação insuficiente da rede de outputs do tronco, a qual é responsável por um mecanismo específico equivalente ao de saciedade, porém relacionado à segurança. O hipofuncionamento desse mecanismo faria com que não ocorresse a inibição normal das alças de avaliação de riscos potenciais e de motivação de segurança. >

Implicações para a Compreensão do Transtorno Um conceito que pode contribuir para a reflexão sobre o caráter patológico do TOC é o de disfunção prejudicial (Wakefield, 1992). Esse conceito estabelece dois critérios para que uma alteração possa verdadeiramente ser considerada um transtorno. A alteração deveria consistir de uma disfunção, ou seja, de um mau funcionamento de algum sistema e, em acréscimo a isso, a alteração deveria também causar algum tipo de prejuízo para o indivíduo ou para a sociedade. Dessa forma, por exemplo, a tendência que as pessoas têm por preferirem alimentos doces e gordurosos, embora certamente seja prejudicial, não constituiria disfunção psicológica, pois é uma manifestação de comportamento adaptativo (i.e. funcional) em ambiente ancestral. Assim, essa tendência não deveria ser considerada um transtorno. De forma reversa, alguma alteração que representasse uma alteração no funcionamento (disfunção), mas que não resultasse em prejuízos, também não deveria ser considerada um transtorno. Ainda que se possa conceber uma origem adaptativa para o TOC, ao se aplicar a noção de disfunção prejudicial chega-se a

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conclusão de que o TOC constitui verdadeiramente um transtorno, pois gera sofrimento (prejuízo) e consiste de um exagero ou mau funcionamento de um mecanismo que originalmente pode ter sido benéfico. Nesse sentido, pode ser útil o conceito de SMS (Szechtman & Woody, 2004) abordado anteriormente, o qual acionaria comportamentos que garantiriam a prevenção de ameaças. Um sistema motivacional como esse aumentaria a aptidão de seu portador por tratar antecipadamente de ameaças que possam vir a se materializar. Não obstante seu valor de sobrevivência, um mecanismo como esse, ao apresentar um mau funcionamento, poderia constituir a base para a manifestação de diversos sintomas de TOC. As dimensões de sintomas também podem ter implicações para a compreensão do TOC. Conforme apresentado em outra parte desse texto, os sintomas de TOC formam quatro agrupamentos principais. Esses agrupamentos podem ter sido selecionados de forma paralela, posto que se relacionam com problemas de sobrevivência específicos. Essas dimensões de sintomas levantam, inclusive, a possibilidade de que estejam sendo tratados de forma unitária fenômenos de categorias diferentes. Algo que poderá ser determinado por estudos futuros é se cada uma das dimensões de sintomas constituiria um transtorno a parte, com bases genéticas e neurobiológicas distintas.

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Atualmente, o tratamento do TOC é feito por meio de terapias farmacológicas e psicológicas. Dentre os tratamentos mais efetivos estão a farmacoterapia com inibidores seletivos de recaptação de serotonina (Soomro, Altman, Rajagopal, & Oakley Browne, 2008) e terapias cognitivas e comportamentais (Gava etal., 2007). Em alguns casos recorre-se ainda a fármacos antipsicóticos e até mesmo à neurocirurgia (Dougherty etal., 2002; Stahl, 2000). O fato de que é difícil prever qual desses é o tratamento mais recomendável para determinada pessoa combinado à heterogeneidade que o transtorno apresenta, a qual é ilustrada pelas diferentes dimensões de sintomas previamente abordadas, é algo que fortalece a suspeita de que possa haver subtipos de TOC, cada um talvez com resposta diferente para cada tratamento. Isso ilustra que as implicações da visão evolucionária sobre o TOC podem atingir o nível da prevenção e do tratamento. Com efeito, em um artigo que aborda a ‘Psicologia clínica evolucionária”, Glass

Transtorno Obsessivo-Compulsivo: Integração entre Perspectiva Evolucionista...

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(2012) faz uma série de apontamentos nesse terreno. A seguir alguns deles são brevemente apresentados. Em primeiro lugar, a leitura evolucionista do transtorno aponta, e dados empíricos suportam (Ruscio et al., 2010), que características de TOC estão presentes na população em geral em níveis abaixo do ‘limiar’ patológico. Essa noção pode contribuir para que os profissionais de saúde sejam mais empáticos com pessoas diagnosticadas com o transtorno. Havendo o entendimento de que os sintomas de TOC consistem de disfunção de mecanismos que em sua essência são adaptativos, uma possível abordagem ao problema seria, no lugar de se tentar erradicar os sintomas, se buscar a sua redução para níveis aceitáveis. Programas de tratamento poderiam ser consideravelmente diferentes ao se adotar esse ponto de vista. No plano da prevenção na infância, o autor faz alguma recomendação também. Essa se dá com base na observação de que as compulsões na infância estão muitas vezes relacionadas ao tema da segurança, como, por exemplo, com relação à proximidade da figura de apego. Assim, a prevenção passaria por garantir por meio de diferentes estratégias que a criança não se sentisse ameaçada, de forma que sentimentos de segurança pudessem se perpetuar tanto quanto possível.

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Considerações Finais O TOC é um transtorno com componentes cognitivos e comportamentais que, se por um lado pode envolver considerável grau de sofrimento e comprometer o funcionamento individual, por outro lado aparenta ter elementos presentes de forma branda na população não-clínica. Os sintomas de TOC se agrupam em torno de determinados temas, os quais podem ter relação com prevenção de ameaças potenciais. Essas observações, combinadas à participação do fator genético no TOC, fazem da perspectiva evolucionista um prisma importante para a compreensão desse transtorno. Com efeito, essa perspectiva tem contribuído para a formulação de hipóteses e o desenvolvimento da pesquisa desde os aspectos de caracterização do transtorno até à sua prevenção e tratamento.

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Temas em Neurociências

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SEÇÃO

III

ASPECTOS CLÍNICOS E NEUROCIÊNCIAS

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Aspectos Neurobiológicos da Dislexia: Contribuições da Neuroimagem

10 Clay Brites*

Introdução Desde o final do século XIX, surgiram várias evidências de que indivíduos com lesões cerebrais em determinadas áreas poderiam apresentar perda da fluência da fala e na capacidade de entender a linguagem falada, lida ou escrita (Shaywitz, 2006). Broca (1861) e Wernicke (1874) foram os primeiros a estudar e concluir que lesões nas regiões correspondentes “`a base da leitura”, que é a fala e a linguagem (Figura 1), poderiam resultar em deficiências motoras e de compreensão ou expressão de linguagem e observaram que estes pacientes - antes leitores fluentes - perdiam a capacidade de ler e de entender textos pela leitura (Shaywitz, 2006). Esta associação de causa e efeito, adquirida, foi o primeiro passo dado na neurologia para se entender como o cérebro lê e a relação entre o processamento cerebral da leitura e habilidades correlacionadas.

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Autor para correspondência: claybrites@ gmail.com Centro Empresarial Jardim Sul. Rua João Wycliff, 110 – 11º andar Sala 1102. Gleba Palhano Londrina (PR), CEP 86050-450

Com o tempo, as pesquisas começaram a mostrar que algumas pessoas - provenientes de algumas famílias - não conseguiam aprender a ler e escrever mesmo sem qualquer motivo aparente nem sinais quaisquer de comprometimento neurológico. Este cenário de “problema congênito e genético”, uma condição inata, passou a ser amplamente avaliada a fim de se buscar causas e explicações desde o início do século passado. Esta condição passou a ser denominada de dislexia do desenvolvimento onde a leitura, por motivos ainda desconhecidos, não se desenvolve normalmente mesmo na ausência de lesões cerebrais visíveis. Sem lesões ou cicatrizes, a rede neuronal na dislexia não apresenta bom funcionamento estando associado a problemas de conexão nas áreas essenciais para o processamento da

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leitura (Finn etal., 2014, Xu, Yang, Siok, & Tan, 2015, Paz-Alonso etal., 2018). Lóbulo parietal Área Wernicke

Lóbulo frontal Lóbulo occipital

Área Broca

Lóbulo temporal

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Figura 1. Ilustração mostrando as referidas áreas descritas por Broca e Wernicke que, lesadas, levam a comprometimento da fala e da linguagem e, portanto, a problemas na habilidade de ler. Neste sentido, a busca pela rede disfuncional levaram os pesquisadores médicos e não médicos a um longo caminho, até o final dos anos 1970, quando o banco de cérebros post-mortem criado pelo neurologista Drake Duane para pesquisar e comparar cérebros de disléxicos com os de indivíduos normais permitiu concluir que existia diferenças nas estruturas ligadas `a linguagem no hemisfério esquerdo (Galaburda etal., 1985). Esta constatação deu início a sucessivas pesquisas acerca das bases neurobiológicas da dislexia, desencadeando várias abordagens de investigação nas mais diversas áreas do conhecimento médico e interdisciplinar nestes pacientes: estudos prospectivos e retrospectivos do desenvolvimento neuropsicomotor e da linguagem, estudos clínicos comparativos com grupos controle, resposta evolutiva a determinados tipos específicos de intervenção, estudos randomizados, avaliações genéticas de genes-candidatos, estudos

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de interação gene-ambiente, resposta evolutiva a fármacos, etc. (Rotta, Riesgo, & Ohlweiler, 2006, Hoeft etal., 2006, Hoeft etal., 2011, Hosseini etal., 2013, Finn etal., 2014, Norton etal., 2014, Ma etal., 2015, Peterson & Penningtton, 2015). Dentre tantos tipos de estudos, mais recentemente, somado aos avanços tecnológicos para visualização da estrutura e do funcionamento cerebrais, destacam-se os estudos que envolvem a utilização da neuroimagem. A neuroimagem é uma modalidade de investigação médica que tem a finalidade de permitir, por meio de técnicas radiológicas mais avançadas, uma compreensão mais detalhada do processamento de informações nas redes neuronais durante determinadas ações sequenciais, comportamentos específicos e reações emocionais ou cognitivas de maior ou menor resposta. A magnitude e a frequência das ativações podem revelar, se houver significância estatística, se o cruzamento e a comparação dos padrões de ativação são normais, patológicos e/ou disfuncionais (Galaburda & Kemper, 1979). Os avanços tecnológicos e neurocientíficos das últimas décadas aliados ao desenvolvimento cada vez maior e mais amplo do campo da neuropsiquiatria, neurodesenvolvimento infantil e da neuropsicologia tem transformado a neuroimagem num instrumento fortuito e eficaz para o estudo mais estruturado e objetivo de condições médicas que ainda não apresentam marcadores biológicos específicos e/ou onde o distúrbio estudado tem caráter clínico dimensional e disfuncional e que, assim, necessitam de descrições endofenotípicas como referência para um diagnóstico mais seguro como os transtornos neuropsiquiátricos e os transtornos de aprendizagem (Eckert etal., 2003).

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Métodos de Investigação em Neuroimagem na Dislexia Desde a introdução da Tomografia Computadorizada em 1971 (Kingsley, 2001), as técnicas de neuroimagem tem avançado rapidamente, passando da avaliação anatômica macroscópica para uma análise microscópica e funcional. Este desenvolvimento - que envolveu tecnologia, estatística e biologia molecular - permitiu aprofundar os estudos de distúrbios funcionais ou conectivos do

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sistema nervoso central (SNC) além de condições patológicas do comportamento e da aprendizagem. A tomografia de emissão de pósitrons (PET) foi a primeira tecnologia desenvolvida para estudar o cérebro em funcionamento (Tuchman, 1999); ela envolve a mensuração do fluxo sanguíneo para regiões do cérebro por meio do uso de um composto radioativo inócuo injetado na corrente sanguínea (Figura 2). Devido a dificuldades técnicas e por ser invasiva, aos poucos ela foi sendo suplantada pela ressonância magnética funcional (RMf), a qual permite que se visualize o funcionamento interno do cérebro de forma completamente não-invasiva (Figura 3).

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Figura 2. PET (Tomografia por Emissão de Prótons).

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Figura 3. RMf (Ressonância Magnética Funcional). >

Figura 4. SPECT (Single Photon Emission CT).

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Figura 5. Tractografia. Atualmente, a RMf é o método mais utilizado para estudar o SNC em funcionamento (Shaywitz, 2006) e detecta alterações regionais de fluxo sanguíneo e/ou do nível de oxigenação do sangue sinalizando o nível de atividade neuronal. Ele proporciona maior resolução espacial e permite maior acurácia na elucidação de alterações dinâmicas e de redes conectivas do SNC, onde a base neurobiológica ainda é incerta. A imagem resultante auxilia muito no cruzamento de dados com testes neuropsicológicos, tratamentos farmacológicos e intervenções comportamentais assim como tem também sido utilizado em cruzamento com testes genéticos nos distúrbios do desenvolvimento ou nos “fenótipos cognitivos” (Seyffert & Silva, 2005).

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Além dos métodos anteriores, há também a tractografia (Figura4), o qual é oriundo da tecnologia da ressonância magnética onde o princípio se baseia em detectar a movimentação das moléculas de água intracelulares dos tecidos da substância branca cerebral. Como estas moléculas se deslocam mais rápido no sentido das fibras neuronais do que lateralmente a estas fibras, é possível que a imagem impressa evidencie as vias neuronais e suas conexões e estas aparecem em 3D com seus prolongamentos (Ribas & Teixeira, 2011). Esta, portanto, tem o intuito de analisar a integridade das redes e possíveis anormalidades estruturais das vias anatômicas envolvidas nas mais diversas funções cerebrais , síndromes conectivas ou genéticas, como a Dislexia (Hosseini etal., 2013).

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Enfim, há também o SPECT (em inglês, “Single Photon Emission Computer Tomography”, na Figura 5), o qual consiste na injeção endovenosa de radiofármacos lipossolúveis, os quais atravessam a barreira hemato-encefálica e se concentram dentro das células cerebrais (Tuchman, 1999). Sua concentração local aumenta com a intensidade do metabolismo cerebral que significa, proporcionalmente, maior atividade ou vice-versa. Os recursos de neuroimagem ainda não podem ser utilizados como meio de confirmação diagnóstica, mas são ferramentas fundamentais para pesquisa científica cujo papel é auxiliar na localização da anormalidade funcional quando se compara imagens de indivíduos afetados com indivíduos normais ou em estado distinto de desenvolvimento. Permitem observar modificações, amplificações ou reduções de áreas funcionais e vias neuronais em várias situações, como: 1) descrição de um processo relacionado ao desenvolvimento cerebral; 2) indicar uma lesão congênita ou adquirida (aguda ou crônica); 3) recurso para avaliar/explicar mecanismos de ação de medicações psicofarmacológicas; 4) auxiliar na observação evolutiva de técnicas de reabilitação após o indivíduo ser submetido a um longo processo de intervenção nos transtornos neuropsiquiátricos ou de remediação nos transtornos de desenvolvimento.

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Na Dislexia, a neuroimagem tem tido um papel cada vez mais proeminente e decisivo na pesquisa científica, pois desponta como método objetivo e comparativo de identificação e localização das heterogêneas disfunções cerebrais que fazem parte de sua fisiopatologia e como recurso para testar a eficácia de métodos de intervenção psicoeducacionais, metacognitivas e de remediação fonológica. Os tipos de neuroimagem mais utilizados para este fim são os de perfil de análise funcional, os quais foram descritos sumariamente acima.

Pesquisas em Dislexia e Neuroimagem A Dislexia, sob o ponto de vista etiológico, desenvolvimental e neuropsicológico, é considerada uma disfunção do SNC com comprometimento nas conexões e vias neuronais responsáveis pelo desenvolvimento da habilidade de leitura, as quais agem em

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dupla-via simultaneamente e sincronizada: uma, é de nomeação rápida (visuoespacial); a outra, de habilidade fonológica (auditivolinguística) (Hosseini et al., 2013, Paz-Alonso et al., 2018). Deve-se excluir os transtornos do espectro autista (TEA), deficiência intelectual, déficits sensoriais (visual e auditivo) e/ou condições supostamente inadequadas de alfabetização e de processos insuficientes de ensinoaprendizagem da leitura e/ou acrescido de problemas psicossociais, segundo o DSM-V (2013). Diante deste panorama e de diversas condições que podem se sobrepor no contexto escolar e clínico, é relevante considerar, no meio científico, a dificuldade que se tem quanto ao diagnóstico da mesma pois acresce-se ainda que a Dislexia não tem um marcador biológico (Peterson & Penningtton, 2015). Na literatura nacional e internacional, nota-se que a Dislexia é acompanhada por alterações em funções cognitivas, como na organização percepto-motora, processamento visual e auditivo e no complexo sistema fonológico da informação (tanto linguístico como executivo), indicando disfunções na região associativa têmporoparieto-occipital Simos et al., 2005, Maisog, Einbinder, Flowers, Turkeltalb & Eden, 2008, Hosseini etal., 2013, Norton etal., 2014, Ma etal., 2015, Xu etal., 2015, Paz-Alonso etal., 2018) caracterizando maior comprometimento em acesso ao léxico mental e levando, assim, a uma significativa dificuldade em produzir e aprender por meio dos processos que envolvem leitura.

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Em seu trabalho pioneiro, Galaburda e cols. (1979 e 1985) descreveram anormalidades em regiões perisylvianas e tálamo e a ausência da assimetria direita-esquerda do plano temporal (Figura6) ao examinar um pequeno número de cérebros post-mortem de pacientes disléxicos (Xu et al., 2015). Desde então, vários estudos com tomografia computadorizada e ressonância magnética cerebrais surgiram no sentido de pesquisar as correlações neuroanatômicas (Galaburda & Kempe, 1979). A despeito das inconsistências, três regiões foram descritas como anormais e associadas ao distúrbio (Eckert etal., 2003): o giro frontal inferior, o giro temporal superior, giro frontotemporal esquerdo (Hoeft, 2011), o córtex temporo-parietal (Eckert etal., 2003, Dufor, Serniclaes, Sprenger-Charolles, & Démonet, 2007) e o cerebelo (Eckert etal., 2003). Mais tarde, Rumsey etal. (1997) acharam por estudos de imagem neurofuncional, o envolvimento de regiões temporais e temporoparietais na dislexia (Carter etal., 2009).

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A

Sulco lateral

B

Planum temporale

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Figura 6. Ilustração mostra a sequência de cortes realizados no cérebro mostrando os hemisférios e depois novo corte expondo os planos temporais direito e esquerdo (B). Este esquema reproduz a pesquisa de Galaburda e cols. Aqui, observa-se a assimetria normal. Assim, desde então, progressivamente, os métodos de neuroima­ gem estrutural, microestrutual e de novas técnicas comparativas tem sido combinados para proporcionar uma análise simultânea tanto da estrutura quanto da função de forma a ampliar a identificação de regiões cerebrais anatomicamente intactas (Frederickson, Goodwin, Savage, Smith, & Tuersley, 2005). A análise por estes métodos permitem que se avalie a estrutura cerebral observando quais áreas cerebrais se ativam ou não durante uma determinada tarefa. Durante a tarefa de leitura, por exemplo, é possível ativar as regiões cerebrais esperadas para esta atividade simultaneamente ou em sequência (Norton etal., 2014). Num cérebro normal, é exatamente isto que se

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espera, mas no cérebro de um disléxico estas ativações podem não acontecer ou o recrutamento das vias neuronais pode ser diferente (Figura 7) (Xu etal., 2015). Leitor habitual

Leitor dislexo

> Máxima Moderada Mínima Nenhuma

Figura 7. Nesta ilustração, observa-se a diferença de ativação de regiões cerebrais durante a atividade de leitura entre um leitor normal (acima) e um leitor disléxico (abaixo). Ela reproduz, esquematicamente, um exame de imagem funcional (Rotta, 2006). Quando se avalia indivíduos com dislexia em exames funcionais, como a RMf ou o PET, estas diferenças ocorrem nitidamente. Nestes pacientes, as regiões temporo-occiptais e temporoparietais não se ativam durante a leitura e observa-se uma maior ativação frontal compensatória quando comparados com indivíduos

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normais (Norton etal., 2014, Stern, & Shalev, 2013) (Figura 8). Outras investigações mostraram diferenças comparado aos controles no cerebelo (Vaughn etal., 2006) e estudos com SPECT tem mostrado que crianças com distúrbios de decodificação tem menor ativação da região perisilviana (Lou, Henriksen, & Bruhn, 1990). Desta forma, estudos mais pormenorizados na dislexia (Wang, Yang, Ying, Chen, Liu, & Luo, 2013, McCarthy, Skokauskas, & Frodl, 2013) trazem novos conhecimentos a respeito da natureza e localização de anormalidades estruturais, como observado pelo menor volume de substância cinzenta no giro fusiforme bilateral em indivíduos com dislexia em línguas alfabéticas e funcionais, contribuindo para a compreensão da neuropatologia, de alterações neuropsicológicas e possíveis formas de intervenção nestes quadros (Galaburda & Kempe, 1979, Eckert etal., 2003, Ma etal., 2015). Estudos nacionais (Heim & Keil, 2004, Arduini, Capellini, & Ciasca, 2006) e internacionais (Cao, Bitan, & Booth, 2008, Gabrieli, 2009), utilizam diversos paradigmas relacionando as alterações neuropsicológicas e diferentes análises por imagem, como por exemplo, o processamento auditivo e SPECT, onde há diferenças significativas quanto ao funcionamento na região temporal esquerda entre indivíduos com dislexia e controles (Frederickson, Goodwin, Savage, Smith, & Tuersley, 2005); hipoperfusão de lobo temporal e alterações em leitura, escrita e memória (Arduini, Capellini, & Ciasca, 2006), bem como diminuição na conexão entre o giro fusiforme esquerdo e o lobo parietal inferior, sendo este último relacionado a integração da ortografia e fonologia (Cao, Bitan, & Booth, 2008). No entanto, o funcionamento de áreas cerebrais na dislexia também deve ser relacionado à língua na qual o indivíduo foi exposto, já que há diferenças no funcionamento de áreas relacionadas à estrutura alfabética ou logográfica (Siok, Niu, Jin, Perfetti, & Tan, 2008, Xu etal., 2015).

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As atividades cognitivas realizadas com diferentes tipos de exames de neuroimagem evidenciam as áreas relacionadas no córtex cerebral nos pacientes com dislexia, como em tarefas de discriminação de fonemas, onde é possível observar menor ativação de regiões frontal e parietal, quando comparados a controles, leitura de palavras e textos, nomeação automática rápida e rima, em exames de ressonância magnética funcional, PET e tensão de difusor (Sauer, Pereira, Ciasca, Pestun, & Guerreiro, 2006, Schulz etal., 2008, Desroches, Cone, Bolger,

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Bitan, Burman, & Booth JR, 2010, Dimitriadis etal., 2013, Norton etal., 2014, Xu etal., 2015, 7, Paz-Alonso etal., 2018). Num amplo de estudo de metanálise realizado por Maisog etal. (2008), por meio de método de probabilidade estimada de ativação (ou “activation likelihood estimate” (ALE), foram reunidas as principais regiões hiperativadas e hipoativadas quando comparados leitores normais com disléxicos ao se analisarem 15 publicações. Além das técnicas já citadas, neste trabalho foram também verificados os dados em magnetoencefalografia e potencial evocado (“event-related potencials”), métodos também empregados na avaliação qualitativa de disléxicos. Os resultados mostraram que o córtex do hemisfério esquerdo é a área predominantemente afetada nos disléxicos, especialmente o giro fusiforme, córtex pós-central e giro temporal superior ipsilaterais. Surpreendentemente, nem o cerebelo nem o córtex frontal esquerdo tiveram alterações comparativas significativas (Dufor etal., 2007, Maisog etal., 2008). Outro foco de estudos de neuroimagem situa-se na orientação da terapêutica e na observação de seus efeitos (ver Figura 8). Nesta perspectiva, em casos de dislexia, métodos de neuroimagem permitem analisar os resultados de intervenções cognitivas baseadas na velocidade do processamento de estímulos linguísticos, resultados estes que se revelaram em termos de mudanças dinâmicas do padrão de ativação, em regiões críticas para a linguagem expressiva (Simos etal., 2002, Gabrieli etal., 2009).

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(A) Crianças normais

(B) Crianças disléxicas (pré)

(C) Crianças disléxicas (pós)

Figura 8. Ilustra a diferença entre padrões de ativação cerebral entre crianças normais (A) e disléxicas antes da intervenção (B) e depois da intervenção (C). Observe a hipoativação posterior em (B) comparado aos normais (A) e o aumento da ativação frontal e parieto-occiptal após intervenção em (C).

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Temas em Neurociências

Ainda, no que se refere ao processo de intervenção na leitura, estudos apontam que o uso de identificação de fonemas, por meio da representação fonológica em sujeitos com dislexia pode se mostrar eficaz no período de oito semanas de atividades diretivas, evidenciando a eficácia através da pré e pós-testagem, sob diferentes aspectos da linguagem e plasticidade cerebral (Galaburda & Kemper, 1979, Krafnick, Flowers, Napoliello, Eden & Gray, 2011), bem como estudos de respostas à intervenção (RTI) que proporcionam, em um período específico, as camadas a serem adquiridas no desenvolvimento da habilidade fonológica, proporcionando a qualidade no diagnóstico e principalmente na intervenção (Rumsey, Horwitz, Donohue, Nace, Maisog, & Anderson, 1997a, Galaburda & Kemper, 1979, Koeda, Seki, Uchiyama, & Sadato, 2011). Outros estudos mostraram que pode haver um atraso na maturação de áreas essenciais para o advento e consolidação da aquisição da leitura nos indivíduos com história familiar de Dislexia nas fases de préalfabetização e leitura inicial (Hoeft etal., 2006, Hoeft etal., 2011). Enfim, as pesquisas em neuroimagem tem proporcionado um melhor entendimento da Dislexia e sua utilização tem direcionado o aparecimento de cada vez mais evidências de sua patogenia, dimensão de sua influência no desenvolvimento da aprendizagem da leitura, na prevenção e na remediação e na abordagem terapêutica multidisciplinar. A perspectiva, em longo prazo, é extremamente otimista já que a tecnologia empregada, a objetividade dos métodos e os recursos estatísticos estão cada vez mais sofisticados e afinados.

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Este contexto está permitindo que os especialistas na área tenham a oportunidade real, junto aos professores alfabetizadores e gestores públicos, de decidir sob diretrizes mais seguras e estruturadas para o manejo de uma condição crônica, de alta morbidade e que leva a impacto significativo na evolução acadêmica e na carreira profissional de quem a apresenta.

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Síndrome de Burnout

Denise Albieri Jodas Salvagioni* Instituto Federal do Paraná

Selma Maffei de Andrade Universidade Estadual de Londrina

Introdução Nesse capítulo vamos discutir a síndrome de burnout, alguns aspectos histórico-conceituais, fatores relacionados e medidas preventivas. Ao final da leitura, espera-se que o leitor: • Compreenda o conceito de burnout, • Reflita sobre os principais modelos teórico-explicativos de burnout; • Discuta fatores individuais e ocupacionais associados à síndrome, • Conheça as principais medidas preventivas relacionadas ao burnout.

Desenvolvimento Aspectos Histórico-Conceituais e Instrumentos Avaliativos da Síndrome de Burnout

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Autor para correspondência: denise.salvagioni@ ifpr.edu.br

A síndrome de burnout é um distúrbio psíquico provocado por estressores crônicos do trabalho que leva as pessoas a se sentirem tensas, exaustas e frustradas (Maslach, Leiter, & Schaufeli, 2008). De acordo com Schaufeli e Buunk (1996), o trabalhador em burnout pode manifestar humor depressivo, desesperança, ansiedade, impotência, baixa autoestima, irritabilidade, hostilidade, dificuldade de concentração, perda de memória, presença de tiques nervosos e agitação.

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Apesar de apresentarem sintomas semelhantes, burnout não pode ser confundido com estresse. O burnout ocorre de uma experiência constante ou prolongada de estresse, com origem no trabalho, que gera atitudes negativas do indivíduo apenas no ambiente laboral (Maslach & Jackson, 1981). Por sua vez, o estresse não envolve tais atitudes e condutas, caracterizando-se como uma reação do organismo diante de situações que exigem esforço emocional, que provoca esgotamento pessoal e gera atitudes negativas do indivíduo em qualquer ambiente (Schaufeli, 1999). No conceito psicossocial, atualmente o mais aceito por estudiosos , burnout se caracteriza por três dimensões sintomatológicas: a) a exaustão emocional, b) a despersonalização ou cinismo e c) a reduzida realização profissional ou falta de envolvimento no trabalho ou ineficácia profissional (Schaufeli, Leiter & Maslach, 2009; Schaufeli, Maslach & Marek, 1993). A exaustão emocional representa o esgotamento físico e psicológico do trabalhador, captura a experiência do estresse laboral e também pode ser descrita como desgaste, perda de energia, debilitação ou fadiga. O trabalhador em despersonalização apresenta-se insensível e emocionalmente duro com outras pessoas em seu trabalho. Indivíduos com sensação reduzida de realização profissional apresentam discursos de incompetência, baixa produtividade e fracasso profissional, demonstrando prejuízos na relação afeto-trabalho – Figura 1 (Maslach, Leiter & Schaufeli, 2008; Maslach & Leiter, 2016). EXAUSTÃO EMOCIONAL

DESPERSONALIZAÇÃO

fadiga, desgaste

insensibilidade, cinismo

BAIXA REALIZAÇÃO PROFISSIONAL

Estresse laboral

Problemas nos relacionamentos interpessoais no trabalho

Relação afeto-trabalho prejudicada

sentimento de incompetência

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Figura 1. Dimensões da síndrome de burnout. Fonte: Maslach, Leiter & Schaufeli, 2008; Maslach & Leiter, 2016.

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Estudiosos atribuem ao psiquiatra Herbert Freudenberger o termo “staff burnout ”, utilizado na década de 1970, em uma perspectiva clínica, para definir um fenômeno negativo que acometia trabalhadores voluntários de uma clínica para dependentes de substâncias químicas. Após um tempo, esses trabalhadores não se sentiam mais motivados e comprometidos com a atividade inicialmente adotada por livre escolha. Este estado de desgaste gradativo do trabalhador, com perda de energia e força de trabalho, foi denominado por ele como burnout 1 (Ahola, 2007; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Nessa época, a psicologia clínica estudava os aspectos individuais dos trabalhadores, não levando em consideração o contexto ocupacional/organizacional. Poucos anos depois, em 1976, a psicóloga social Christina Maslach realizou um estudo exploratório sobre estresse emocional no trabalho com médicos e enfermeiros (Schaufeli, Maslach & Marek, 1993). Identificou, nos discursos dos sujeitos, que aqueles profissionais que tinham contato direto e frequente com pacientes eram mais propensos a desenvolver a síndrome. Além disso, a autora percebeu que o fenômeno burnout tinha algumas características repetitivas, a exaustão emocional e o cinismo (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).

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No contexto estudado por Maslach, a exaustão emocional foi uma resposta comum às experiências negativas no relacionamento com pacientes, familiares, colegas de trabalho ou superiores, assim como lidar com a morte (Schaufeli, Maslach & Marek, 1993). A despersonalização ou cinismo emergiu das falas em que o trabalhador explicava como lidava com os problemas no trabalho. Ao longo do tempo, o trabalhador se distanciava emocionalmente de outras pessoas como maneira de se proteger das tensões emocionais do trabalho (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001; Schaufeli, Maslach & Marek, 1993). Com o intuito de validar essas ideias, um novo estudo exploratório e qualitativo foi realizado com guardas prisionais, professores, enfermeiros e advogados (trabalhadores de diversos segmentos). Apesar das diferenças ocupacionais, as falas apresentaram aspectos semelhantes. A exaustão emocional apareceu em situações de sobrecarga de trabalho e a despersonalização foi relatada como forma 1 O termo “burnout” origina-se da língua inglesa e metaforicamente traduz uma situação de “queima completa”, “explosão”, “esgotamento” do trabalhador.

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de autoproteção emocional (Schaufeli, Maslach & Marek, 1993). Maslach e colaboradores demonstraram, com seus estudos, que, além dos aspectos individuais, o contexto de trabalho tem importante influência no desenvolvimento do burnout (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Nas décadas de 1980 e 1990, diversos instrumentos foram desenvolvidos a fim de realizar pesquisas com técnicas padronizadas e atingir um maior número de indivíduos (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). O Maslach Burnout Inventory (MBI) foi a primeira escala a ser desenvolvida e é considerada como padrão-ouro nas pesquisas que envolvem burnout (Maslach, Leiter & Schaufeli 2008). Atualmente, o MBI é de propriedade da Mind Garden®, sendo necessário comprar a licença para aplicação de cada questionário. A linha do tempo do burnout pode ser acompanhada no Quadro 1, em que se descreve a fase pioneira nas décadas de 1950 a 1970 e a fase empírica nas décadas de 1980 e 1990. Quadro 1. Linha do tempo do burnout 1953 – Publicação do primeiro estudo de caso descrevendo sintomas que se assemelhavam com burnout.

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1969 – Brandley utilizou o termo “fenômeno psicológico” para descrever um problema com trabalhadores. 1970 – Primeiro uso do termo “staff burnout”, pelo psiquiatra H. Freudenberger. 1976 – Início dos estudos qualitativos de C. Maslach. Surgem a exaustão emocional e despersonalização como principais dimensões de burnout. Década de 1980 – Desenvolvimento do Maslach Burnout Inventory (MBI), instrumento quantitativo, com inclusão da categoria sobre realização profissional entre as dimensões de burnout. Década de 1990 – Propostas teórico-explicativas sobre burnout.

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A partir da década de 1990, em consonância com o crescimento de pesquisas quantitativas sobre o tema, foram propostos alguns modelos teórico-explicativos do processo de burnout.

Modelo Trabalho Demanda-Controle O Modelo Trabalho Demanda-Controle (Job Demand-control Model) foi proposto por Robert Karasek e Töres Theorell para avaliar as relações sociais do ambiente de trabalho e fontes geradoras de estresse (Karasek & Theorell, 1990). Baseia-se em dois aspectos: demanda e controle. As demandas são pressões de natureza psicológica referente a tempo disponível e velocidade para realização do trabalho. O controle é a possibilidade de o trabalhador utilizar suas habilidades intelectuais e autoridade na tomada de decisão sobre o processo de trabalho (Karasek & Theorell, 1990). Bakker e Demeroutti (2007) sugerem que as demandas psicológicas do trabalho podem ser toleradas se o controle sobre o processo de trabalho se mantiver alto. No entanto, indivíduos expostos a altas demandas com baixo controle de trabalho, em um contexto de insuficiência de recursos pessoais e organizacionais, podem estar mais vulneráveis ao desenvolvimento de burnout.

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Teoria de Conservação de Recursos A Teoria de Conservação de Recursos (Conservation of Resources Theory) tem como base a motivação humana. De acordo com essa teoria, os indivíduos se esforçam para manter ou obter coisas que eles valorizam, os chamados recursos (por exemplo, segurança no trabalho, dinheiro, apoio social, suporte, sucesso na carreira) (Hobfoll & Freedy, 1993). O estresse ocorre quando os recursos são ameaçados ou perdidos. A perda de recursos é mais estressante que a falta de ganhos. Aplicado ao burnout, a teoria defende que a sobrecarga de trabalho ameaça os recursos individuais, causa estresse e eventualmente leva a exaustão emocional e física (Hobfoll & Freedy, 1993). Essa teoria deu origem ao instrumento Shirom-Melamed Burnout Measure (SMBM), composto de 14 itens, distribuídos em três dimensões, sendo exaustão emocional (três itens), fadiga física (seis itens) e cansaço cognitivo (cinco itens), em que o trabalhador assinala

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a frequência de seus sentimentos por meio de uma escala likert (Shirom & Melamed, 2006).

Modelo do Processo de Burnout O Modelo do Processo de burnout defende que a síndrome inicia-se com a exaustão emocional, desencadeada pela sobrecarga de trabalho e pelos conflitos interpessoais, ao passo que os recursos estão mais associados à despersonalização e à realização profissional (Leiter, 1993). Autores admitem relação sequencial entre exaustão e despersonalização (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001), ou seja, inicialmente o trabalhador se sente exausto emocionalmente e, posteriormente, instala-se o processo de despersonalização. No entanto, a reduzida realização profissional é uma dimensão paralela influenciada pela falta de recursos pessoais e/ou organizacionais que interferem no comprometimento com o trabalho (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). O MBI foi desenvolvido com base neste modelo teórico-explicativo por Maslach e colaboradores. Em sua primeira versão, a escala contava com 47 itens. Após análises fatoriais, o MBI foi reduzido para 22 itens distribuídos nas três dimensões do burnout: exaustão emocional, despersonalização e reduzida realização profissional (Leiter, 1993; Schaufeli, Maslach & Marek, 1993). A consistência interna da escala foi satisfatória, com coeficientes de Cronbach de 0,90 para exaustão emocional, 0,79 para despersonalização e 0,71 para realização profissional (Maslach & Jackson, 1981).

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No MBI, o entrevistado também declara a frequência de seus sentimentos e atitudes por meio de uma escala likert. São nove itens correspondentes à exaustão emocional, cinco itens relacionados à despersonalização e oito itens que questionam sentimentos de competência e realização profissional do indivíduo (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Assim, os itens das duas primeiras dimensões possuem afirmações negativas, em que maiores escores traduzem piores situações, enquanto que na realização profissional os itens possuem afirmações positivas, ou seja, quanto menor o escore, pior a situação (escore inverso) (Maslach, Leiter & Schaufeli, 2008).

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Autores afirmam que altos escores de exaustão emocional ou despersonalização correspondem ao risco aumentado de experimentar burnout, pois essas duas dimensões se correlacionam moderadamente (Maslach & Jackson, 1981). Posteriores estudos longitudinais também mostraram evidências de que exaustão emocional e despersonalização possuem forte relação entre si, sendo partes importantes na explicação do constructo de Maslach (Schaufeli & Taris, 2005; Taris, Le Blanc, Schaufeli & Schreurs 2005). De acordo com os propositores do MBI, os escores de burnout devem ser calculados em cada dimensão e não combinados em escore total (unidimensional), possibilitando, em estudos epidemiológicos, a classificação do trabalhador em cada dimensão de burnout quanto ao nível: baixo, médio ou alto, a partir do ponto de corte matemático estabelecido pelo pesquisador (Maslach, Jackson & Leiter, 1997; Maslach & Jackson, 1986).

Modelo Trabalho-Demanda-Recurso O Modelo Trabalho-Demanda-Recurso ( Job DemandsResources model) enfatiza que o burnout surge quando os indivíduos estão expostos a altas demandas de trabalho e inadequados recursos organizacionais. O pressuposto dessa teoria é que cada ocupação tem fatores de risco próprios associados ao estresse no trabalho, ou seja, demandas e recursos específicos (Bakker & Demeroutti, 2007). A definição de demandas de trabalho é a mesma do Modelo Trabalho Demanda-Controle (Karasek & Theorell, 1990). Os recursos correspondem aos aspectos físicos, psicológicos, sociais ou organizacionais do trabalho (metas de trabalho atingíveis, demanda de trabalho que não gere prejuízos psicológicos e fisiológicos, estímulo ao crescimento pessoal e profissional) (Bakker & Demeroutti, 2007). A escala Oldenburg Burnout Inventory (OLBI) foi desenvolvida com base nesse fundamento teórico e compõe-se de 16 itens com duas dimensões: exaustão, que corresponde ao esgotamento físico e sobrecarga de trabalho (8 itens) e cinismo, que avalia comportamentos e atitudes no ambiente laboral (8 itens) (Demerouti & Bakker, 2008).

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Fatores Individuais, Ocupacionais e Organizacionais Relacionados ao Burnout Apesar de burnout ser uma experiência particular, nota-se que é um fenômeno complexo, multidimensional, resultante da interação entre aspectos individuais e do ambiente de trabalho (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Muitas características individuais, abordadas nesse capítulo, podem se confundir com características ocupacionais, como, por exemplo, a predominância de determinado sexo em um tipo de ocupação. Os fatores individuais são entendidos como facilitadores ou inibidores da ação de agentes estressores, não podendo atribuir apenas a eles o surgimento de burnout (Pereira, 2002). No entanto, fatores ocupacionais e organizacionais, tais como ocupação, carga de trabalho, controle do processo de trabalho, apoio social, conflito de papéis, conflito com valores pessoais, remuneração e clima organizacional foram amplamente estudados e apresentam evidências mais consistentes na literatura no que diz respeito à sua relação com burnout. Alguns desses fatores são apresentados a seguir.

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Idade Observa-se, em estudos desenvolvidos por Maslach, Schaufeli & Leiter (2001), uma maior incidência de burnout em profissionais jovens, principalmente entre os menores de 30 anos. A idade e os anos de experiência de trabalho parecem ser convergentes. Nos primeiros anos de trabalho, as pessoas apresentam maior insegurança e pouca experiência na profissão, fazendo com que elas tenham maior dificuldade de enfrentar os problemas, podendo até abandonar a profissão (Cherniss, 1980; Maslach & Jackson, 1981).

Sexo Na década de 1980, acreditava-se que a mulher era mais propensa ao burnout do que o homem, pelo fato de elas mais frequentemente se envolverem com os problemas de seus pacientes/clientes, trabalharem com maior frequência em ocupações que demandam contato intenso com outras pessoas (por exemplo:

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enfermagem e docência), e, ainda, administrarem as necessidades de sua família (Maslach & Jackson, 1985). Embora os argumentos pareçam plausíveis, não há consenso sobre essa relação. De modo geral, mulheres têm apresentado maiores níveis de exaustão emocional (Innstrand, Langballe, Falkum & Aasland, 2011; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001; Pu et al., 2017), enquanto homens, de despersonalização (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). A dupla jornada de atividades (trabalho e lar), predominante entre mulheres, pode justificar maiores níveis de exaustão emocional. O fato de os homens, por questões culturais, expressarem menos frequentemente os sentimentos de raiva, hostilidade e indignação, pode explicar maiores níveis de despersonalização (Pereira, 2002). A predominância de um determinado sexo nas diferentes ocupações pode ter papel confundidor nessa relação (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).

Nível Educacional Normalmente, as pessoas com maior nível educacional possuem maiores responsabilidades, que, combinadas aos altos níveis de estresse, podem desencadear burnout. Em adição, tais profissionais podem se frustrar ao construir expectativas laborais que não se tornam realidade (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).

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É importante salientar que a relação entre nível educacional e burnout não é consistente na literatura, e pode ser confundida com a posição que o trabalhador ocupa na instituição (Maslach & Jackson, 1981).

Situação Conjugal Geralmente, aqueles que tem um companheiro estável parecem ser menos propensos ao burnout (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Os solteiros parecem experimentar níveis maiores de burnout do que os divorciados (Maslach, 2009). A relação entre situação conjugal e burnout , no entanto, ainda não é comprovada por estudiosos (Lindblom, Linton, Fedeli & Bryngelsson, 2006; Llorent & Ruiz-Calzado, 2016; Maslach & Jackson, 1985; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).

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Características da Personalidade Estudos evidenciam que indivíduos introvertidos, com dificuldade de se posicionar diante da vida, com alto neuroticismo (com traços de ansiedade, hostilidade, depressão, baixa autoconsciência, alta vulnerabilidade), baixa amabilidade e baixa consciensiosidade (dificuldade em planejamento e gestão do tempo no trabalho) são mais propensos a desenvolver a síndrome (Alarcon, Eschleman & Bowling, 2009; Armon, Shirom & Melamed, 2012; Swider & Zimmerman, 2010). Especificamente, estudo com professores iranianos de escolas públicas encontrou que neuroticismo relacionou-se à exaustão emocional, baixa amabilidade se associou à despersonalização e baixa consciensiosidade à reduzida realização profissional (Pishghadam & Sahebjam, 2012).

Estratégias de Enfrentamento (Coping ) É consistente na literatura que a forma como o indivíduo lida com situações estressantes pode ser protetora ou desencadeante de burnout (Carlotto & Câmara, 2008). Em suma, estratégias de controle mostram-se importantes na prevenção de burnout, enquanto que as de evitação e fuga facilitam seu surgimento (Leiter, 1991).

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Normalmente, profissionais que evitam ou fogem dos estressores laborais apresentam maiores níveis de exaustão emocional, enquanto indivíduos que se utilizam de estratégias de afastamento frente às dificuldades demonstram maiores níveis de despersonalização, quando comparados àqueles centrados na resolução do problema (Carlotto & Câmara, 2008; Hernández-Zamora; Olmedo-Castejón & Ibáñez-Fernández, 2004).

Crença de Autoeficácia A dúvida sobre a capacidade de fazer o que lhe é exigido ou a expectativa negativa sobre os resultados de seus esforços para resolução dos problemas aumentam o risco de burnout (Costa, 2003). Os indivíduos com percepção de alta autoeficácia resolvem problemas empregando estratégias que melhoram seu trabalho. Em contrapartida, aqueles com baixa autoeficácia ocupacional

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(considerada mediador do burnout ) não buscam alternativas para mudança do problema (Ferreira & Azzi, 2010).

Ocupação Segundo Pereira (2002), a síndrome de burnout é um fenômeno disseminado e pode acometer qualquer profissão. As profissões mais apontadas são aquelas em que os profissionais lidam com outras pessoas em seu cotidiano ou em sua atividade laboral (por exemplo, médicos, professores, profissionais da área de enfermagem, policiais e psicólogos). Em 2005, foi publicado um estudo que comparou a experiência de estresse laboral em 26 ocupações. Seis segmentos ocupacionais (trabalhadores de ambulância, professores, profissionais do serviço social, atendentes de call centers, guardas prisionais e policiais) apresentaram piores níveis de saúde física, psicológica e satisfação no trabalho (Johnson, Cooper, Cartwright, Taylor & Millet, 2005).

Carga de Trabalho (Alta Demanda de Trabalho)

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O fato do indivíduo ter muito trabalho para pouco tempo de execução associa-se fortemente ao burnout, em especial com a exaustão emocional (Demerouti, Le Blanc, Bakker, Schaufeli & Hox, 2009; Janssen, Schaufeli & Houkes, 1999; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001). Demandas qualitativas do trabalho (por exemplo, gravidade dos problemas dos clientes/pacientes) também apresentam correlações na mesma direção (Demerouti, Le Blanc, Bakker, Schaufeli & Hox, 2009; Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).

Controle Sobre o Processo de Trabalho A associação entre perda de controle no processo de trabalho e burnout é consistente. Isso ocorre quando os trabalhadores não se percebem participativos nas decisões do trabalho e com dificuldades em exercer sua autonomia profissional (Maslach & Leiter, 2016). A falta de controle está normalmente relacionada com a reduzida realização profissional (Maslach, Schaufeli & Leiter, 2001).

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Apoio Social O apoio social no trabalho pode ser definido como uma função de auxílio exercido por pessoas significativas em relação à provisão material, de informações ou de assistência emocional em situações de estresse (Birolim et al., 2019). Níveis maiores de apoio social estão associados a um menor sofrimento profissional (Birolim etal., 2019). Assim, quando as relações interpessoais no trabalho são caracterizadas pela falta de apoio, desconfiança e conflitos não resolvidos, há um risco maior de desenvolver burnout (Janssen, Schaufeli & Houkes, 1999; Maslach & Leiter, 2016).

Conflito de Papéis As funções, expectativas e condutas que uma pessoa deve desempenhar em seu trabalho constitui-se seu papel profissional (Pereira, 2002). O conflito ocorre quando o desempenho do trabalhador em determinado cargo não corresponde às expectativas da organização. Quanto maior o conflito de papéis, maior o risco de desenvolver burnout (Maslach & Leiter, 2016).

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Conflito com Valores Pessoais Valores são ideais e motivações que atraem as pessoas para o trabalho. O conflito ocorre quando o trabalhador se sente constrangido ao ser solicitado para fazer alguma ação que considera antiética ou em não conformidade com seus valores individuais, podendo levar ao desgaste emocional (Maslach & Leiter, 2016).

Recompensa (Remuneração) A recompensa recebida pelo exercício da profissão pode ser insuficiente ou incompatível com as necessidades do trabalhador. Em alguns casos, pode ser visto como falta de reconhecimento social. Normalmente está associada a sentimentos de reduzida realização profissional (Maslach & Leiter, 2016).

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Clima Organizacional O clima de trabalho influencia na relação de respeito, confiança e bem-estar entre as pessoas (Koponen etal., 2010). Se a organização não se mostra favorável a desenvolver uma política de adaptabilidade, flexibilidade às demandas internas e externas e satisfatória integração entre os empregados, tem-se um risco aumentado para burnout (Pereira, 2002).

Medidas Preventivas Relacionadas ao Burnout Sugere-se que o enfrentamento da síndrome de burnout seja multissetorial, com intervenções centradas em três níveis: a) na resposta do indivíduo frente aos estressores laborais, b) na melhoria do contexto organizacional e c) na interação do indivíduo com seu trabalho. As intervenções no contexto organizacional ou àquelas combinadas com aspectos individuais são as mais adequadas para ambientes com grande variabilidade de estressores laborais (Moreno, Gil, Haddad & Vannuchi, 2011).

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Resposta do Indivíduo Frente aos Estressores Laborais No nível individual, o primeiro passo é a compreensão de conceitos e consequências de burnout, julgados imprescindíveis para reconhecer o problema futuro (autodiagnóstico) e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento (coping) (Carlotto, 2014; Hernández etal. 2002). De modo geral, a resposta de um indivíduo frente a um problema pode ser movida pela emoção ou focada em sua resolução. Quando influenciada pela emoção, as estratégias normalmente adotadas pelos sujeitos englobam evitação, minimização, distanciamento, atenção seletiva e atribuição de valores positivos aos acontecimentos negativos (Hernández et al. 2002). Essas estratégias são eficazes quando os estressores não podem ser modificados e há necessidade de se conviver com eles (Hernández etal. 2002). Para atuar diretamente na resolução de problemas, o indivíduo pode desenvolver habilidades comportamentais e cognitivas de enfrentamento, com ou sem apoio de

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psicoterapia, utilizando a valorização da autoeficácia e autoconfiança, a capacidade de resolução de conflitos e o controle efetivo de tarefas e funções (Hernández etal. 2002; Maslach & Leiter, 2016). Além disso, mudanças na rotina de vida ou adoção de terapias complementares são benéficas na prevenção do burnout , tais como meditação, técnicas de relaxamento, terapia cognitivocomportamental, educação em saúde, realização de exercícios físicos, dieta equilibrada, boa qualidade de sono e aproveitamento do tempo livre (Hernández etal. 2002; Maslach & Leiter, 2016; Moreno, Gil, Haddad & Vannuchi, 2011).

Na Melhoria do Contexto Organizacional A síndrome de burnout tem origem no trabalho, de modo que a inflexibilidade do processo institucional e as rígidas exigências comprometem a versatilidade psíquica do trabalhador (Moreno, Gil, Haddad & Vannuchi, 2011). Os programas centrados na melhoria do contexto ocupacional compreendem ações modificadoras no processo e relações de trabalho, com foco nos ajustes das condições físicas e psicossociais (Hernández etal. 2002).

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Dentre os fatores físicos, os principais aspectos a serem revistos são ruídos, odores, iluminação, sinalização, temperatura, umidade e infraestrutura do ambiente de trabalho. No âmbito psicossocial, melhorias na autonomia e participação nas decisões, na comunicação, no processo de trabalho, na carga de atividades e na organização do tempo são importantes para a integração interpessoal e satisfação do profissional (Hernández etal. 2002). Dessa forma, um parâmetro ideal consiste em intervenções com ações diretas na cultura institucional e nas condições de trabalho, a fim de proporcionar ambiente de trabalho salubre, recursos humanos suficientes, disponibilidade de materiais, autonomia e participação na tomada de decisão, líderes com escuta ativa às reivindicações dos trabalhadores, avaliações periódicas do processo de trabalho, planejamento estratégico que norteiem metas institucionais, lotação do funcionário em local que melhor se adapte ao seu perfil, resolução de conflitos de forma imparcial e justa e investimento em educação permanente (Moreno, Gil, Haddad & Vannuchi, 2011).

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Interação do Indivíduo com seu Trabalho Os programas centrados na interação do indivíduo com seu trabalho têm como objetivo promover intervenções combinadas, para a modificação das condições de trabalho e no modo de enfrentamento do indivíduo diante das situações de estresse, tais como ações para melhoria na comunicação e trabalho em equipe, reuniões para discussões, reflexões dos problemas e grupos de apoio psicológico (Carlotto, 2014; Hernández etal. 2002; Moreno, Gil, Haddad & Vannuchi, 2011).

Considerações Finais Apesar do conhecimento construído sobre burnout até o momento, a síndrome tem se apresentado crescente no mundo e gera inúmeras preocupações. Sabe-se que o burnout impacta na vida do trabalhador, podendo ocasionar consequências físicas, psicológicas e ocupacionais. Estudos epidemiológicos longitudinais comprovam que doenças cardiovasculares, dores musculoesqueléticas, sintomas depressivos, insatisfação no trabalho e absenteísmo são implicações consistentes entre trabalhadores com burnout (Salvagioni etal., 2017).

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Por este motivo, o conhecimento sobre os aspectos contextuais da síndrome é essencial para que o indivíduo possa identificar que algo está errado na relação com seu trabalho e buscar o enfrentamento. Ainda, é urgente que as organizações tenham políticas de saúde do trabalhador, com implantação de medidas que visem melhores condições de trabalho e administração de estressores. Ampliar o conhecimento sobre fatores relacionados ao contexto socioeconômico e laboral que favorecem o desenvolvimento da síndrome de burnout também é fundamental, haja vista a escassez de estudos com essa perspectiva.

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Aspectos Farmacológicos dos AINEs e Opiodes no Tratamento da Dor Crônica Nociceptiva

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Andressa de Freitas Mendes Dionisio* Universidade Estadual de Londrina

Introdução

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Autor para correspondência: [emailprotected] Laboratório de Farmacologia da Inflamação Departamento de Ciências Fisiológicas. Centro de Ciências Biológicas CCB, Campus Universitário. Rodovia Celso Garcia Cid/PR 445 Km 380. Caixa Postal: 10.011 CEP: 86057-970 - Londrina-PR. Fone: 55 43 33714650

A dor crônica é uma condição debilitante que acomete 20-50% da população mundial e, representa um dos maiores problemas de saúde pública, com grande repercussão na produtividade (de Souza et al., 2017). Dados demonstram que apenas nos Estados Unidos a dor crônica acomete 31% da população, sendo que 75% desses indivíduos apresentam incapacidade total ou parcial (Kreling, da Cruz, & Pimenta, 2006). Embora no Brasil os estudos epidemiológicos sobre dor sejam escassos, o estudo realizado por Souza e colaboradores, mostrou incidência de dor crônica em 39% da população estudada, sendo a média de idade acometida de 41 anos, com predomínio no sexo feminino (56%). Dos entrevistados que relataram dor crônica, 49% relataram insatisfação com o tratamento da dor (Souza etal., 2017). A dor de origem crônica persiste por meses ou anos e, está relacionada a presença de doenç a crônica ou de uma dor aguda não tratada de modo adequado, como a que frequentemente ocorre após um procedimento cirúrgico ou trauma. Neste contexto, dados demonstram que a dor aguda após cirurgia ou trauma pode evoluir para um quadro de dor crônica em 10% dos pacientes (Roe & Sehgal, 2016; Glare, Aubrey & Myles, 2019). A dor pode ser classificada em nociceptiva ou neuropática. A dor nociceptiva está relacionada a dano tecidual e está presente, por exemplo, na osteoartrite, artrite reumatoide, lombalgia e dor pós- cirúrgica. Este tipo de dor possui resposta satisfatória aos antiinflamatórios não esteroidais (AINEs), paracetamol, dipirona e opioides.

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A dor neuropática tem origem na lesão ou disfunção de nervos, e ocorre na neuropatia periférica diabética, na neuralgia pós herpética e, não responde de forma satisfatória aos analgésicos utilizados no tratamento da dor nociceptiva, no entanto, apresenta melhor resposta terapêutica com o uso de antidepressivos e anticonvulsivantes (Golan, Tashjian JR, Armstrong, Armstrong, 2014; Rang, Dale, Ritter, Flower, & Henderson, 2016). Uma vez que a dor crônica tem um curso de longo prazo, pode ter origem nociceptiva ou neuropática, estando frequentemente associada a alterações físicas, emocionais, sociais e, todos esses fatores contribuem com a persistência da dor, o paciente necessita de um tratamento adequado que melhore suas funções e com isso permita uma melhor qualidade de vida. Desta forma, o tratamento deve possuir caráter multidisciplinar abordando o impacto psicológico, social e físico patológico (Roe & Sehgal, 2016). Neste capítulo serão abordados os aspectos farmacológicos do tratamento da dor crônica. Atualmente estão disponíveis diversas classes de fármacos que são utilizados para esta finalidade, os quais incluem os AINEs, paracetamol, dipirona, opioides, antidepressivos, anticonvulsivantes, toxina botulínica, canabinoides. A abordagem deste capítulo terá como foco o estudo dos AINEs e dos opioides.

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Objetivos Este capítulo abordará o tratamento farmacológico da dor crônica de origem nociceptiva, com ênfase nos AINEs e nos opioides.

Desenvolvimento Anti-inflamatórios não Esteroidais (AINEs) Papel dos Prostanoides na Hiperalgesia

Entre os anti-inflamatórios mais prescritos em todo o mundo estão os AINEs, os quais possuem ação analgésica, anti-inflamatória e antipirética, atuam na dor leve a moderada. Essa classe de fármacos é a mais prescrita na Reumatologia, e é utilizada no tratamento da dor

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de origem nociceptiva tanto aguda quanto crônica, sendo eficazes, por exemplo, no tratamento da lombalgia crônica, na dor crônica causada pela osteoartrite, artrite reumatoide, dor pós-operatória crônica (van Tulder, Scholten, Koes, & Deyo, 2000; Myers etal., 2014). A prostaglandina é um dos mediadores envolvidos na sensibilização periférica do neurônio aferente primários ou nociceptores, promovendo redução do limiar das respostas dolorosas e surgimento da hiperalgesia primária, que é a sensação aumentada de dor a um estímulo que já é doloroso. Quando a lesão tecidual é curada, ou o paciente é submetido a tratamento farmacológico para a dor, o limiar de resposta retorna ao normal. No entanto, a dor pode permanecer, mesmo tendo passado o período da resolução da lesão tecidual e tornar-se crônica. As prostaglandinas também estão envolvidas na sensibilização central e no surgimento de hiperalgesia secundária, ou seja, dor fora da área da lesão inicial (Woolf & Salter, 2000; Woolf & Ma, 2007). O mecanismo de ação dos AINEs baseia-se na inibição da enzima ciclo-oxigenase (COX) e, consequente redução da síntese de prostanoides, os quais englobam as prostaglandinas, prostaciclinas (PGI2) e tromboxanos (TXA2). As prostaglandinas são consideradas mediadores finais da dor inflamatória, e atuam sensibilizando os nociceptores à estimulação posterior (Ferreira, 1972). Assim, as prostaglandinas atuam nos nociceptores reduzindo o limiar necessário para desencadear a geração do potencial de ação, gerando a hiperalgesia, que é o aumento da resposta dolorosa a um estímulo nociceptivo, o qual normalmente causa dor (Ferreira, 1972).

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Síntese de Prostanoides Para que ocorra a síntese de prostanoides, o ácido araquidônico deve ser inicialmente hidrolisado dos fosfolipídeos de membrana através da enzima fosfolipase A2 (PLA2). Existem diversas isoformas da enzima PLA2, sendo a isoforma citosólica a mais importante durante o processo inflamatório. É importante mencionar que o ácido araquidônico livre é substrato para duas vias enzimáticas distintas: a via da COX que dará origem aos prostanoides e a via da lipoxigenase que dará origem aos leucotrienos. Neste capítulo o nosso foco será o estudo da via da COX. Assim, uma vez hidrolisado, o ácido

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araquidônico tem acesso ao sítio catalítico da COX, onde inicialmente é convertido em prostaglandina G2 (PGG2), através da oxigenação e ciclização do ácido araquidônico. Subsequentemente a PGG2 é convertida também por ação da COX em prostaglandina H2 (PGH2). Tanto a PGG2 quanto a PGH2 são altamente instáveis, e uma vez a PGH2 formada esta é rapidamente convertida por ação enzimática em PGI2, TXA2 e diferentes subtipos de prostaglandinas, dependendo o tecido onde a PGH2 tenha sido originada. O TXA2 é formado nas plaquetas e atua como agregante plaquetário e vasoconstritor, já a PGI2 é produzida principalmente no endotélio vascular a partir da PGH2 e possui ação antiagregante plaquetária e vasodilatadora. Desta forma, o TXA2 e a PGI2 atuam como antagonistas fisiológicos. Com relação aos subtipos de prostaglandinas, a prostaglandina E2 (PGE2) possui um papel chave tanto no processo inflamatório quanto na dor, e é formada em diversos tipos celulares como, por exemplo, nos macrófa*gos (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016; Katzung & Trevor, 2017). Como já mencionado, a PGE2 atua como mediador final da dor inflamatória, uma vez que os nociceptores expressam receptores para prostaglandinas, os quais, quando ativados, promovem a sensibilização direta. Os receptores de prostaglandinas estão expressos em fibras nociceptoras do tipo C (Teixeira, Alves-Neto, Costa, & Siqueira, 2009). Dessa forma, impedir que a prostaglandina atue sensibilizando os nociceptores possui um papel crucial no tratamento farmacológico da dor. Um dos mecanismos para impedir esse processo, é através da utilização dos AINEs, os quais atuam através da inibição da COX, e consequentemente impedem a formação de prostanoides, entre estes a PGE2 (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016; Katzung & Trevor, 2017).

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Para entendermos melhor o mecanismo de ação dos AINEs, bem como os efeitos adversos desencadeados por esses fármacos precisamos compreender a enzima COX. Há duas isoformas da COX bem caracterizadas, COX-1 e COX-2, que embora sejam produtos de genes distintos compartilham entre si 60% de hom*ologia. A COX-1 e COX-2 são estruturalmente semelhantes. Ambas isoformas estão anexadas a membrana interna celular e, apresentam um canal hidrofóbico interno, por onde o ácido araquidônico hidrolisado

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tem acesso ao sítio ativo da enzima para ser metabolizado em prostanoides (Fonseca, Brunton, Hilal-Dandan, Knollmann, 2018). A COX-1, cujo gene localiza-se no cromossomo 9, é uma isoforma expressa de forma constitutiva ou fisiológica na maioria das células, e é responsável em originar prostanoides com função da manutenção da homeostasia. Por exemplo, a COX-1 presente nas células do trato gastrointestinal é responsável pela proteção da mucosa gástrica e duodenal. A PGE2 e PGI2 formadas a partir da COX-1contribuem com a redução da secreção de ácido clorídrico, promove secreção de muco e bicarbonato e aumenta o fluxo sanguíneo para o estômago. A nível renal a PGE2 e a PGI2 derivadas da COX-1 promovem manutenção do fluxo sanguíneo renal, enquanto a nível plaquetário o TXA2 é responsável pelo processo de agregação plaquetária (Oates etal., 1988; Johnson, Nguyen, & Day, 1994; Warner, Mitchell, & Vane, 2002; Golan etal., 2014; Rang etal., 2016; Katzung & Trevor, 2017). Por outro lado, a COX-2, produto gênico do cromossomo 1, é praticamente indetectável na maioria dos tecidos, tendo sua expressão induzida na inflamação. Mediadores inflamatórios podem atuar em diversos tipos celulares, como macrófa*gos, células endoteliais e induzirem a transcrição e posterior síntese proteíca da COX-2 nessas células. Desta forma, a COX-2 está fortemente implicada no processo inflamatório (Golan et al., 2014; Rang et al., 2016; Katzung & Trevor, 2017).

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Recentemente, foi descrito a existência da terceira isoforma da COX, a COX-3. A COX-3 é produto gênico do cromossomo 9, e estaria expressa em altos níveis no sistema nervoso central, sendo alvo de fármacos analgésicos e antipiréticos como paracetamol e dipirona. No momento mais estudos estão sendo conduzidos para caracterizar a expressão e funções dessa isoforma 3 da COX (Chandrasekharan etal., 2002). Os AINEs são classificados em inibidores não seletivos da COX e inibidores seletivos para a COX-2 ou coxibes. Os inibidores não seletivos da COX, também conhecidos como AINEs tradicionais, inibem tanto a COX-1 quanto a COX-2 em diferentes graus. Por outro lado os inibidores seletivos da COX-2 ou coxibes atuam na inibição da isoforma 2 da COX (Golan etal., 2014).

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Mecanismo de Ação dos AINEs Não Seletivos Embora, os AINEs não seletivos representem um grupo heterogêneo de fármacos e, por isso, são agrupados de acordo com características químicas comuns, como por exemplo, classe do ácido acético (indometacina, diclofenaco), classe do ácido propiônico (ibuprofeno, cetoprofeno), classe do oxicam (piroxicam, meloxicam), todos atuam através do mesmo mecanismo de ação. Tanto a COX-1 quanto a COX-2 apresentam um resíduo de arginina na posição 120. Para que a COX seja bloqueada, o AINE precisa penetrar o canal hidrofóbico da COX para ter acesso a este resíduo de arginina da enzima, onde fará uma ligação reversível. Essa ligação reversível do AINE tanto na COX-1 quanto na COX-2, impede o acesso do ácido araquidônico livre ao sítio catalítico da enzima, e consequentemente o ácido araquidônico não é metabolizado em prostanoides, como a PGE2. Assim, o tratamento com AINEs reduzirá a sensibilização da terminação nervosa nociceptiva promovida pelo PGE2 (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016; Katzung & Trevor, 2017; Fonseca etal., 2018). A aspirina é o representante mais antigo dos AINEs, no entanto, ao invés de formar uma ligação reversível com o resíduo de arginina na posição 120 da COX-1 e COX-2 como os outros AINEs não seletivos, a aspirina acetila uma serina na posição 530 tanto da COX-1 quanto da COX-2. A acetilação é uma ligação covalente, forte, irreversível. Desta forma a aspirina atua também como inibidor não seletivo da COX-1 e COX-2, mas como a ligação é irreversível seu efeito permanece até que novas enzimas da COX sejam sintetizadas (Fonseca etal., 2018).

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Características Farmacocinéticas Embora os AINEs tradicionais pertençam a diferentes classes químicas, todos compartilham os mesmos efeitos adversos bem como as mesmas ações terapêuticas, as quais incluem redução do processo inflamatório, analgesia e diminuição da febre. Os AINEs são ácidos fracos, cujo pH do estômago favorece o processo de absorção (chegada do fármaco até a corrente sanguínea), no entanto a maior parte do fármaco ingerido por via oral é absorvida no intestino delgado, o qual possui maior superfície de contato para a absorção.

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Uma vez o AINE na corrente sanguínea, este apresenta alto grau de ligação a albumina, proteína plasmática, aproximadamente 98% de ligação. Devido ao alto grau de ligação a proteínas plasmáticas a fração livre do fármaco (fração não ligada a proteínas) é pequena, tornado o volume de distribuição do AINE no organismo baixo, uma vez que apenas a fração livre do fármaco é capaz de distribuir-se dos vasos sanguíneos para os tecidos. Em virtude do caráter ácido desses fármacos, estes concentram-se no tecido inflamado. Como essa classe de fármacos liga-se muito às proteínas plasmáticas, fatores que desloquem o AINE da ligação às proteínas plasmáticas como, por exemplo, a hipoalbuminemia ou interações entre fármacos podem levar ao aumento da fração livre e assim gerar a efeitos adversos (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016). Uma vez exercido o efeito farmacológico, os AINEs precisam ser eliminados do organismo, e para que isso ocorra é necessário a metabolização e excreção do fármaco. O metabolismo dos AINEs ocorre principalmente no fígado através de enzimas que promovem alterações químicas na estrutura do fármaco que permite que este seja excretado, sendo a principal forma de excreção pela via renal (Golan etal., 2014). Como os AINEs são ácidos fracos a alcalinização da urina permite uma maior taxa de excreção. Com relação ao tempo de meia vida de eliminação dos fármacos do organismo, os AINEs são classificados em curta e longa. Como exemplo de compostos que apresentam meia vida de eliminação curta, ou seja, menor que 6 horas temos ibuprofeno, diclofenaco, cetoprofeno, indometacina, já o naproxeno e o piroxicam são exemplos de AINEs que apresentam longa meia vida de eliminação, maior que 10 horas. Algumas situações podem afetar o tempo de meia vida dos fármacos como disfunção hepática e renal, essas alterações prolongam a meia vida (Rang etal., 2016).

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Principais Efeitos Adversos Associados ao Uso Crônico dos AINES Não Seletivos O uso crônico de AINEs, principalmente para o tratamento de afecções crônicas, relaciona-se com inúmeros efeitos adversos, uma vez que os prostanoides participam de inúmeros processos fisiológicos. Os principais efeitos indesejáveis com o uso crônico

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são observados a nível do trato gastrointestinal, renal e plaquetário (Fonseca etal., 2018).

Distúrbios Gastrointestinais O efeito adverso mais comum dos AINEs, ocorre no trato gastrointestinal, o que dificulta a adesão do paciente com enfermidades reumáticas crônicas ao tratamento. A inibição da COX-1 nas células gástricas pelos AINEs não seletivos, reduz a produção de prostaglandinas citoprotetoras, consequentemente ocorre inibição da secreção de muco e bicarbonato, aumento da secreção ácida e redução do fluxo sanguíneo da mucosa (Brenol, Xavier, & Marasca, 2000). Como os AINEs não seletivos inibem também a COX-1 presente nas plaquetas, isso favorece o risco de sangramentos. O paciente pode apresentar dispepsia, vômitos e náuseas, diarreia, ulcerações, risco de hemorragia e/ou perfuração gástrica. Dados demonstram que 34-46% dos usuários de AINEs são acometidos por algum comprometimento do trato digestório. Neste contexto, é importante entendermos que o efeito do AINE não seletivo no trato gastrointestinal ocorre independente da via de administração, ou seja, a inibição da COX-1 irá ocorrer se esta classe de fármacos for administrada por via oral, intramuscular ou endovenosa. Desta forma, pacientes com alto risco de complicações gastrointestinais ou que necessitem fazer uso por longos períodos podem necessitar a prescrição de agentes gastroprotetores (Estes, Fuhs, Heaton, & Butwinick, 1993; Wolfe, Polhamus, Kubik, Robinson, & Clement, 1994, Rang etal., 2016).

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Efeito Renal Tanto a PGE2 quanto a PGI2 são prostanoides importantes para a manutenção do fluxo sanguíneo renal. Essa importância torna-se mais evidente em pacientes que apresentam doenças renais prévias, insuficiência cardíaca, hipertensão, diabetes, cirrose, pois esses indivíduos apresentam uma maior dependência dos prostanoides produzidos a nível renal com ação vasodilatadora para que tenham um adequado funcionamento dos rins. Nesses pacientes o uso de AINEs a médio e longo prazo está associado com maior incidência de

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efeitos colaterais renais, como retenção de sódio e água, redução do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular. No entanto, essas complicações renais são reversíveis com a suspensão do uso dos AINEs. Em situações mais graves, o uso dos AINEs pode desencadear insuficiência renal aguda, síndrome nefrótica, nefrite intersticial ou necrose papilar renal, complicações conhecidas no passado como nefropatia analgésica (Maher, 1984; Clive & Stoff, 1984; Oates etal., 1998; Whelton, 1999). O uso crônico de AINEs também pode promover elevação de 5mmHg da pressão arterial média. Este aumento da pressão arterial ocorre principalmente em indivíduos que são hipertensos, e indivíduos hipertensos que fazem uso de anti-hipertensivos como diuréticos, inibidores da enzima conversora de angiotensina e betabloqueadores. Estudos mostraram que o aumento da pressão arterial desencadeado pelo uso crônico de AINEs está associado a redução dos níveis de prostanoides vasodilatadores a nível renal (Johnson et al., 1994; Batlouni, 2010). >

Ação nas Plaquetas Uma vez que as plaquetas expressam apenas a COX-1, pois essas células não possuem núcleo não sendo possível a indução da COX-2, o uso de AINEs não seletivos pode promover prolongamento do tempo de sangramento, pela inibição da COX-1 e consequente inibição da formação de TXA2 pelas plaquetas. É importante ressaltar que o efeito da aspirina sobre as plaquetas é mais evidente quando comparado ao uso dos outros representantes dos AINEs tradicionais, uma vez que a inibição da COX-1 pela aspirina permanecerá pelo tempo de meia vida das plaquetas, aproximadamente 10 dias. A plaqueta não possuindo núcleo, mesmo cessado o uso da aspirina, a COX-1 continuará inibida pela ligação irreversível promovida pela aspirina e a plaqueta não terá como sintetizar novas COX-1 (Golan etal., 2014).

Inibidores Seletivos para a COX-2 ou Coxibes Os efeitos adversos, principalmente a nível de trato gastrointestinal, decorrentes do uso dos AINEs não seletivos

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limitavam a utilização a médio e longo prazo em pacientes com dores crônicas, como os pacientes com artrite reumatoide e osteoartrite. Neste contexto, a demonstração da existência da COX-2, a qual teria a expressão induzida durante o processo inflamatório e parecia não estar expressa de forma constitutiva nas células, levou a busca do desenvolvimento de fármacos seletivos para esta isoforma. O desenvolvimento de um inibidor seletivo para a COX-2 representaria um fármaco com ações anti-inflamatórias, analgésicas e antipiréticas, mas com a ausência das complicações gastrointestinais dos AINEs não seletivos e também não afetariam o tempo de sangramento (Abraham, El-Serag, Hartman, Richardson, & Deswal, 2007). Os pesquisadores perceberam uma diferença estrutural entre a COX-1 e COX-2, que poderia permitir o desenvolvimento dos inibidores seletivos para a COX-2. A COX-1 apresenta em seu canal hidrofóbico o aminoácido isoleucina na posição 523, enquanto a COX-2 apresenta na mesma posição 523 o aminoácido valina. A presença da valina na posição 523 da COX-2 gera a presença de uma bolsa lateral dentro do canal hidrofóbico, que torna uma porção do canal hidrofóbico da COX-2 mais larga do que a da COX-1. Essa bolsa lateral permitiu o desenvolvimento de fármacos com a estrutura química volumosa, os coxibes, que penetram no canal hidrofóbico e se encaixam na bolsa lateral da COX-2, impedindo que o ácido araquidônico tenha acesso ao sítio catalítico desta isoforma. No entanto, o grupamento volumoso dos coxibes não permite a entrada no canal hidrofóbico da COX-1, pois está não possui a bolsa lateral, e consequentemente essa isoforma não é inibida por esta classe de fármacos. Em 1999, menos de uma década após a descoberta da COX-2, os coxibes começaram a ser comercializados (Rang etal., 2016; Fonseca etal., 2018).

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Coxibes e Segurança Gastrointestinal Para demonstrar que os coxibes eram mais seguros a nível do trato gastrointestinal foi conduzido um amplo estudo que envolveu aproximadamente 8000 pacientes com artrite reumatoide. Os pacientes foram tratados com celecoxibe (coxibe) ou AINEs não seletivos por 01 ano, e foram acompanhados durante este período para determinar o surgimento de úlceras. Os dados demonstraram que os coxibes são mais seguros quanto a incidência de úlceras quando

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comparados aos AINEs não seletivos. No entanto, embora reduzidos, os efeitos gastrointestinais não desapareceram por completo com a inibição seletiva da COX-2, isso porque, a COX-2 está envolvida com a cicatrização de úlceras preexistente, isso provavelmente ocorreu em pacientes que já possuíam úlceras antes de iniciar o tratamento com o coxibe, e a utilização desta classe retardou a cicatrização das lesões já existentes (Bombardier etal., 2000).

Coxibes e Efeitos Cardiovasculares Embora os inibidores seletivos da COX-2 sejam mais seguros a nível gastrointestinal, estudos clínicos conduzidos em pacientes usuários crônicos desses fármacos demonstraram graves efeitos cardiovasculares e tromboembólicos (Bombardier etal., 2000; Saraiva, 2007). Esses efeitos no sistema cardiovascular levaram a proibição da venda do Rofecoxibe em 2004, do Valdecoxibe em 2005 e do Lumiracoxibe em 2008. Assim como os AINEs não seletivos, os coxibes, também inibem a produção da PGE2 e PGI2 a nível renal em pacientes que apresentam doenças renais prévias, insuficiência cardíaca, hipertensão, diabetes, cirrose. Acredita-se que o papel benéfico da PGE2 e PGI2 nesses pacientes deve-se a indução da COX-2 com a finalidade de contrapor os efeitos vasoconstritores preexistentes nesses indivíduos e obter uma vasodilatação compensatória para manutenção do fluxo sanguíneo renal e da taxa de filtração glomerular (Fonseca et al., 2018). Neste momento verificamos que a COX-2 não é induzida apenas durante o processo inflamatório.

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No entanto, com o avanço dos estudos dos efeitos cardiovasculares dos coxibes, verificou-se que no endotélio dos vasos a fonte de PGI2 é a COX-2 e não a COX-1. O fluxo sanguíneo normal dentro dos vasos sanguíneos promove um fenômeno chamado estresse de cisalhamento, que ocorre devido o contato do fluxo de sangue com as células endoteliais, esse estresse mecânico gerado nas células endoteliais induz a expressão da COX-2 no endotélio com consequente produção de PGI2, que promove vasodilatação e inibe a agregação plaquetária nos vasos. A prostaciclna formada dentro do vaso possui um papel fundamental para manter um ambiente vasodilatador e antitrombogênico (Mendes, 2012, Fonseca etal., 2018).

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Assim, o uso de coxibe irá inibir não apenas a COX-2 induzida durante o processo inflamatório, mas também a COX-2 produzida em decorrência do estresse de cisalhamento no endotélio dos vasos, reduzindo a produção de PGI2, o que reduz a vasodilatação e a inibição da agregação plaquetária. Um ponto importante é que com o uso dos inibidores seletivos da COX-2, a isoforma da COX-1 não é inibida, diferente do que ocorre com os AINEs não seletivos, e com o uso de coxibes o TXA2 que possui papel agregante plaquetário e vasoconstritor continua a ser produzido pelas plaquetas. Desta forma, com o uso de inibidores seletivos da COX-2 há o favorecimento de um ambiente trombogênico e vasoconstritor, devido a inibição da PGI2 e não bloqueio do TXA2 (Golan etal., 2014). Atualmente, o uso de coxibes é restrito a pacientes nos quais os AINEs não seletivos promoveriam efeitos gastrointestinais graves e só são prescritos após rigorosa avaliação de risco cardiovascular. O celecoxib é indicado para pacientes com osteoartrite, artrite reumatoide, espondilite anquilosaste, dor pós-operatória, desde que não apresentem risco cardiovascular. O parecoxibe é utilizado em ambiente hospitalar para tratamento em curto prazo da dor pósoperatória. A dispensação de coxibes em farmácias é realizada com retenção da receita médica e recomenda-se a menor dose possível e, o uso em curto período de tempo (Golan etal., 2014; Fonseca etal., 2018).

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Opioides Opioides Considerações Gerais

Historicamente, os opioides são indicados nos casos de dor aguda moderada a intensa, dor pós-operatória, controle da dor causada pelo câncer, bem como nos casos de dores presentes em doenças em estágios terminais, sendo considerado parte essencial do plano global de tratamento em pacientes com dor intensa. No entanto, ainda não há amplo suporte para a prescrição de opioides para dor crônica, pois o uso a longo prazo de opioides possui inúmeras implicações como potencial risco de abuso, overdose acidental, depressão respiratória, constipação, sedação, tolerância e em alguns casos o desenvolvimento de hiperalgesia induzida por opioides, como

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veremos ao longo do capítulo (Chou etal., 2015; Dowell, Haegerich, & Chou, 2016a; Dowell, Zhang, Noonan, & Hockenberry, 2016b; Katzung & Trevor, 2017). Estudos demonstram que uma pequena proporção de pacientes portadores de dor crônica se beneficiam com o uso de opioides. Uma das recomendações é que o tratamento com opioides para a dor crônica seja utilizado como o último recurso, ou seja, quando outras terapias medicamentosas, como o uso de AINEs, falharam no alívio da dor. No entanto, nas últimas décadas o uso de opioides como ferramenta para o manejo da dor crônica de origem não oncológica tem aumentado a nível mundial (Roe & Sehgal, 2016). O acesso ao tratamento com opioides para o alívio da dor é utilizado como um dos fatores que entra no cálculo do índice de desenvolvimento humano (IDH), pois significa que o indivíduo tem uma melhor qualidade de vida quando recebe um tratamento adequado para a dor (http://www.paliativo.org.br, recuperado em 12, agosto, 2019). Entre os países que apresentam maiores taxas de prescrição de opioides no mundo estão os Estados Unidos da America e o Canadá, enquanto o Brasil, em 2011, possuía uma das menores taxas mundiais de prescrição desta classe de fármacos (Seya etal., 2011). No entanto, essas informações merecem cautela, uma vez que os Estados Unidos e o Canadá registraram nas últimas duas décadas um crescente número de overdose por opioides. Entre 2000 e 2015, aproximadamente meio milhão de pessoas morreram nos Estados Unidos da América em decorrência de overdose por opioides, sendo esta situação classificada como uma epidemia decorrente do uso de opioides ocasionada pelo aumento das prescrições, usos inadequados e dependência (Dowell etal., 2016a; Dowell etal., 2016b; Krawczyk, Greene, Zorzanelli, & Bastos, 2018).

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Nos últimos anos, o consumo dos opioides está passando por alterações tanto na America Latina quanto no Brasil, um dos fatores responsáveis por esse aumento é a defesa crescente de melhorar a qualidade de vida do paciente tanto com dor oncológica quanto com dor crônica de origem não oncológica (Garcia, 2014). Dados publicados em 2018 na revista American Journal of Public Health mostraram que a venda de opioides através de prescrições médicas em farmácias no Brasil aumentou de 1.601.043 em 2009 para 9.045.945 em 2015, o que representa um aumento de 465% nas prescrições no período de 06 anos (Krawczyk etal. 2018).

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Para prescrição de opioides é necessário considerar as características do paciente, como comorbidades mentais e o risco potencial de abuso por opioides, como por exemplo, consumo de drogas, histórico familiar e história de abuso sexual (Kahan, Wilson, Mailis-Gagnon, Srivastava, & Group, 2011). Quando os opioides são prescritos, os objetivos funcionais do tratamento devem ser estabelecidos antes do início da terapia, esse planejamento deve envolver não apenas o paciente, mas também seus familiares e, inclui um programa de monitoramento de prescrição de fármacos, que compreende prescrição com data na receita, fornecimento de quantidade para 01 mês ou o que baste até a próxima consulta, contagem dos comprimidos, exames na urina para determinar a adesão do paciente e presença de outras substâncias inesperadas e acompanhamento da redução da dor e melhora da função. Desta forma, os pacientes que necessitem fazer uso de opioides a longo prazo para tratamento de dor crônica de origem não oncológica devem ser cuidadosamente e rigorosamente monitorados para reavaliar continuamente o benefício-risco do tratamento. (Centers for Disease Control and Prevention, 2017; Schuchat, Houry, & Guy, 2017).

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Origem dos Fármacos Opioides O uso de opioides para o alívio da dor possui mais de 5000 anos e, teve início com o uso do ópio. O ópio é obtido da sem*nte da papoula Papaver somniferum. Mas, apenas em 1803 o farmacêutico Freidrich Wilhelm Adam Serturner conseguiu isolar e identificar um dos componentes do ópio responsável pelas propriedades analgésicas. O composto isolado por Frederick Sertürner promovia não somente analgesia, mas também promovia bastante sonolência e, por isso, foi batizado de morfina em homenagem ao Deus grego dos sonhos, Morpheu. Além da morfina, no ópio estão presentes inúmeros outros alcaloides como a codeína. Um tempo após o isolamento da morfina, o químico inglês Alder Wright sintetizou a partir da morfina a diacetilmorfina, a qual foi posteriormente testada e desenvolvida por Heinrich Dreser, da Bayer, para ser utilizada como um potente analgésico. Em 1898, a Bayer começou a comercializar diacetilmorfina como heroína, nome dado pela “heróica” capacidade de promover o alívio da dor. No entanto, após alguns anos do início da

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comercialização da heroína para a analgesia, foi verificado a grande capacidade de gerar dependência, sendo retirada do mercado em 1913 (Guitart, 2014). O primeiro dos compostos endógenos com ação opioide, conhecido coletivamente como endorfinas, foi isolado em 1975 por Hughes e Kosterlitz (Rang etal., 2018).

Classificação dos Opioides No decorrer da história os opioides já possuíram inúmeras denominações como narcóticos, hipnoanalgésicos, narcoanalgésicos. Atualmente, esses termos não são mais utilizados, pois também abrangeriam outras substâncias com capacidade de gerar narcose, sono (Gozzani, 1994). A terminologia opiáceo é designada apenas para os compostos que possuem origem natural, ou seja, que são extraídos da papoula, como a morfina e codeína. Uma vez que existem compostos de origem natural (opiáceo), semissintéticos (heroína, hidromorfona) e sintéticos (fentanil, buprenorfina, metadona, sulfentanil) criou-se a terminologia oipioides. Os opioides abrangem as substâncias encontradas naturalmente na papoula (opiáceos), os compostos semissintético, sintéticos, e os compostos produzidos endogenamente (endorfinas). Assim, para serem classificados como opioides, esses compostos devem interagir com receptores para opioides, produzir efeitos semelhantes aos da morfina, e esses efeitos serem bloqueados por um fármaco antagonista para o receptor opioide (Martin, 1983; Rang etal., 2016).

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Principais Opioides A morfina é o opioide de referência ainda amplamente utilizado, no entanto, existem outros fármacos pertencentes a essa classe como fentanil, sulfentanil, remifentanil, metadona, oxicodona, codeína, tramadol, buprenorfina. Esses fármacos compartilham ações analgésicas e efeitos adversos. No entanto, existem diferenças relacionados a potência, eficácia, afinidade por receptor opioide, latência, metabolismo e duração de ação (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016).

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O fentanil é 80 a 100 vezes mais potente que a morfina, ou seja, para desencadear o mesmo efeito analgésico é necessário uma dose 100 vezes menor do fentanil quando comparado a dose da morfina. O fentanil é extremamente lipossolúvel, por isso, possui o início de ação rápido após a administração, no entanto, possui uma curta duração de ação. A lipossolubilidade permite que o fentanil seja administrado através da mucosa bucal na forma de pastilha ou pirulitos para pacientes pediátricos e na forma de adesivos transdérmicos que permitem a liberação prolongada em pacientes com dores crônicas (Fonseca etal., 2018; Manica, 2018). A morfina possui extenso metabolismo de primeira passsagem, dessa forma, após a administração por via oral a morfina é metabolizada no fígado e tem sua estrutura química alterada antes de chegar a corrente sanguínea e ser distribuída pelo organismo, esse fenômeno reduz a biodisponibilidade, ou seja, diminui a quantidade do fármaco original sem alterações metabólicas que chega até a corrente sanguínea. Por isso, a administração de morfina é preferível através das vias parenterais, injetáveis (Rang etal., 2016). A metadona é um opioide que possui a maior meia vida plasmática entre 25 a 35 horas, sendo utilizada para o tratamento de pacientes com dor crônica de origem oncológica e no tratamento de dependentes de opioides (Golan etal., 2014).

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O opioide codeína é 20% menos potente que a morfina, sendo indicado para dores moderadas como cefaleia e lombalgia e, para suprimir a tosse. A codeína é um pró-fármaco da morfina, ou seja, uma fração da molécula da codeína é transformada no organismo em morfina através de enzimas presentes no fígado (Rang etal., 2016).

Receptores Opioides e Distribuição no Organismo Existem 04 tipos de receptores opioides, denominados de acordo com a terminologia clássica de mu, kappa, delta e nociceptina/ orfanina FQ (NOP), cuja descoberta teve início em 1973 (Finck, 1979). Os opioides como morfina, fentanil, sulfentanil, oxicodona, entre outros opioides possuem maior afinidade pelo receptor mu, do que pelos outros receptores opioides. Assim, tanto o efeito analgésico quanto os efeitos adversos destes agonistas são consequentes da

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interação desses compostos principalmente com o receptor mu, por isso, esse receptor é conhecido como o receptor clássico da morfina (Rang etal., 2016; Fonseca etal., 2018). Desta forma, no decorrer do capítulo o foco principal será nas ações mediadas pelo receptor mu. O receptor mu encontra-se amplamente distribuído no cérebro (substância cinzenta periaquedutal no mesencéfalo), medula espinal (terminação nervosa central de neurônio de primeira ordem e em neurônio de segunda ordem presentes no corno dorsal da medula), terminação nervosa periférica livre do neurônio aferente primário ou nociceptor (após lesão ou inflamação), trato gastrointestinal, nervo oculomotor (Golan etal., 2014).

Mecanismo de Ação Analgésico dos Opioides Todos os opiodes apresentam efeitos clínicos semelhantes. Os opioides promovem analgesia a nível supraespinal (cérebro), a nível espinal (corno dorsal) e periférico (terminação nervosa livre do neurônio aferente primário ou nociceptor) (Golan etal. 2014; Katzung, 2018).

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Em nível supraespinal os opioides promovem a ativação da via descendente inibitória da dor. Esta via que inibe a dor tem início na substância cinzenta periaquedutal (PAG) no mesencéfalo e sua ativação exerce o papel inibindo a dor a nível da medula espinal. Fisiologicamente a via descendente inibitória da dor está inibida, pois, a dor é um mecanismo de defesa, sendo importante a sua manifestação. O neurotransmissor que é liberado fisiologicamente e inibe a via inibitória da dor, ou seja, que permite que conseguimos sentir dor, por inibir essa via, é o ácido gama-aminobutírico (GABA), um neurotransmissor inibitório. Na PAG há alta expressão dos receptores opioides do tipo mu. A ativação dos receptores mu da PAG por agonistas como a morfina ou opioides endógenos impede a liberação do GABA. Desta forma, com a ativação dos receptores mu na PAG, ocorre inibição da liberação do GABA e consequentemente a via descendente que inibe a dor a nível espinal é liberada promovendo analgesia. Contribuindo também com a analgesia a nível cerebral a ativação dos receptores mu pelos opioides reduz o componente afetivo vinculado a dor, bem como o modo pelo qual a dor é percebida pelo indivíduo (Katzung, 2018).

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Na medula espinal atuam a nível do corno dorsal. A terminação nervosa central do neurônio aferente primário (nociceptor) encontrase no corno dorsal e expressa receptores opioides do tipo mu. A ativação dos receptores mu na terminação nervosa central inibe a liberação de vesículas sinápticas que contém mediadores excitatórios (glutamato, substância P) que estão envolvidos na via ascendente da dor. No corno dorsal os receptores mu também estão expressos em neurônios de segunda ordem. A ativação dos receptores mu no neurônio de segunda ordem leva a hiperpolarização desse neurônio, ou seja, seu interior fica mais negativo dificultando a geração do potencial de ação, consequentemente a informação dolorosa (geração do potencial de ação) não será gerada e não será transmitida ao cérebro (Golan, etal., 2014; Rang etal., 2016; Katzung, 2018). Em termos periféricos, na ausência de lesão ou processo inflamatório a terminação nervosa livre do neurônio aferente primário ou nociceptor não expressa receptores opioides. No entanto, após injúria ou inflamação há indução da expressão de receptores do tipo mu. A ativação desses receptores a nível periférico leva a hiperpolarização do nociceptor, dificultando a geração do potencial de ação, e consequentemente a informação dolorosa (potencial de ação) não é transmitida da periferia para o corno dorsal da medula espinal (Oaklander, 2011).

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Principais Efeitos Adversos Opioides Tanto o efeito analgésico quanto os efeitos adversos dos diferentes opioides são semelhantes, o que pode ocorrer são variações em relação a intensidade desses efeitos (Golan, et al., 2014). O surgimento de efeitos adversos reduz a adesão do paciente ao tratamento, da mesma forma que a redução da dose para tentar minimizar os efeitos adversos compromete a analgesia satisfatória (Benyamin etal., 2008). No sistema nervoso central os opioides promovem sedação, que pode reduzir a capacidade de concentração e gerar acidentes e, em pacientes ambulatoriais e idosos a sedação pode levar a queda. Os agonistas dos receptores mu também podem promover euforia que gera bem-estar e contentamento, e este efeito está associado a procura pelo opioide por alguns pacientes. O principal e mais

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preocupante efeito adverso é a depressão respiratória. Os opioides atuam através da ativação dos receptores mu no centro do controle respiratório no bulbo, reduzindo a resposta respiratória ao dióxido de carbono, levando a depressão respiratória. O risco de depressão respiratória aumenta com doses maiores, quando combinados a outros fármacos depressores do sistema nervoso central como benzodiazepínicos, e também na presença de doenças respiratórias. Os opioides atuam no centro da tosse, deprimindo o reflexo da tosse (Fonseca etal., 2018; Manica, 2018). Essa classe de fármacos também promovem miose, atuam na zona quimiorreceptora bulbar promovendo náuseas e vômitos, no trato gastrointestinal gerando constipação, diminuem o esvaziamento gástrico, promovem retenção urinária, induzem liberação de prolactina, somatotropina, hormônio luteizante , diminuem tônus simpático o que pode resultar em hipotensão ortostática e geram bradicardia. Principalmente a morfina quando administrada por via endovenosa pode promover a degranulação de mastócitos e liberação de histamina que pode gerar hipotensão, prurido e broncoconstrição (Golan et al., 2014). Estudos demonstram que a administração crônica de opioides pode reduzir a resposta imune inata e a adaptativa, predispondo a infecções (Peterson, Molitor, & Chao, 1998; Dimitrijević etal., 2000; Sehgal, Colson, & Smith, 2013).

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Tolerância Em termos gerais a tolerância para a analgesia clinicamente manifesta-se 2 a 3 semanas após o início da terapia com doses terapêuticas habituais de opioides (Katzung, et al. 2018). Com o surgimento da tolerância observa-se a perda da eficácia, sendo necessário o aumento da dose do opioide para a obtenção da analgesia inicial e, frente a esse cenário muitas vezes a tolerância acaba sendo confundida com dependência, já que o paciente solicita doses maiores para a obtenção da analgesia (Benyamin etal., 2008; Golan etal., 2014; Angst, 2015). A tolerância pode ocorrer mais rápido com o uso de doses elevadas em intervalos curtos de administração (Katzung, etal. 2018). O receptor mu opioide é um receptor acoplado a proteina G do tipo inibitória. A ativação frequente desse receptor pelos agonistas

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opioides promove dessensibilização e posterior internalização do receptor, ou seja, ocorrerá a diminuição da expressão do receptor na superfície celular em decorrência do uso dos opioides, com essa redução de receptores há a redução do efeito analgésico (Williams etal., 2013; Varrassi etal., 2018). Com o surgimento da tolerância é necessário aumentar a dose ou realizar a rotação que é a troca de um opioide por outro, na prática a realização da rotação de opioides varia entre 15 a 40% (Nalamachu, 2012). A tolerância acontece para analgesia, depressão respiratória, euforia. Contudo não há tolerância para miose e constipação (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016).

Dependência Física Frequentemente junto com a tolerância é observado a dependência física. A dependência física por opioides ocorre quando há a interrupção abrupta do uso ou quando é administrado um antagonista dos receptores opioides, resultando na síndrome de abstinência. A síndrome de abstinência é caracterizada por agitação, ansiedade, insônia, anorexia, bocejo, transpiração, febre, vômito, diarreia, cólica, rinorreia, respiração ofegante, hipertensão, dilatação pupilar, tremor, dor muscular e convulsão (Golan etal., 2014; Rang etal., 2016).

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A dependência física é comum entre pacientes que fazem uso de opioides, possuir dependência física não é sinônimo de adicção, pois um paciente tratado com opioide pode ser dependente físico sem ser dependente psicológico (Rang etal., 2016). Tendo como exemplo a morfina, a síndrome de abstinência começa a se manifestar entre 6 a 10 horas após a última dose administrada, sendo os efeitos máximos da síndrome de abstinência observados em 36 a 48 horas e pode perdurar por alguns dias (Rang etal., 2016). Quando o tratamento com opioides pode ser finalizado, é importante realizar uma descontinuação do fármaco de forma gradual, reduzindo as doses administradas para que a síndrome de abstinência seja minimizada (Benyamin etal., 2008).

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Adicção ou Dependência Psicológica O risco de adicção é uma das principais preocupações para a prescrição de opioides. Na adicção por opioides ocorre alterações nas vias de recompensa cerebrais que culmina com o uso abusivo e, o comportamento compulsivo de busca pela substância, independente dos danos gerados pelo uso abusivo ou dos riscos decorrentes da busca por opioides (Golan, 2014). A adição constitui um efeito adverso potencial da administração de opioides e, o desejo compulsivo por esta classe de fármacos pode persistir por meses ou até anos após a última administração (Rang et a., 2016).

Hiperalgesia Induzida por Uso Crônico de Opioides Na hiperalgesia induzida por opioides ocorre aumento da dor em pacientes em terapia crônica com essa classe de fármacos. A hiperalgesia induzida por opioides é diferente da tolerância para a analgesia. Na hiperalgesia por opioides a dor permanece mesmo com o aumento de doses, há dor com uso de opioide na ausência da progressão da doença, e presença de dor não associada à dor original. Um dos mecanismos envolvidos na hiperalgesia por opioides envolve a ativação do sistema glumatérgico e os receptores NMDA. Um dos tratamentos para evitar ou reduzir a hiperalgesia consiste no uso de antagonistas do receptor NMDA como a cetamina (Silverman, 2009; Angst, 2015).

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Tratamento da Intoxicação Aguda por Opioides Para o tratamento de overdose e reversão da depressão respiratória por intoxicação aguda de opioides é necessário o uso de antagonistas do receptor mu, como a naloxona por via endovenosa. O antagonista possui alta afinidade pelos receptores mu e com isso impede que o opioide interaja e ative o receptor (Golan etal., 2014; Fonseca etal., 2018; Manica, 2018). A naloxona possui a meia vida menor do que dos opioides, assim o paciente precisa ser monitorado para que não ocorra retorno da depressão respiratória até que o opioide tenha sido eliminado do organismo (Golan etal., 2014).

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A naltrexona é um antagonista que possui uma meia vida de eliminação maior, é administrado por via oral em pacientes dependentes de opioides para o tratamento de desintoxicação (Fonseca etal., 2018).

Considerações Finais A dor crônica é uma condição debilitante, afeta a produtividade e a qualidade de vida do paciente. Entre os fármacos mais utilizados no tratamento da dor crônica estão os AINEs que atuam através da inibição da síntese de prostanoides, diminuindo os sinais e sintomas da inflamação e reduzindo a dor. Essa classe de fármacos não gera dependência física nem psicológica, no entanto, está relacionada com alta incidência de efeitos adversos, particularmente distúrbios no trato gastrointestinal de pacientes que fazem uso crônico, o que dificulta a adesão ao tratamento. Em diversos países como Estados Unidos e Canadá os opioides são usados para o tratamento da dor crônica de origem não oncológica, no entanto, o benefício do uso de opioides para o tratamento da dor crônica ainda necessita cautela. Os opiodes promovem inúmeros efeitos adversos como náusea vômitos, constipação, sedação, depressão respiratória o que propicia ao paciente a interrupção do tratamento. Além disso, o uso de opioides está relacionado ao desenvolvimento de tolerância, dependência física, possível dependência psicológica, hiperalgesia e alterações no sistema imune. Desta forma, o tratamento para a dor crônica deve possuir uma abordagem multidisciplinar, que considere as características individuais do paciente para que o tratamento mais adequado para a redução da dor seja empregado.

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Epilepsia em Cães

13 Lucas Alécio Gomes* Universidade Estadual de Londrina

Introdução Neste capítulo os termos crise epilética e convulsão epilética serão utilizados como sinônimos, surgindo ao longo do texto de forma mesclada. Essa escolha se deve a orientações presentes na literatura consultada a exemplo do “International veterinary task force consensus report on epilepsy definition, classification and terminology in companion animals” (publicado em 2015), do “2015 ACVIM small animal consensus statement on seizure management in dogs ” (publicado em 2016) e, também em consideração ao senso comum, cujo termo convulsão ainda permanece amplamente utilizado tanto por médicos veterinários quanto pelos tutores dos animais.

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Autor para correspondência: lucasalecio@ gmail.com Departamento de Clínicas Veterinárias: Rod. Celso Garcia Cid, PR 445, Km 380 CEP: 86051-980 Londrina - Paraná – Brasil, fone: 55+ (43) 3371-4559

A crise epilética ou convulsão epilética ocorre devido a um distúrbio elétrico transitório, excessivo ou sincrônico envolvendo neurônios cerebrais. Quando um animal apresenta crise epilética a localização neuroanatômica corresponde ao prosencéfalo (cérebro) (Heller, 2018; Prada, 2014). A causa de base poderá ser estrutural ou química, e poderá ocasionar desequilíbrio entre os mecanismos de excitação e inibição cerebral, que por vezes irá culminar com uma disfunção do prosencéfalo. Quando as crises epiléticas se tornam recorrentes, então elas passam a ser denominadas de epilepsia, cuja causa pode ser idiopática ou primária, genética (na qual genes específicos para doença são detectados ou quando há fortes evidencias do problema dentro de uma linhagem familiar), estrutural (alterações estruturais no cérebro, por exemplo, inflamação, infecção, neoplasia) ou reativa (denominada anteriormente de secundária). Assim sendo, destaca-se que a epilepsia idiopática é considerada quando exames de sangue, imagens de ressonância magnética

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do encéfalo e análise de líquido cerebrospinal são normais, porém, o diagnóstico clínico é aceitável se nenhuma doença de base for identificada, a idade for entre 6 meses e 6 anos e não houver alterações neurológicas entre os períodos de crise/convulsão epilética (Berendt et al., 2015; Coates & O’brien, 2017; Kaczmarska etal., 2020; Fisher etal. 2005, 2014; Lavely, 2014; Platt, 2012; Podell etal., 2016; Thomas & Dewey, 2016). Entretanto, a causa etiológica em muitos casos permanece não esclarecida (Seppällä etal., 2012). O termo idiopático significa uma doença de causa desconhecida, mas, para ser mais didático, o termo deve claramente definir uma entidade. Em pessoas, algumas epilepsias previamente classificadas como “idiopáticas” passaram a ser associadas a aspectos genéticos. Seguindo esta linha de raciocínio, sugere-se que o sistema prévio de classificação da epilepsia elaborado pela International League Against Epilepsy (ILAE) no qual a epilepsia era denominada idiopática, sintomática e criptogênica, seja reconsiderado e tais nomeações redefinidas para genética, estrutural/metabólica e as de causa desconhecida. Para que haja uniformidade na nomenclatura utilizada a respeito de epilepsia, a Medicina Veterinária tem seguido alguns modelos propostos pela ILAE, a qual se refere a seres humanos, entretanto, ainda permanece em parte a ausência de um consenso, uma vez, que nem todos os termos utilizados pela ILAE se adequam ao que ocorre na Medicina Veterinária (Berendt etal., 2015; Charalambous etal., 2017; Coates & O’brien, 2017; Thomas & Dewey, 2016).

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Estima-se que a ocorrência de epilepsia na população de cães em geral corresponda a 0,6 a 0,75%, embora não exista ainda uma quantificação exata confirmada (Berendt etal., 2015; Coates & O’brien, 2017). A maioria dos cães com epilepsia tem causa idiopática, enquanto que apenas 0-22 % dos gatos apresentam a doença na sua forma idiopática. Em relação ao sexo, os cães machos são ligeiramente mais acometidos que as fêmeas, porém, em se tratando de gatos até o momento não foi identificada qualquer influência quanto ao sexo. É importante destacar que em cadelas no período do estro parece haver diminuição do limiar para convulsão tornando-se assim um fator de risco importante a ser considerado, condição essa bem documentada em seres humanos com epilepsia catamenial (De Lahunta & Glass, 2009; Herzog, etal., 1997; Van Meervenne etal.,

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2015). A idade de manifestação das crises epiléticas idiopáticas nos cães ocorre usualmente entre 6 meses a 6 anos de idade, sendo que em um estudo a média foi de 2,6 anos, enquanto que em outro grande estudo envolvendo 407 cães a média de ocorrência da primeira crise epilética foi aos 3,9 anos de idade (Coates & O’brien, 2017; Jaggy & Bernardini 1998; Wahle etal., 2014). Entretanto, há casos em que a doença se manifesta aos 3 meses ou aos 10 anos de idade, demonstrando assim que ela pode ter uma amplitude grande no que diz respeito a idade. Algumas raças são predispostas a epilepsia idiopática como o Pastor belga, Poodle, Beagle, Retriever, Bernese, Boxer, Dachshund, Setter irlandês, Schnauzer miniatura, São Bernardo, co*cker Spaniel, Pastor alemão, Keeshond, Vizla, Husky siberiano, Lagotto Romagnolo, Wolfhound irlandês, etc. (Berendt & Gram, 1999; Berendt etal., 2015; Heske, etal. 2014; Platt. (2012); Jaggy & Bernardini, 1998; Podell, 2013; Thomas & Dewey, 2016). A epilepsia é um processo enfermo heterogêneo, complicado pela incapacidade de obter um diagnóstico definitivo para todos os pacientes como consequência dos desafios proporcionados pela limitação dos testes diagnósticos devido a restrições financeiras, imprevisibilidade da progressão da doença e lacunas no conhecimento da sua fisiopatologia (Armaşu, etal., 2014; Berendt etal., 2015).

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Estágios da Crise/Convulsão Epilética As crises/convulsões epiléticas apresentam estágios ou fases diferentes que são: Pródromo – essa fase precede a crise/convulsão e pode durar de horas ou dias. Ela se caracteriza por alterações comportamentais como se esconder, agitação, ansiedade, medo, etc.; Aura - é uma sensação subjetiva que caracteriza o início da crise/ convulsão. Atualmente a International Veterinary Epilepsy Task Force recomenda que o termo “aura” não seja utilizado, supondo que as alterações observadas pelo tutor do animal antes da convulsão ocorrer na realidade já é o início da crise epilética; Ictus – é a crise/convulsão per se;

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Pós-ictus – essa fase é caracterizada por comportamento atípico logo após a crise epilética como andar compulsivo, cegueira, salivação, ingestão compulsiva de água e/ou comida, desorientação, letargia, agressão, delírio, e eventualmente ato de micção inapropriado. (Berendt & Gram, 1999; Berendt etal., 2015; De Lahunta & Glass, 2009; Heller, 2018; Platt, 2012; Podell etal. 1995; Podell, 2013; Thomas & Dewey, 2016).

Quanto à forma de manifestação, ou seja, os sinais observados nos cães em crise epiléticas, elas podem ser generalizadas, focais ou focais complexas. As generalizadas são caracterizadas pela perda de consciência e por envolver o corpo todo (figura 1 e 2). As focais causam alterações de movimento em uma parte do corpo e pode ou não haver alteração de consciência. As crises focais complexas são descritas com alteração de consciência, andar ou correr de forma anormal, ptialismo, movimentos faciais e mudanças repentinas no estado mental (Berendt & Gram, 1999; Heller, 2018; Platt, 2012; Podell, 2013; Thomas & Dewey, 2016).

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Figura 1. Imagem obtida a partir de vídeo – crise epilética generalizada. Evidencia-se sialorreia.

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Figura 2. Imagem obtida a partir de vídeo. Crise epilética generalizada. Um outro tipo de convulsão epilética chamada de convulsões reflexas, nos seres humanos, pode ser desencadeada por uma variedade de funções sensoriais, motoras e cognitivas. Estímulos visuais, auditivos, somático sensoriais associados com crises incluem luzes “piscantes”, música, água quente e sustos. Essas convulsões também podem ser induzidas por pensamento excessivo ou pela realização de tarefas complexas ligadas à cognição. A exemplo do que ocorre em seres humanos os animais também podem apresentar crise/convulsão epilética reflexa, que pode ser desencadeada por estímulo sonoro (ex: música), visual (ex: fótico) ou tátil (ex: durante o banho). Essas convulsões epiléticas podem ser focais (o mais comum) ou generalizadas. Recentemente foi descrita em cães um tipo de convulsão reflexa desencadeada pelo ato de se alimentar, e o no referido estudo os autores observaram que a causa pode ser idiopática ou estrutural (Brocal, etal. 2020). Convulsões reflexas são incomuns em cães, porém, existem alguns relatos demonstrando que luz, som e movimentos nos campos visuais são bem conhecidos como gatilhos para a ocorrência de epilepsia mioclônica em cães com doença de Lafora (Berendt etal., 2015; Engel, 2001; Lowrie, etal. 2016; Lowrie, etal., 2017; Potschka at al., 2013; Okudan & Özkara, 2018; Wolf, 2017).

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Diagnóstico A International Veterinary Epilepsy Task Force realizou um consenso em 2015 e elaborou alguns passos fundamentais na abordagem diagnóstica para um paciente com crises/convulsões epiléticas. O início dessa abordagem depende de se estabelecer se a convulsão é realmente uma crise epilética, excluindo, portanto, a presença de possíveis alterações episódicas paroxísticas (síncope, distúrbios do movimento, narcolepsia, cataplexia, etc.). Outro aspecto considerado elementar é identificar a causa de base das crises epiléticas, e assim classificá-las em crises reativas (metabólicas – ex: hipoglicemia, encefalopatia hepática, alterações de eletrólitos, uremia, hipertensão; ou tóxicas – ex: organofosforado/carbamato, estricnina, intoxicação por chumbo, etc.), estrutural (infecção, inflamação, anomalia, degeneração, neoplasia, trauma, acidente vascular), e idiopática cujo diagnóstico se dá por exclusão levando em consideração a idade, exame físico e neurológico normais entre os episódios de crise epilética e exames complementares sem alterações (Brauer etal., 2011; De Risio etal. 2015; Pákozdy etal., 2008).

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O histórico do paciente deve ser obtido de forma detalhada e a descrição de como as convulsões ocorrem é de suma importância para que o médico veterinário possa avaliar se a condição descrita é realmente uma crise epilética. Atualmente é comum e sensato solicitar que o responsável pelo animal registre o episódio por meio de vídeo, o que facilita a interpretação do problema. O histórico familiar de crises epiléticas é um forte indicativo de base genética associada ao problema e testes genéticos podem confirmar o diagnóstico quando disponíveis. Por outro lado, informações sobre a ingestão de plantas, uso de pesticidas ou dedetização do ambiente, banhos com produtos ectoparasiticidas, fornecimento de medicações recentemente, acesso à rua, traumatismos, viagens, situações estressantes, aumento na ingestão de água e/ou do apetite, maior produção de urina, cansaço fácil, espirros, tosse, secreção nasal e/ ou ocular, claudicação, entre outras alterações, a priori deverão ser tratados como indícios de relação com a crise epilética até que contrário seja estabelecido (Berendt etal., 2009;De Risio etal. 2015; Thomas, Dewey, 2016).

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A idade do animal bem como a raça podem dar indícios de possíveis doenças, o que otimiza a lista de diagnósticos diferenciais a ser elaborada. Por exemplo, filhotes são mais acometidos por doenças infecciosas e traumatismo, adultos podem ser mais propensos a doenças metabólicas ou epilepsia idiopática se as crises ocorrem entre 6 meses e 6 anos de idade. Por outro lado, cães e gatos, acima de 8 anos que apresentem convulsões epiléticas possuem grande chance de neoplasia intracraniana. Entretanto, é necessário destacar que essas são diretrizes que auxiliam na abordagem do paciente epiléptico a fim de organizar o raciocínio clínico na abordagem de pacientes com crises/convulsões epiléticas com o objetivo de extrair o melhor das informações oriundas do histórico e da resenha do animal (Heller, 2018; Lavely, 2014; Platt, 2012; Pákozdy et al., 2008; Thomas & Dewey, 2016). O próximo passo é a realização de exame físico minucioso para confirmar ou excluir alterações na coloração de mucosas, sangramento superficial espontâneo, aumento de volume abdominal, dispneia, crepitações pulmonares e assim por diante, as quais possam sugerir doenças sistêmicas/metabólicas. A identificação de problemas é fundamental para otimizar o raciocínio clínico, a lista de diagnósticos diferenciais e o plano diagnóstico a ser elaborado, poupando tempo e custos desnecessários para o responsável pelo animal. Além disso, auxiliará a definir se há algum sistema acometido e confirmar ou excluir uma possível relação com as crises epiléticas (De Lahunta & Glass, 2009; Heller, 2018; Lavely, 2014; Pákozdy et al., 2008; Thomas & Dewey, 2016).

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A etapa seguinte compreende o exame neurológico a fim de identificar ou excluir alterações neurológicas evidentes ou sutis, e a partir disso localizar a lesão; essa etapa é denominada de diagnóstico neuroanatômico e as causas do problema, ou seja, diagnóstico etiológico, podem ser variadas. O diagnóstico neuroanatômico é de suma importância uma vez que representa a base da neurologia clínica e, portanto, fornecerá informações para que o médico veterinário priorize a sua lista de diagnósticos diferentes perante o paciente. Por exemplo, se o animal está com crises epiléticas e outras alterações neurológicas como sinais vestibulares ou cerebelares, a síndrome é classificada como multifocal, por outro lado, se a única manifestação são as crises epiléticas, considera-se que o problema

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acomete apenas o cérebro. Esses elementos e informações ajudarão nas decisões seguintes e quanto aos exames a serem solicitados, com o objetivo de se estabelecer diagnóstico definitivo ou se aproximar dele por meio de exclusões. Quando entre as crises epiléticas não há qualquer alteração neurológica após a recuperação da consciência, há grande chance de se estar diante de um caso de epilepsia idiopática, porém, faz-se novamente necessário destacar a importância da resenha e histórico como pilares na fundamentação desse raciocínio (De Lahunta & Glass, 2009; Schatzberg, 2017).

Diagnósticos Diferenciais Após as todas as informações tenham sido colhidas, estabelecer uma lista de diagnósticos diferenciais irá otimizar a abordagem clínica e minimizará as chances de erros, uma vez que um plano diagnóstico sequencial deve ser estabelecido com base nas possíveis causas listadas. O diagnóstico diferencial deve se basear no algoritmo mnemônico chamado de DINAMITE, o qual será explicado a seguir: “D” está para doenças degenerativas; “I” para infecciosas e inflamatórias; “N” para neoplásicas e nutricionais; “A” para anomalias; “M” metabólicas; “I” idiopáticas; “T” para traumáticas e tóxicas e “E” para endoteliais como acidente vascular cerebral, trombos, hipóxia, vasculite.

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Exames Complementares Os exames laboratoriais de rotina como hemograma, urinálise e bioquímicos séricos devem ser realizados com o objetivo de identificar causas intracranianas ou extracranianas. Quando a suspeita é de causa intracraniana, além dos exames citados, podem ser solicitados Ressonância Magnética ou Tomografia do cérebro, bem como análise de líquido cerebrospinal (LCE). Caso haja sinais de inflamação/infecção no LCE e/ou na imagem, exames de PCR/sorologias/citologias poderão ser solicitados. No processo de investigação para confirmar ou excluir neoplasias primárias ou metastáticas a imagens de tórax e abdome deverão ser consideradas.

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Por outro lado, se a suspeita for de causa extracraniana, alterações bioquímicas e na urinálise podem ser mais comuns, e testes específicos como dosagem de ácidos biliares podem ajudar a direcionar o caso quanto a possível desvio portossistêmico, entretanto, causas infecciosas podem estar presentes assim sendo exames de PCR/sorologias/citologias devem ser considerados também (Schatzberg, 2017; Coates & O’Brien, 2017). Nos casos de epilepsia idiopática, os resultados dos exames serão normais e não haverá alterações no exame físico e no exame neurológico no período entre as convulsões epiléticas. Embora a realização de exames de RM ou TC e análise de LCE sejam preconizados para pacientes com suspeita de epilepsia idiopática, quando da impossibilidade de realização deles, é aceitável que o diagnóstico seja sustentado com base nas seguintes características: idade adequada, hemograma normal, bioquímicos normais, e crises epiléticas usualmente generalizadas, ou seja, essas condições podem servir de elementos para que o clínico se baseie na elaboração de um diagnóstico presuntivo de epilepsia idiopática. Porém, alguns cães podem apresentar alterações nas imagens de RM ou TC do cérebro bem como no LCE devido as próprias crises epiléticas ocasionarem danos neuronais, sendo que este fenômeno é transitório (De Lahunta, 2014; Dewey & Da Costa, 2016; Mellema, et al., 1999; Platt 2012; Pákozdy etal., 2008; Podell, 2013; Podel, etal. 2016).

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Tratamento O objetivo do tratamento para um cão com epilepsia deve ser baseado no equilíbrio entre a habilidade de eliminar as crises epiléticas e a qualidade de vida do paciente. Frequentemente a eliminação total das crises epiléticas é algo pouco provável. Por outro lado, realisticamente se objetiva a redução na quantidade, duração e gravidade das crises epiléticas com o menor tolerável ou nenhum efeito colateral das medicações, preservando ao máximo a qualidade de vida dos animais. É muito importante que seja esclarecido para o responsável pelo animal que mesmo com o tratamento provavelmente as crises ainda ocorrerão e esta condição estará frequentemente presente perante a casos suspeitos ou confirmados

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de epilepsia idiopática ou doença estrutural sem perspectiva de cura (por exemplo: alguns tipos de neoplasias intracranianas Bhatti,etal., 2015; Chang,etal. 2006; Dewey & Da Costa, 2016; Thomas, 2010). A decisão em iniciar o tratamento com medicações anticonvulsivantes deve ser guiada pelas seguintes diretrizes: • A presença de lesão estrutural identificável ou história prévia de doença/trauma cerebral; crises recorrentes agudas ou status epilepticus (duração de uma crise por 5 minutos ou mais ou 3 ou mais crises epiléticas generalizadas num período de 24 horas); • Duas ou mais crises convulsivas estão ocorrendo dentro de um período de 6 meses; • Estado pós-ictal é grave, incompatível (por exemplo agressividade, cegueira), ou dura por mais de 24 horas; • A frequência das crises está aumentando e/ou a gravidade se torna maior durante longo de 3 períodos interictais (Bhatti etal., 2015; Platt, 2012; Podell etal., 2016).

Pacientes com apenas uma convulsão epilética, com convulsões induzidas, ou com convulsões intercaladas por um período prolongado (mais que 6 meses), usualmente não necessitam de tratamento de manutenção (Thomas, 2010).

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A escolha da medicação antiepilética para iniciar o tratamento deve ser pautada em fatores tanto relacionados ao paciente quanto ao responsável pelo animal. Assim sendo, aspectos como tolerabilidade, efeitos colaterais, segurança, frequência de administração, interações medicamentosas, o tipo de crise epilética, a frequência e etiologia, bem como doenças de base renais, hepáticas, gastrintestinais e outras são levadas em consideração para que a escolha do medicamento seja adequada. Quanto ao responsável pelo animal, os aspectos a serem considerados incluem disponibilidade de horários para administrar a (s) medicação (ões) e a condição financeira (Bhatti etal., 2015; Brauer etal., 2011; Coates & O’Brien, 2017; Platt, 2012; Podell etal., 2016). O tratamento para um cão com epilepsia obviamente será dependente do diagnóstico confirmado ou presuntivo, por exemplo, doenças inflamatórias são tratadas com anti-inflamatórios/ imunossupressores, doenças infecciosas com medicações específicas como antibióticos, antifúngicos, protozoaricidas, entre outros, e a epilepsia idiopática com antiepilépticos e assim

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sucessivamente. Independente da causa de base, abolir as crises ou pelo menos diminuir a intensidade de suas manifestações é um consenso na abordagem desses pacientes e, para tanto, se faz necessário a administração de fármacos com ação antiepilética. Após os controles das crises, se a doença de base for resolvida, chance de o animal não apresentar novos episódios é considerável e, portanto, terá uma vida normal (Brauer etal., 2011; Brodie 2010; Thomas, 2010; Wessmann etal., 2016).

Medicações Antiepiléticas Nesse tópico serão apresentadas apenas as medicações mais utilizadas no tratamento de manutenção para cães com epilepsia, ou seja, não serão abordados protocolos para situações de emergência como nos casos de “status epilepticus”, tão pouco no referente aos medicamentos utilizados com menor frequência. >

Fernobarbital O fármaco mais amplamente utilizado no controle das crises epiléticas é o fenobarbital, o qual pertence à classe dos barbitúricos e foi descrito como medicação anticonvulsivante em 1912. A dosagem da medicação é padronizada, porém, em alguns casos ela poderá ser individualizada, ou seja, alguns animais poderão necessitar de dose menor (infrequente) e outros de dose maior, sendo que este medicamento usualmente é bem tolerado. Alterações como sedação, fraqueza generalizada, ataxia, sonolência podem ocorrer logo no início do tratamento e usualmente desaparecem entre 7 a 14 dias e destaca-se que estes problemas parecem não ter relação com a dose utilizada. É necessário destacar que a qualidade de vida de cães recebendo tratamento antiepilético pode em alguns casos permanecer de leve a moderadamente prejudicada por situações como maior período de sono e eventualmente fraqueza muscular/perda discreta de equilíbrio. Alterações mais crônicas como poliúria, polidipsia e polifa*gia também são registradas. Problemas hematológicos como trombocitopenia, anemia imunomediada e

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neutropenia também foram documentados e ocorrem com baixa frequência. Quanto a possíveis alterações bioquímicas, o mais comum é o aumento da fosfatase alcalina, o qual se torna evidente já nas primeiras semanas após iniciar o tratamento. Na literatura está bem documentado, embora seja mais raro de ocorrer, a presença de hepatotoxicidade, a qual usualmente se manifesta quando as concentrações séricas do fenobarbital ultrapassem o limite superior recomentado (35 a 45 µg/mL) (Cochrane etal. 1990a; Cochrane etal. 1990b; Charalambous etal., 2016; Finnerty etal. 2014; Hauptmann, 1912; Heller, 2018; Podell, 2013; Bunch etal., 1984; Thomas & Dewey, 2016; Wessmann etal., 2016). Após iniciar a terapia concentrações séricas de fenobarbital devem ser obtidas com o objetivo de avaliar se os valores terapêuticos estão adequados, prevenir hepatotoxidade e estabelecer esquema terapêutico individualizado caso seja necessário. Esse procedimento deve ser realizado 15 dias após o início do tratamento, com o animal em jejum a antes de fornecer a primeira dose do dia, embora esteja documentado que animais com concentração sérica estável e adequada, usualmente não apresentam alterações séricas importantes ao longo do dia. Depois devem ser realizadas dosagens séricas aos 45 dias e a cada 180 dias para fins de acompanhamento. (Podell etal., 2016; Ravis etal., 1989; Thurman etal., 1990).

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Quando um animal em tratamento apresenta crises novamente, é muito importante em primeiro lugar verificar se houve alteração/falha no manejo de fornecimento da medicação, e a dosagem sérica deve ser verificada. A dosagem sérica também está indicada quando se pretende realizar ajustes na dose fornecida (Bhatti, etal., 2015; Dewey & Da Costa, 2016; Podell, 2013; Podell etal., 2016; Thomas, 2010.)

Brometo de Potássio Outra medicação antiepilética utilizada é o brometo de potássio, porém, com frequência menor quando comparado ao fenobarbital. Esta substância foi usada para tratar pessoas com crises epiléticas em 1857 e, na Medicina Veterinária a sua utilização somente se iniciou na década de 80. Ele também demonstra bons resultados quando associado ao fenobarbital, nos casos em que o controle das crises

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epiléticas não foi satisfatório apenas com o uso do fenobarbital. O brometo possui meia vida longa (25 a 46 dias) e para atingir o seu nível plasmático adequado em curto prazo há necessidade de uma dose de ataque. A estratégia em utilizar a dose de ataque por 5 dias é recomendada quando o produto é utilizado por via oral, a fim de minimizar problemas gastrintestinais, principalmente vômitos. Nos casos de utilização injetável do brometo de potássio não há necessidade de fracionamento da dose de ataque em 5 dias, porém, essa apresentação do produto até o momento está disponível no Brasil. Após esse período, a dose de manutenção usualmente é administrada via oral a cada 24 horas. Este fármaco pode ser utilizado como monoterapia, entretanto, usualmente recomenda-se a associação com o fenobarbital. Em um estudo os autores comparam a eficácia e segurança como medicamentos de primeira linha em cães com epilepsia e verificaram que tanto o fenobarbital quanto o brometo de potássio são escolhas razoáveis, porém, o fenobarbital foi mais eficaz e melhor tolerado. (Bhatti etal. 2015; Boothe, 2012; Brodie, 2010; Maguire etal. 2000; Podell etal., 2016; Podell & Fenner, 1993; Sieveking, 1857; Trepanier et al. 1998; Trepanier, & Babish, 1995).O brometo de potássio pode sofrer flutuações em seus níveis sanguíneos devido a influência de dietas ricas em cloretos, o que irá acarretar maior excreção desta medicação via renal e consequentemente ocasionará diminuição das concentrações séricas do brometo. Portanto, o responsável pelo animal deverá ser informado sobre esta característica do brometo de potássio e orientado a comunicar previamente qualquer necessidade de alteração na dieta de seu cão. (Chang etal. 2006; Dewey & Da Costa, 2016; Podell etal., 2016; Podell & Fenner, 1993).

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Uma das vantagens no uso do brometo de potássio é que sua metabolização não é hepática e, desta maneira, é uma boa opção de medicação antiepilética para animais portadores de doenças hepáticas (Bhatti etal. 2015; Boothe, 2012; Trepanier, & Babish, 1995).

Levotiracetam O levotiracetam é um derivado da pirrolidona e foi apresentado como medicamento anticonvulsivante para humanos em 1999.

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Sugere-se que esse fármaco atue como um modulador nas vesículas sinápticas, porém, o mecanismo de ação exato ainda não é completamente conhecido. Apresenta rápida absorção via oral, não é metabolizado pelo fígado o que representa uma ótima indicação para cães com hepatopatias, e grande parte do produto é eliminado via renal. A medicação usualmente é administrada via oral a cada 8 horas. Os sinais colaterais mais comuns são ataxia, sedação e sonolência, portanto, o responsável pelo animal deve ser alertado para que possa identificar prontamente essas alterações se elas ocorrerem (Dewey etal., 2008; Dewey & Da Costa, 2016; Halley & Platt 2012; Moore etal., 2010; Moore etal., 2011; Patterson etal., 2008; Peters etal., 2014; Podell etal. 2016; Volk etal., 2008). Em um estudo envolvendo cães com epilepsia os autores compararam o uso do levotiracetam e do fenobarbital ambos como monoterapia, concluíram que o levotiracetam não foi eficaz no controle das crises epiléticas. Portanto, até o momento o levotiracetam não deve ser utilizado como monoterapia para cães, e sim apenas com associações (Fredsø etal., 2016). Em um estudo no qual comparou-se a eficácia e tolerância do levotiracetam com o fenobarbital no tratamento de gatos com suspeita de crise epilética reflexa mioclônica e observou-se uma redução igual ou maior que 50% no número de dias de crises em 100% dos pacientes que foram tratados com levetiracetam, porém, no grupo que recebeu fenobarbital a redução foi de apenas 3%. Os efeitos colaterais mais frequentes foram letargia, inapetência e ataxia, sem diferença entre o levetiracetam versus o fenobarbital. Além disso, os efeitos colaterais foram mais brandos e transitórios com o levetiracetam, porém, persistentes com fenobarbital (Lowrie etal., 2017).

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Há evidências de que a eficácia do levotiracetam pode se tornar menor nos casos em que cães epilépticos são tratados com fenobarbital, ou seja, foi demonstrado que a associação entre ambos culminou com alterações farmacocinéticas resultando em menor concentração plasmática do levotiracetam ao longo do tempo em cães (Muñana etal., 2015; Moore etal., 2011).

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Outros Medicamentos Anticonvulsivantes Diazepam é contraindicado para terapia de manutenção para cães, sendo recomendado apenas na emergência, porém, pode ser utilizado para gatos como terapia de manutenção – cuidado especial para espécie uma vez que há relatos de falência hepática fulminante quando o produto é administrado via oral (Center, etal. 1996; Hughes etal. 1996). Não há relatos de necrose hepática fulminante em felinos tratados com diazepam por outras vias de administração tornando o produto seguro para intravenoso em situações emergenciais. Primidona, imepitoina (aprovada para uso na Europa e Austrália até o momento), zonizamida, clorazepato, felbamato e topiramato. Todas essas medicações podem ser utilizadas como adjuvantes na terapia, porém, o protocolo a ser adotado deve sempre se basear em evidências por meio de estudos controlados.

Tratamento Antiepilético e Nutrição >

A associação entre dieta cetogênica rica em triglicerídeos de cadeia média e tratamento para epilepsia idiopática em crianças foi descrita por Peterman em 1925. Na Medicina Veterinária estudos tem sido conduzidos com o objetivo de demonstrar que uma dieta rica em triglicerídeos de cadeia média potencialmente podem diminuir a frequência de crises epiléticas em cães diagnosticados com epilepsia idiopática (Berk etal., 2020; Law etal., 2015; Martlé etal., 2014). No estudo de Law et al. (2015) os autores encontraram resultados significantes do ponto de vista estatístico e clínico de cães com epilepsia idiopática tratados com a referida dieta por um período de 6 meses. Por outro lado, no estudo de Berk etal. (2020), embora a confirmação estatística tenha sido fraca, alguns cães demonstraram evidente melhora (diminuição das convulsões) no controle das crises epiléticas e devem ser analisados como casos de sucesso quando analisados de forma descritiva e isolada. Esses resultados futuramente poderão contribuir para a melhoria da qualidade de vida de cães com epilepsia idiopática.

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Transtorno de Ansiedade Social: Relato de Caso

14 Josiane Cecília Luzia*

Universidade Estadual de Londrina

Ednéia Aparecida Peres Universidade Estadual de Londrina

José Luciano Tavares da Silva Universidade Estadual de Londrina

Considerações Preliminares Este capítulo descreve um relato de caso clínico apresentado em forma de palestra no Programa de Formação Complementar “Temas em Neurociências”, cujo objetivo é possibilitar, a estudantes e profissionais de diversas áreas, o acesso ao conhecimento de aspectos básicos e clínicos do Sistema Nervoso. O caso relatado refere-se a um atendimento realizado em um projeto de extensão que visa atender adolescentes no contexto escolar com Transtorno de Ansiedade Social (TAS).

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Autor para correspondência: josicecilia3@ gmail.com Departamento de Psicologia Geral e Análise do Comportamento, Universidade Estadual de Londrina, Rod. Celso Garcia Cid, Km 380, Campus Universitário. Caixa Postal 10011 CEP86057-970 Londrina, PR, Brasil.

Medo e Ansiedade: Aspectos Fisiopatológicos O medo e a ansiedade são respostas normais que ocorrem nos organismos de animais humanos e animais não humanos em situações de perigo/ameaça real ou potencial à integridade física ou ao bem-estar emocional. Uma ameaça é caracterizada como real se a situação puder trazer prejuízo à sobrevivência do organismo, por exemplo, encontrar-se diante de um assaltante armado. Na ameaça potencial, há componentes de incerteza sobre o risco a que está submetido, um exemplo seria um indivíduo escutar um ruído diferente ao caminhar durante a noite, em uma rua sem iluminação,

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que não lhe é familiar, e, minutos depois, averiguar que era um gambá a procura de alimentos (Graeff, & Brandão, 1996; Luzia, Estanislau, & Martin, 2015). As respostas às ameaças reais são tidas como medo e, às ameaças potenciais, ansiedade, embora em ambas as situações ocorram a ativação do sistema nervoso central e periférico (González Gonzaléz, & Fadón Martín, 2019). Tanto no medo quanto na ansiedade, observase o envolvimento de diferentes circuitos no sistema nervoso, bem como a retroalimentação da periferia, a qual contribuiria na intensidade emocional (LeDoux, 1996; Davidson, Jackson, & Kalin, 2000). Os transtornos de ansiedade são definidos pelas características em comum de medo e ansiedade exagerados e intensos. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), esse transtorno é observado em todo o mundo e, no Brasil, esse índice é elevado sendo que, em 2017, 9,3% da população foi diagnosticada com esse transtorno. O que ocorre na atualidade para que esses índices, que se referem aos transtornos de ansiedade, sejam tão elevados? Não é objetivo desse capítulo discutir as variáveis envolvidas, mas cabe ressaltar que Skinner (1981) se referiu a três níveis de seleção e variação para compreender o comportamento humano, seja ele esperado socialmente ou os com prejuízos e excessos. Para esse cientista, os níveis se referem à história filogenética da espécie, à história ontogenética e à cultura1, pois são nas interações do organismo com o ambiente, considerando, inclusive, as variáveis históricas e atuais, que a compreensão da aquisição do comportamento denominado ansioso, em excesso, e que traz prejuízos ao indivíduo, foi sendo construído e é mantido. Portanto, cabe assinalar que um estímulo não é ansiogênico por si mesmo, o que induz a quadros ansiosos em uma pessoa não necessariamente irá induzir em outra.

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Assim, aqueles que com suas histórias em interação com o ambiente, em que foram expostos a situações que podem gerar

1 O nível filogenético refere-se às variáveis de sobrevivência da espécie animal humana, o nível ontogenético envolve a história de vida de cada pessoa e como está vai se relacionando com a autopercepção, percepção do mundo, dentre outros processos, e assim, influenciando suas ações, pensamentos, sentimentos, enfim, comportamentos e o nível cultural que se refere ás práticas, como o nome diz, daquela cultura que o individuo está inserido, em geral através de modelo de comportamentos e de comportamentos verbais, por exemplo (Skinner, 1981) .

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ansiedade (falar em público, por exemplo), podem apresentar maior atividade em áreas encefálicas subcorticais (amígdala e córtex periamigdalóide, estendendo-se ao hipocampo) e diminuição na atividade em áreas encefálicas corticais (córtex orbitofrontal e outras) quando em comparação com pessoas não-fóbicas (Tillfors et al., 2001). Investigações com animais mostram que o substrato neural que participa do medo e do comportamento defensivo (“ freezing” ou reação de congelamento/ficar paralisado) está relacionado à amígdala em interação com a substância cinzenta periquedutal (PAG) do mesencéfalo, ao passo que, ao interagir com o sistema septohipocampal, a amígdala induz ao comportamento de avaliação de riscos ou ansiedade (Gorman, Kent, Sullivan, & Coplan, 2000, Brandão, & Graeff, 2014, Luzia, Estanislau, & Martin, 2015). Composta por grupos distintos de células, formando, aproximadamente, 12 núcleos (LeDoux, & Damasio, 2013), certamente, a amígdala exerce papel-chave na patofisiologia de distúrbios de ansiedade. Os núcleos lateral, basal e acessório constituem a “amígdala basolateral” ao passo que diversas estruturas ao redor, como os núcleos central, medial e cortical, são tradicionalmente incluídos no “complexo amigdalóide”. Tais estruturas, juntamente com a amígdala basolateral, são denominadas simplesmente como “a amígdala” (Davies, & Whalen, 2001).

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As áreas e sistemas neuromodulatórios da amígdala que contribuem para o medo e a ansiedade exibem grande sobreposição e os circuitos de saída finais podem ser amplamente compartilhados entre ambos (Tovote, Fadok, & Lüthi, 2015). A neurocircuitaria implicada nas respostas de medo e ansiedade é prontamente ativada por estímulos que não sejam necessariamente ameaçadores, mas que transmitem informações relacionadas à presença de ameaças no ambiente ou relacionadas aos estados emocionais de outras pessoas (Shin, & Liberzon, 2010). Estudos em humanos e em animais sugerem que a disfunção da amígdala pode surgir, em parte, devido ao controle inadequado de cima para baixo por regiões como o córtex pré-frontal medial (Forster, etal., 2012). A conectividade intrínseca entre os subnúcleos da amígdala, juntamente com a rede neural de regiões corticais e subcorticais que, supostamente, exercem influência modulatória em sua atividade, estão relacionadas à inibição social (Blackford,

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etal., 2014). Além da amígdala, cenas relacionadas ao transtorno de ansiedade versus cenas neutras estão relacionadas às hiperativações em outras regiões subcorticais como ínsula, globo pálido e tálamo e corticais como córtex pré-frontal ventro-medial, precúneo e córtex cingulado posterior em pacientes com TAS (Heitmann, etal., 2016). Aparentemente, a falta de conectividade entre as regiões modulatórias propicia uma situação de hiperatividade da amígdala em resposta aos estímulos sociais. Tal suposição é corroborada pela observação de que indivíduos, com níveis menores de inibição social, apresentam maior conectividade entre tais regiões quando em comparação com indivíduos com níveis de inibição social mais elevados (Blackford, etal., 2014). No geral, a amígdala desempenha um papel crítico nos transtornos de ansiedade e a compreensão de como a disfunção nesta estrutura resulta em transtornos de ansiedade é fundamental para melhorar os resultados de intervenções a longo prazo (Forster et al., 2012). Ao projetar-se a sistemas inespecíficos envolvidos na regulação da excitação cortical, a amígdala influencia respostas corporais comportamentais, autonômicas e endócrinas (LeDoux, 2003). Projetando-se a determinados núcleos hipotalâmicos e PAG, influencia as respostas do organismo ao medo e ansiedade (LeDoux, & Damasio, 2013), exemplificadas na Tabela 1.

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Tabela 1. Exemplos dos diferentes sintomas do medo e da ansiedade*. Taquicardia, hipertensão e sensação de pressão no tórax Hiperventilação e falta de ar Sintomas gastrointestinais Dificuldade para deglutir, vômitos e diarreia Sintomas neurovegetativos Sudorese excessiva e ressecamento de mucosas Parestesia (formigamento) em membros, calafrios, Sintomas neurológicos cefaleias tensionais, contraturas e vertigens Medo intenso, terror ou pânico, sensação de insegurança, preocupação excessiva, incapacidade de resolução de problemas, indecisão, dificuldade Sintomas psicofísicos ou falta de concentração, evitação de contato visual, gagueira, tristeza, inquietude ou hiperatividade e comportamentos relacionados à fuga/esquiva Sintomas cardiovasculares Sintomas respiratórios

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modificado a partir de González Gonzaléz, & Fadón Martín (2019).

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Transtorno de Ansiedade Social: Definição e Prevalência No DSM V (APA, 2014), o conceito de TAS baseia-se na noção de medo persistente, irracional e acentuado. A classificação de TAS é aplicável quando esse medo está relacionado às situações sociais ou ao desempenho em público, sendo marcado por temor de que a situação seja humilhante e/ou embaraçosa. E que essas situações causem prejuízos para a pessoa, sejam eles, em relacionamentos interpessoais, acadêmicos, laborais etc (Nardi, 2000, Tillfors, Furmark, Marteinsdottir, & Fredrikson,, 2002, Beidel, & Turner, 2007; Gauer, etal. 2010, Hyman, & Cohen, 2013, Luzia, 2015). Diferindo de estímulos aversivos de forma geral, os estímulos socialmente relevantes apresentam importância particular nos sintomas relacionados ao TAS, conforme indica Kraus etal. (2018). Os autores observaram reatividade aumentada da amígdala, de maneira específica, aos estímulos com estas características, tais como cenas de faces expressando emoções negativas, conforme também verificado em estudos semelhantes (Stein, etal., 2002; Frick, etal., 2013, Prater, etal., 2013).

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Frick, etal. (2013) verificaram maior reatividade do giro fusiforme direito em sujeitos submetidos à visualização de imagens de faces exibindo medo em relação a faces neutras. O estudo indica que o TAS está relacionado à conectividade entre o giro fusiforme e a amígdala, de forma proporcional à sua severidade, além de menor conectividade entre amígdala e o córtex pré-frontal ventro-medial. Dentre os vários transtornos de ansiedade, o TAS mostra alta prevalência ao longo da vida. Segundo Kessler et al. (2005), nos Estados Unidos, 12,1% da população foi ou será diagnosticada com esse transtorno comportamental. Em um estudo com pacientes com transtornos de ansiedade tratados ambulatoriamente, 10 a 20% apresentavam TAS (APA, 2013). Em outra pesquisa, Luzia (2015) mostrou que, na amostra de 975 adolescentes, entre 12 e 17 anos, de ambos os sexos, provenientes das regiões Sul e Sudeste do Brasil, 10, 2% apresentaram TAS. Esses dados podem, contudo, sofrer variações dependendo dos instrumentos utilizados para avaliar ansiedade e medo.

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A definição de fobia social é a mesma utilizada para o TAS, no entanto, Bobes García, Gonzáles G-Portilla, Saíz Martínez, Bascarán Fernández e Bousoño García (2001) recomendaram a troca para TAS, pois esse último descreve melhor a natureza do fenômeno e rompe com a ideia de banalidade que a fobia pode trazer em seu bojo e o diagnóstico diferencial com a fobia simples. Esse transtorno pode ter início precoce, já na infância (Nardi, 2000, Beidel & Turner, 2007), no entanto, estudos mostram que a idade de início mais frequente é na faixa dos 15 anos (Nardi, 2000, Beidel, Ferrell, Alfano, & Yeganeh, 2001, Luzia, 2015). O TAS, como já citado, pode acarretar prejuízos nos relacionamentos interpessoais e interações sociais, no contexto escolar/acadêmico e profissional, por exemplo, e está relacionado a muito sofrimento (Luzia, 2006, Fernandes, & Terra, 2008, Luzia, 2015, Luzia, Estanislau, & Martin, 2015). Observam-se, ainda, situações em que o sofrimento se torna tão intenso que a pessoa pode recusar-se a executar novas tarefas e pedir demissão de um emprego por ter sido promovida, pois o novo cargo exigirá algumas exposições verbais de relatórios para a equipe. (para mais detalhes, ver Beidel, & Turner, 2007).

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Perspectiva da Análise do Comportamento para os Transtornos Psiquiátricos Segundo os princípios comportamentais provenientes da ciência do comportamento, com base na filosofia do Behaviorismo Radical (Skinner, 1982), o comportamento é produto de seleção por consequências, ou seja, quando um indivíduo age sobre o ambiente, sofre ação deste de forma contínua (Skinner, 1953/1998). Dessa maneira, a denominada “doença mental” é entendida como o resultado de interações entre variáveis filogenéticas, ontogenéticas e culturais. Assim, o comportamento dito patológico deve ser considerado como qualquer outro comportamento que acontece em um determinado contexto (Gongora, 2003). Assim, o terapeuta, com base na Análise do Comportamento, deve considerar, na avaliação comportamental, aspectos relacionados ao repertório de comportamentos geral do cliente para realizar e propor intervenções que aumentem a probabilidade de desenvolvimento e/

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ou aperfeiçoamento de repertório comportamental alternativo mais adequado e reforçador para ele. Outro aspecto a ser considerado nessa prática se refere ao fato de o cliente ser sujeito de sua própria ação quando entra em contato com as contingências e se tornar responsável pelo seu processo de melhora (Gongora, 2003). Na sequência, apresenta-se a descrição resumida do caso em que o cliente foi diagnosticado com Transtorno de Ansiedade Social. A intervenção foi conduzida com base na Análise do Comportamento, com contribuição de um docente da área de fisiologia humana, nas sessões de psicoeducação, para os temas relacionados à ansiedade e ao medo.

Descrição do caso Identificação André (nome fictício) tinha 17 anos no início do atendimento, cursava o segundo ano do Ensino Médio em uma escola pública da cidade de Londrina, estado do Paraná. Morava com a avó (Laura nome fictício) de 72 anos e o irmão (Alexandre - nome fictício) de 20 anos.

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Diagnóstico e Queixa Principal Foi encaminhado para o atendimento psicológico pela coordenadora pedagógica da escola que estudava porque, segundo ela, ele apresentava comportamentos “apáticos” e baixo rendimento escolar. A terapeuta que realizou a triagem solicitou a realização de exames médicos para descartar hipóteses de ordem orgânica. O médico, um clínico geral, que o assistiu depois da solicitação da psicóloga a André, o encaminhou para um psiquiatra, uma vez que os resultados das análises clínicas não estavam alteradas de acordo com o clínico. Segundo o clínico geral, o paciente parecia ter comportamentos relacionados à ansiedade e à depressão. O diagnóstico foi realizado em conjunto entre a psicóloga e o psiquiatra como Transtorno de Ansiedade Social, após as avaliações psiquiátricas e comportamentais, entrevistas com familiares e professoras.

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História de Vida Pessoal e Familiar Na época do atendimento, segundo relato do cliente, ele não conheceu seu pai, pois esse se suicidou quando o paciente era um bebê, com aproximadamente oito meses. O contato com sua mãe foi “esporádico” que, a cada dois ou três meses, o visitava, chegando a casa onde ele morava com o irmão e os avós, no sábado e indo embora domingo de manhã. Ela o deixou aos dois anos juntamente com o irmão, na época, com cinco anos, aos cuidados dos avós maternos que viviam em uma fazenda na região de Londrina. Até os sete anos, André viveu na fazenda com os avós e seu irmão, sem muito contato com pessoas diferentes, e poucas idas à cidade de Londrina ou às cidades próximas. A família dos avós era do interior do estado de Minas Gerais e, segundo o cliente, a viagem era cara, tanto para eles irem a Minas, como para os familiares virem para a fazenda. A mãe não tinha o hábito de visitá-los, regularmente, mas mandava dinheiro para os avós para que não faltasse o básico, por exemplo, comida, roupa e remédio, caso necessário. Segundo André, o vínculo com os avôs era muito bom. Ele gostava muito de ajudar o avô no cultivo de soja, basicamente fazendo companhia, e em outras ocasiões ajudar a avó a fazer bolo, auxiliando-a a pegar os ingredientes no armário. Também brincava, às vezes, com o irmão, após seus afazeres, como a tarefa da escola. Relatou que brigavam também, pois “toda família tem suas brigas” (sic - segundo informação do cliente), mas nada que ele julgasse anormal.

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Quando completou seis anos, ingressou na escola e seu irmão o acompanhava no ônibus até a chegada à escola. André relatou que tinha vergonha de ficar perto dos colegas, de falar com eles e que tinha medo da professora, embora ela nunca o tivesse tratado mal. No entanto, suas dificuldades se intensificaram no primeiro ano do Ensino Fundamental, quando se mudou para a cidade de Londrina, em uma escola que tinha poucas crianças que moravam na zona rural. Ele relatou que os colegas falavam de coisas que ele não conhecia e tiravam “onda” (sic) com ele. Outros diziam que ele era caipira mesmo, fato que o deixava ruborizado e retroalimentava o comportamento dos colegas, que riam de sua reação. Na época,

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disse que chorava muito e não queria ir para a escola. Todavia, seus avôs não diziam nada, apenas davam biscoito de chocolate e ligavam a TV com desenhos animados. Contou que sua avó sempre dizia: “tem que deixar tudo limpo, os tênis, a mochila, a roupa, porque o povo da cidade não pode pensar mal de você porque veio da fazenda” (sic). André começou a ter dificuldades para fazer amizades e interagir com os colegas de classe, pois sentia vergonha de ter morado na fazenda, de não saber “as coisas” (sic) e se sentir inferior. Tal dificuldade parece ter se estabelecido e se fortalecido durante toda a vida escolar, na qual ele sempre apresentou comportamentos tidos como característicos de timidez excessiva e isolamento. Segundo o relato de André, desde os sete anos até os dias dos primeiros atendimentos, disse sentir-se diferente das outras pessoas, porque fica vermelho quando falam qualquer coisa que ele se sinta envergonhado e pensa que as pessoas sabem o que ele pensa e sente, “ai piora tudo, tenho vontade de sair correndo e não voltar nunca mais..” (sic). Essa situação desencadeava uma sensação de taquicardia e medo, além de sentimento de inferioridade intelectual (pois suas notas estavam sempre na média). Também detestava morar na fazenda porque “tiravam sarro” (sic) dele. Assinalou que quando começou o primeiro ano do Ensino Médio passou a ter sensação de ansiedade, medo e que, às vezes, sentia vontade de vomitar, com fortes dores de estômago, além da visão ficar “preta”, necessitando sentar-se. Desde então, os sintomas e sentimentos só pioraram, pois agora tinha medo de se relacionar com as garotas, evitando ir a qualquer lugar que tenha muita gente, sentindo-se “burro” (sic) e acreditando ser uma pessoa “sem graça” (sic).

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Andre também contou que o irmão, quando era menor de idade, não conversava muito com ele e, ao completar dezoito anos, começou a trabalhar de pacoteiro em um supermercado. Quando fica em casa, o irmão está sempre na companhia da namorada e quando era mais jovem, após a mudança para a cidade, não se relacionava com o cliente, segundo ele, porque André era muito calado e o irritava. A avó, muito preocupada com limpeza, não conversava muito, pois também pareceu ser muito introvertida durante as sessões e várias vezes relatou que preferia “respeitar o jeito de André”, não se intrometendo nas suas coisas, porque brigas lhe causavam muita “batedeira” e medo, assim preferia ficar quieta. A mãe era provedora

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e mudou-se para o estado de São Paulo e raramente o visitava ou ligava para falar com os filhos e mesmo com a avó. O avô faleceu quando ele tinha oito anos e também era bem calado, segundo a avó, o irmão e o próprio cliente. Pode-se hipotetizar que a história de condicionamento do cliente o conduziu a um padrão de comportamentos de isolamento, além de fuga/esquiva, passando a ter outros sintomas fisiológicos intensos, por volta dos 14 anos, e evitando locais com aglomeração de pessoas, por exemplo, cinema. Relatou, ainda, que não gosta de ir à igreja, pois cantam muito alto.

Hipóteses Funcionais a Partir da História de Vida do Cliente Após a coleta de dados, que totalizou 20 sessões, além de ser realizada com alguns professores que o conheciam desde o Ensino Fundamental, com a avó, com o irmão, com o psiquiatra e o próprio relato do cliente, levantaram-se hipóteses.

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André não tinha relações que estimulassem o desenvolvimento de repertórios comportamentais como o autoconhecimento, a resolução de problemas e o enfrentamento de contextos em que era submetido a interações sociais distintas das relações familiares. A avó era muito dedicada em relação aos cuidados relacionados à alimentação, limpeza da casa, enfim, mantenedora do lar, mas parece que possui um padrão de comportamento que denominamos Inibição Comportamental, pois, nas entrevistas, ficou claro que emitia comportamentos de fuga/esquiva nas interações, inclusive familiares e apresentava reações fisiológicas de ansiedade, como ficar vermelha na frente da terapeuta em várias situações em que algumas perguntas foram feitas, como por exemplo, como era o relacionamento dela com André e os outros membros da família, com a filha, sobre a rotina, etc. Ainda nas sessões, quando se investigou a história de vida de André, a avó não demonstrou repertório para solucionar conflitos, pois, de acordo com seu relato, quando tinha algum problema, “ela preferia ficar quieta e deixar o tempo ir resolvendo”. Dessa maneira, parece que André, desde criança, emitia comportamento inibido e não aprendeu a enfrentar seus medos e desmistificar suas regras,

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(regras podem ser definidas como estímulo discriminativo, Skinner, 1966) e autorregeras (autorregras podem ser consideradas como descrições de contingências formuladas pela própria pessoa, Skinner, 1982). Outras hipóteses se referem ao fato de que, provavelmente, André não teve modelo para solucionar conflitos e não havia espaço para escuta de suas angústias e conflitos que podem ocorrer, em qualquer fase da vida, em especial na adolescência, fase de muitas mudanças estruturais, em nível cerebral, hormonal etc. E, na escola, André emite em menor frequência comportamentos da classe das habilidades sociais (as habilidades sociais podem ser entendidas como classe de respostas sociais que são aprendidas que o possibilita manejar as exigências do cotidiano, em diferentes situações, por exemplo, habilidades sociais de comunicação, que se refere a fazer e responder perguntas, pedir feedback etc. Del Prette & Del Prete, 2005), dificultando o acesso a possíveis reforçadores, como estar na presença de amigos e ter um convívio social amistoso. Hipotetiza-se, ainda, que repertórios de comportamentos sociais de André não foram modelados (reforçados diferencialmente), possivelmente, porque as pessoas ao redor dele estavam pouco sensíveis às necessidades e demandas do cliente ou porque, para elas, atitudes como timidez, pouca tomada de iniciativa e quietude de André não eram vistas como comportamentos problemáticos dentro do ambiente familiar. Apenas quando ele vai para um novo ambiente (escola) é que outras classes de comportamentos são requisitadas (como interagir com pessoas de fora da família, fazer e responder perguntas, iniciar, manter e encerrar conversação) e, então, André entra em uma condição de sofrimento devido aos significativos déficits de comportamentos (tomada de decisão, iniciativa, pedido de ajuda, identificação se sentimentos, habilidades sociais).

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Parece que o repertório atual de autoconhecimento o impossibilita de se comportar de forma a modificar as contingências nos contextos cotidianos e, assim, “sonhar” (sic), conforme relatou na nona sessão. Parece, portanto, que a probabilidade de seus comportamentos serem reforçados positivamente diminui, já que na comunidade verbal a que está exposto não se comporta de maneira “adequada” e se empenha em comportamentos de fuga/esquiva, o que parece amplificar seus sentimentos negativos e, assim, não

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enfrenta as situações aversivas que vivencia e apesar do custo das respostas serem altas, se comportar desse modo demonstra ser muito reforçador para ele. Além disso, parece que, quando suas notas despencaram, ele recebeu atenção e seu sofrimento começou a ser validado.

Intervenção Psicológica O atendimento psicológico foi realizado após um mês e meio que o cliente iniciou o tratamento medicamentoso com o psiquiatra, em que a Sertralina foi utilizada. Os atendimentos psicológicos ocorreram, a princípio, duas vezes por semana, em sessões com duração de 60 minutos, por uma terapeuta, em uma sala, preparada para atendimento, na própria escola. O objetivo terapêutico inicial foi o estabelecimento de vínculo. Foram realizadas, no total, 20 sessões de atendimento psicológico, dentre elas, 15 realizadas com André e cinco sessões foram realizadas com os informantes externos, ou seja, com a avó, com a coordenadora e com duas professoras, cujo objetivo era levantamento de dados.

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A primeira sessão foi realizada com o cliente para averiguar sua motivação para o atendimento, esclarecer o que era o trabalho do profissional da psicologia, o contrato e o sigilo, regras de atendimento na escola, o estabelecimento de vínculo. Além disso, foi solicitado, ao cliente, o seu consentimento para realização de sessões com a avó, com seu irmão, com a coordenadora e com duas professoras, as quais ministravam aulas para ele. Dessa maneira, além de avaliar contingências relacionadas à queixa da coordenadora pedagógica, outras dimensões do comportamento de André poderiam ser averiguadas como, por exemplo, comportamentos assertivos, em sala de aula, em casa etc. As professoras, de português e inglês, que foram entrevistadas, separadamente, relataram que André sempre foi muito quieto e, apesar de não fazer perguntas em sala de aula e não participar das atividades em grupo, fato que chamava a atenção delas, tinha o rendimento na média. Nunca se preocuparam ao ponto de fazer algum tipo de encaminhamento como psiquiátrico ou psicológico, entretanto, quando suas notas passaram a ser abaixo da média, a

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coordenadora se preocupou porque ele está na fase da adolescência e deveria ser assistido por profissionais, uma vez que ele não fala sobre seus sentimentos ou alguma situação problemática que podia estar passando. Na sessão com a coordenadora, os relatos acima foram corroborados, entretanto, ela disse que se preocupa com estudantes que são muito quietos, pois podem ter dificuldades e “não serem vistos, uma vez que não incomodam” e que as notas abaixo da média a fez buscar ajuda pois agora “tinha um motivo concreto aos olhos de todos, inclusive familiares” (sic). Na sessão com a avó, ela relatou que e André “sempre foi muito bonzinho e quieto” (sic) e que “o avô também era assim, bem quieto e não gostava de sair e ficar de “converseiro com os vizinhos de fazenda” (sic) e que ela “também gostava de ter uma vida mais mansa” e não sabia o motivo de André precisar de psicólogo, “pois ele só estava com notas baixas” (sic). Laura disse que talvez por ter sido deixado pela mãe muito cedo, agora estivesse tendo problemas, mas que ele nunca havia reclamado disso e perguntou a terapeuta o que ela achava.

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Ela não se lembrava de nada que tivesse podido causar “trauma” em André (sic). O irmão de André não pode comparecer nas sessões que foram agendadas, pois não foi dispensado do trabalho. Na segunda sessão com André, o cliente respondeu os seguintes instrumentos: Inventário de Ansiedade e de depressão de Beck (BAI/ BDI), Inventário de Habilidades Sociais (IHS – Del-Prette), Inventário de Fobia Social (SPIN), o objetivo dessa sessão foi o de avaliar o repertório de Habilidades Sociais de André e sua pontuação nos testes de ansiedade, depressão e fobia social. Os resultados mostraram que os índices no Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) foram moderados, no de Depressão (BDI), as respostas descartaram essa hipótese. No de Fobia Social, a pontuação foi bem alta e, na escala de Habilidades Sociais, muitos prejuízos foram observados em relação às classes de comportamentos. As outras quatro sessões com André foram realizadas utilizandose recursos terapêuticos como a “Locomotiva” e “Porta-Retratos”, pois esses recursos permitem trabalhar o vínculo terapeuta-cliente, facilita

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a autoexposição, como falar o que sente, pensa etc., permite investigar um pouco mais sobre a história de vida do cliente e a relação com o comportamento”problema”, em linhas gerais, permite explorar o comportamento verbal do cliente. Outro recurso aplicado foi o “Gostar x Fazer”, o qual permite explorar/identificar comportamentos de fuga-esquiva, comportamentos que, em determinadas condições, se tornam mais reforçadores ou aversivos, fornece dicas sobre autoconhecimento, etc. Nestas sessões, o cliente ficou ruborizado quando relatou sobre o que não gosta e não faz, disse “não gosto de ser viso pelas pessoas” (sic) a terapeuta pediu para explicar melhor, e ele acrescentou, “por exemplo, que me olhem quando estou fazendo qualquer coisa, como escrever no meu caderno, ou quando ando no pátio até o refeitório, me entende?” e, após explicar, fez longas pausas quando a terapeuta perguntava sobre outros aspectos da atividade, como o que gosta e faz. Gradualmente, com a ajuda da terapeuta, como demonstrar que ela não havia passado por situações como a dele, mas imaginava o quanto era difícil falar sobre ele mesmo, etc., André relatou fatos importantes sobre suas relações na escola, na família e do seu cotidiano. A partir dos dados obtidos por observação direta durante a sessão, hipotetizou-se que o cliente possuía prejuízos no repertório comportamental de autoconhecimento, já que não conseguiu descrever as contingências operantes e definir metas para sua vida. Conforme foi observado, o cliente não teve a oportunidade de aprender, a partir de modelos, procedimentos que modelassem seu comportamento de autoconhecimento, já que a comunidade verbal a qual foi exposto também parece ter prejuízos nessa área.

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Na sétima e oitava sessões, o objetivo principal foi desenvolver comportamentos de autoconhecimento no cliente por meio da técnica da “Roseira” e, também, continuar com a atividade “Gosto e Não Gosto”, com a qual se pode observar que sentimentos como medo, ansiedade e comportamentos de esquiva. André disse que, quando tem algum passeio na escola como ida ao cinema, “ele passa mal e “tem diarreia” (sic) e aí, a avó deixa ficar em casa e, outras vezes, ele mente, “diz que está passando mal, com muita dor no estômago” (sic). Outros sentimentos foram relatados como baixa autoestima, falta de esperança no futuro, vergonha, sentir-se mal na frente de pessoas estranhas, na frente dos colegas, gostar de ficar sozinho, sentimentos

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de inferioridade, falta de metas. Além disso, durante a oitava sessão, André se sentiu mal, disse que “precisava parar um pouco, pois sua visão estava ficando escura, seu coração disparando e sua pressão parecia ter baixado” (sic). Comportamentos respondentes parecem ter concomitantemente ao relato sobre episódios de como se sentia em relação aos colegas de sala. A terapeuta interrompeu a sessão, ofereceu água e aguardou alguns minutos, André disse que estava bem e talvez tivesse passado mal porque não tinha comido nada no almoço, pois estava chateado com sua nota, abaixo da média, na avaliação de história. A terapeuta também perguntou se ele queria que avisasse alguém para ir buscá-lo na escola ou quisesse ajuda para ir para sua casa. André disse que estava bem e quis continuar a sessão. Ele relatou que tem vergonha de responder perguntas que os professores fazem, na frente dos colegas, pois não os conhecem, prefere “ficar na dele” (sic). Na nona sessão, o objetivo foi fornecer informações/ conhecimento por meio da psicoeducação. Utilizou-se de slides teóricos e ilustrativos sobre os aspectos biológicos e comportamentais relacionados à ansiedade/medo e à fobia social. Para a montagem desse tópico, um docente da área de fisiologia humana auxiliou na apresentação e descrição da definição, dos mecanismos de ação, características, etiologia da ansiedade/medo, as partes cerebrais envolvidas na fobia social e a reatividade emocional envolvida, por exemplo. Muitos sintomas relatados por André na sessão anterior foram explorados, inclusive sua possível queda de pressão durante a sessão. André participou muito da sessão, com perguntas sobre ansiedade, sentir-se envergonhado. Dentre os vários relatos do cliente, vale a pena ressaltar que, ao final da explicação do mecanismo de ação da ansiedade, ele disse: “olha, eu achava que isso só acontecia comigo, não sabia que o corpo até de outros bichos funciona assim” (sic) “então, isso tudo que sinto, não é frescura minha, que alívio” (sic),

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Na décima sessão, André quis retomar aspectos relacionados à ansiedade, medo, reações fisiológicas normais e exageradas do medo e da ansiedade, da psicoeducação e do autoconhecimento. Nessa sessão, pode-se perceber que o repertório relacionado à autoconfiança também apresentou prejuízos. O cliente relatou em vários momentos que não se sentia capaz de enfrentar suas dificuldades, por exemplo, “acho que nunca vou conseguir perguntar

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alguma coisa para a dona” (sic) se referindo à professora e completou “todo mundo ia rir da minha pergunta, pois nasci na fazenda, você sabe” (sic) se dirigindo à terapeuta. Parece funcional emitir esse tipo de comportamento, no contexto escolar, assim, ele se esquiva de enfrentar a situação e suas consequências, se mantendo, provavelmente pelo reforço negativo. Nas quatro sessões seguintes, o objetivo foi o de as técnicas de modelagem para o desenvolvimento de repertório de autoobservação, autoconhecimento e autoconfiança, já que parece ficar mais evidente que esses comportamentos foram pouco desenvolvidos. Abordaram-se, também, as tarefas para casa, por exemplo, a atividade “Quem sou eu” e “Diário de rotina”, com o objetivo de que o cliente pudesse se auto-observar e observar como se comportava em algumas situações, o que sentia (eventos privados que eram evocados), o que pensava e as consequências de seus atos. A décima quarta sessão foi realizada em um sábado de manhã, em um shopping, após a autorização da avó de André. Nesse contexto, a terapeuta pode observar se haveria generalização de alguns comportamentos que foram trabalhados em sessões anteriores, como tomada de decisão, iniciativa, escolher o que gosta do cardápio, de uma lanchonete e fazer o pedido para o atendente. Apesar de o cliente ter hesitado bastante na escolha do seu lanche, pois não sabia o que escolher, porque, segundo ele, e se o lanche tivesse muito molho e escorresse pelo seu rosto, o que iam pensar dele (sic) e ter se ruborizado ao chamar a atendente. André descreveu que sabia que estava vermelho de vergonha, pois seu rosto “ardia” e tinha medo que a “moça” percebesse o seu medo e vergonha. Ele conseguiu realizar a tarefa de escolher o que queria e chamar a atendente. Antes do pedido de André e da terapeuta chegar, foi possível realizar a análise funcional do que ocorreu, descrevendo juntamente com o cliente seus comportamentos públicos e privados de ansiedade, seus pensamentos e consequências desses. No final do encontro, o cliente relatou: “Hoje, eu fiquei vermelho, senti meu rosto ferver, mas a garçonete nem viu, me senti um pouco melhor” (sic). André compreendeu que ficar “vermelho” é uma reação normal e que irá diminuindo a frequência conforme ele for se expondo e pode produzir consequências reforçadoras, como pedir o que quer, não ter medo do que vão pensar se ele ficar ruborizado etc.

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Nas sessões quinze a dezoito, o objetivo foi o de modelar comportamentos de observação e descrição de classes de dificuldades interpessoais, como falar e ouvir, dentro e fora da sessão terapêutica. A terapeuta contou uma história, “João e o pé de feijão”, e depois fez uma série de perguntas, por exemplo, qual o nome da história que foi contada, agora? Qual o nome do menino da estória? O que a mãe do menino queria vender para conseguir dinheiro etc. Foram realizadas várias atividades em forma de Roleplay com feedback imediatos, seguidos de análises funcionais, dos comportamentos de falar e ouvir, como solicitar um lanche sem cebola, em uma padaria lotada. Reivindicar o direito ao troco correto, uma vez que foi cobrado mais etc. Na vigésima sessão, André relatou que estava se sentindo “bem e tranquilo, depois de muitos anos” (sic), contudo, demonstrou dificuldades em descrever seus sentimentos, apenas relatou que se sentia “bem e tranquilo” (sic), colocando a mão no peito e assinalou “aqui, não dói” (sic). Disse também que estava se sentindo diferente porque sabia que até o cão da família pode sentir ansiedade e não se sente mais esquisito. Nota-se que o cliente começou a apresentar melhoras em relação ao seu sofrimento, apesar de ainda demonstrar dificuldades para descrever seus sentimentos. Questões relacionadas à medicação também foram trabalhadas e André afirmou que “remédio me deixa calmo e sei que preciso mudar, tipo fazer pergunta sem ter vergonha, mais é difícil pra mim” (sic). Apesar de se observar melhora na expressão de sentimentos do cliente, muito trabalho ainda deverá ser conduzido, uma vez que diante de sentimentos aversivos, há dificuldade no manejo, conforme se observa na fala de André.

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Nessas 15 sessões com André, pode-se realizar a avaliação comportamental por meio das técnicas aplicadas, vivências, instrumentos formalizados, entrevistas com os familiares e professores, além de conversas sobre o caso com o psiquiatra. Durante o processo, foi descartada a hipótese de depressão, uma vez que a supressão de comportamentos, mau desempenho e “apatia” se devem à vergonha, ao medo e à ansiedade de fazer perguntas aos professores e se colocar diante dos colegas. Hipotetizando-se, assim, que os critérios do DSM 5, os testes padronizados e as avaliações psicológicas apontam para o transtorno de ansiedade social.

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Devido ao período de férias da escola, não foi possível dar continuidade ao atendimento até o início do ano letivo seguinte. Foram dadas algumas tarefas para casa, nesse período, como confeccionar um RG gigante, em uma folha A4, em que deveriam constar seus dados pessoais, em outro espaço da folha, o cliente deveria se desenhar, outro espaço, pequeno deveria ter sua assinatura e, do lado de trás da folha, André deveria colocar aspectos relacionados a suas dificuldades, por exemplo, uma coisa que quero mudar, em mim ,e.., se eu tivesse amigos, eu..e assim, sucessivamente. Os objetivos dessa tarefa são os de facilitar o autoconhecimento, a autoexposição, averiguar como ele se percebe e se representa. Outra tarefa se refere à Tabela de Registro Comportamental Específico, a qual atividade permite, ao cliente, observar um dado comportamento, no caso de André, o seu comportamento de esquiva, atentando-se à frequência, à intensidade e à duração antecedentes e consequentes. André concordou em realizar as tarefas e, se precisasse ligar para a terapeuta, relatou que o faria, mesmo com vergonha, já que disse estar “gostando de saber que não é um ET” (sic), pois aprendeu que tem muita gente que enfrenta as mesmas dificuldades que ele.

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No ano seguinte, André mudou-se com a família para outra cidade, perto de alguns parentes da avó, pois ela estava doente e o atendimento foi encerrado.

Considerações Finais O atendimento realizado, de forma geral, pode ser considerado como importante para a melhora do cliente, ainda que muitas classes de comportamentos como falar, ouvir, pedir, elogiar, resolver problemas, tomar decisões, fazer amizades, lidar com críticas, por exemplo, devam ser desenvolvimentos e/ou aperfeiçoados. Outra consideração a ser feita consiste no trabalho em parceria com o profissional da área da fisiologia que auxiliou na montagem do material didático, da sessão psicopedagógica e assessorou nas respostas para as perguntas técnicas que o cliente fez durante a sessão. Portanto pode-se considerar que a parceria foi importante para a compreensão do cliente do que era normal ou exagerado em suas reações fisiológicas/respondentes.

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Apesar de o caso ter sido atendido por uma terapeuta, considerando sua urgência, as discussões foram realizadas em grupo, já que o atendimento fez parte de um projeto de extensão que atende adolescentes com TAS. Tal dinâmica de trabalho possibilitou o ensino, aos estudantes de graduação envolvidos no projeto, dos princípios básicos da Análise do Comportamento aplicado ao contexto clínico e o aprendizado do uso do procedimento de análises funcionais, bem como a importância da coleta de dados com diferentes fontes de informações, como familiares, professores e o médico psiquiatra, pois como se sabe o comportamento é multideterminado e dinâmico. André foi atendido em 15 sessões pela Psicologia, durante cerca de quatro meses. Durante esse período, foram realizadas três consultas psiquiátricas, inclusive para ajuste da medicação. Apesar da complexidade do caso e do número reduzido de sessões, a avaliação foi de que houve engajamento aos tratamentos psicoterápico e medicamentoso por parte do cliente que sempre chegou no horário, aderiu às tarefas, dentro e fora da sessão e tomava adequadamente a medicação. >

Em síntese, pode-se dizer que a psicoterapia com base na Análise do Comportamento considera o repertório do cliente e pode contribuir para o desenvolvimento de repertório mais adequado para os comportamentos classificados como excessivos e/ou que causam prejuízos, sendo considerados e diagnosticados como transtornos psiquiátricos. Relatos como o apresentado no presente capítulo podem contribuir para a compreensão de como diferentes áreas de conhecimento auxiliam e ajudam inclusive na adesão ao tratamento desses casos.

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Temas em Neurociências

Temas em Neurociências José Luciano Tavares da Silva Josiane Cecília Luzia (Organizadores)

ISBN 978-655668015-6

9

786556

680156

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